Requisição de documentos ao Coaf: o diabo está nos detalhes
5 de novembro de 2024, 8h00
Uma das circunstâncias curiosas do contato constante que mantenho com a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, seja como professor ou como advogado, é a de me deparar com certas posições criticáveis da Corte, mas a respeito das quais o debate, inclusive acadêmico, acaba sendo menor do que deveria.
Atualmente, o STF é, de forma injusta, acusado de politização. Contudo, as críticas à Suprema Corte se tornaram políticas (na acepção mais míope do termo), enquanto temas relevantes são negligenciados porque não despertam paixões políticas ou midiáticas. Mas é como diz o dito popular: o diabo está nos detalhes. Ou, como melhor diria o jagunço Riobaldo: o diabo é sem parar [1]. Uma vez posto o holofote em lutas invisíveis, aquele que merece atenção desenrola-se livre.
Recentemente, a 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça validou o uso de dois relatórios de inteligência financeira (RIF) obtidos por um delegado de polícia que os solicitou diretamente ao Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), sem a mediação do Judiciário, e que serviram para embasar pedido de busca e apreensão contra os donos de uma cervejaria no Pará, acusados de causarem prejuízo de R$ 600 milhões ao erário.
Ao julgar originariamente o RHC 147.707, o STJ havia entendido pela ilicitude da obtenção dos relatórios sem autorização judicial. O Ministério Público do Estado do Pará ajuizou reclamação (Rcl n° 61944), em vista de suposta violação do Tema n° 990 de repercussão geral, no qual a Corte fixou a seguinte tese:
“1. É constitucional o compartilhamento dos relatórios de inteligência financeira da UIF e da íntegra do procedimento fiscalizatório da Receita Federal do Brasil, que define o lançamento do tributo, com os órgãos de persecução penal para fins criminais, sem a obrigatoriedade de prévia autorização judicial, devendo ser resguardado o sigilo das informações em procedimentos formalmente instaurados e sujeitos a posterior controle jurisdicional. 2. O compartilhamento pela UIF e pela RFB, referente ao item anterior, deve ser feito unicamente por meio de comunicações formais, com garantia de sigilo, certificação do destinatário e estabelecimento de instrumentos efetivos de apuração e correção de eventuais desvios.”
O provimento da reclamação manejada pelo Ministério Público levou à determinação pelo STF de que o STJ realizasse um novo julgamento, de modo a adequar sua posição àquela externalizada pela Corte Suprema no aludido tema n° 990 de repercussão geral, e a Corte Superior assim o fez.
Reclamação constitucional
Antes de procedermos às críticas necessárias à posição do STF, é importante ressaltarmos rapidamente dois aspectos positivos da decisão, ambos de caráter processual. Em primeiro lugar, a Corte reforçou o cabimento de reclamação constitucional para a garantia da autoridade de entendimento fixado em sede de repercussão geral, nos termos do artigo 988, §5º, II do CPC, algo que ainda vem encontrando resistência no STJ no que se refere às teses fixadas em recursos especiais repetitivos.

Em segundo lugar, entendeu-se corretamente que, a despeito da regra geral do CPC, a qual determina a necessidade de esgotamento prévio das instancias ordinárias, a reclamação pôde ser ajuizada imediatamente por conta de particularidades concretas do caso que, em específico, diziam respeito ao “efeito multiplicador do julgado do Superior Tribunal de Justiça poderia conduzir à interpretação equivocada do Tema 990/RG pelos demais órgãos judiciais, dificultando as investigações, também contrária às práticas internacionais reconhecidas pelo Brasil”. [2]
Desse modo, o STF baseou-se implicitamente num correto consequencialismo ao equacionar a situação levando em consideração o rápido efeito direcionador que a jurisprudência do STJ produz em relação aos demais órgãos do Judiciário. E, em se tratando de direitos fundamentais, nos parece mesmo que o ajuizamento imediato da reclamação possa ser o mais adequado para evitar o agravamento da lesão, mormente quando ficar demonstrado que o tribunal, a quem incumbiria julgar o recurso, é recalcitrante em aplicar decisões do STF.
Ainda que processualmente a Corte tenha sinalizado bons entendimentos, no mérito, a decisão gera uma série de riscos a direitos fundamentais. De início, mostra-se questionável o enquadramento da autoridade policial como “órgão de persecução penal” para fins de interpretação do tema n° 990 de RG. A Constituição é clara ao incumbir as polícias civis das funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais (exceto as militares) e as polícias militares da polícia ostensiva e a preservação da ordem pública (artigo 144, §§4º e 5º, CF). As polícias civis servem à investigação, mas é o Ministério Público quem titulariza a ação penal pública (artigo 129, I, CF) e, portanto, a persecução penal em sentido estrito.
Abuso de autoridades
Em atendimento ao artigo 20 da Lindb, o STF deve estar atento às potenciais consequências negativas a que seu posicionamento pode conduzir. Mesmo que a Tese n° 990 do tribunal determine a garantia de sigilo e que a reclamação a que nos reportamos tenha mencionado que “[n]o caso em análise não foi demonstrada a existência de abuso por parte das autoridades policiais, do Ministério Público ou a configuração do fishing expedition”.
Ao julgar a Rcl n° 61944, o STF não fixou uma tese nova, tampouco revisitou de modo explícito aquela fixada no Tema n° 990 de RG. Nada obstante, ao anotar que, no caso concreto, “não foi demonstrada a existência de abuso por parte das autoridades policiais, do Ministério Público ou a configuração do fishing expedition”, parece-nos possível a interpretação de que a Corte implicitamente rechaçaria a legalidade de relatórios obtidos em cenários de abuso ou pesca predatória. De qualquer modo, a simples complementação implícita da tese não nos parece suficiente.
Na realidade, a reclamação ora examinada constituía importante oportunidade para o STF revisar explicitamente o Tema 990 — ampliando seu escopo de proteção —, ou ao menos realizar seu aperfeiçoamento mediante detalhamento das condições dentro das quais o compartilhamento de dados deve ocorrer, por exemplo. Todavia, o julgamento cria precedente bastante grave para a hermenêutica da Tese 990. Há uma série de problemas que podem decorrer da autorização dada a delegados de polícia para requisitar informações diretamente ao Coaf.
A mais imediata é a da simples possibilidade de a polícia ser acionada por denúncia anônima, o que significa iniciar uma devassa na intimidade de qualquer pessoa sem que qualquer denunciante possa ser responsabilizado por eventual denunciação caluniosa (artigo 339, CP), sem tampouco considerar o fato de que uma denúncia pode ter as mais variadas motivações, pessoais ou até mesmo empresariais, e dar azo até mesmo a um mercado de denúncias anônimas contra inimigos eleitos.
Ou seja, estaríamos perante acesso a dados e informações sigilosas das pessoas sem o escrutínio e controle judicial. Como se sabe, o RIF é o resultado de uma análise feita pelo Coaf a partir de diversas bases de dados nos casos em que exista suspeita de atividade ilícita. O compartilhamento imediato do RIF com a autoridade policial impede o investigado de sequer prestar esclarecimentos quanto ao conteúdo das operações lá descritas, o que demonstra imenso potencial de comprometer cognitivamente o julgador em virtude da falta de contexto dos documentos, algo que poderia ser garantido pela via judicial.
Fishing expedition
Outrossim, as requisições policiais ao Coaf podem muito facilmente servir de mecanismo de fishing expedition, que se consubstancia numa “investigação especulativa indiscriminada, sem objetivo certo ou declarado, que ‘lança’ suas redes com a esperança de ‘pescar’ qualquer prova, para subsidiar uma futura acusação”. [3] Com base em uma “suspeita” poder-se-iam pescar outros “indícios” de operações descontextualizadas, quiçá até mesmo lícitas, mas que serviriam para embasar denuncia futura, ainda que sem relação com a investigação originária.
Como se sabe, a prática do fishing expedition é vedada de há muito tanto pelo STF — quando entendeu, v.g. pela impossibilidade de extensão de ordem de busca e apreensão a escritório diverso daquele constante do mandado com o intuito de serem obtidas outras provas, à luz do que prevê o artigo 243 do CPP, [4]–[5] quanto pelo Superior Tribunal de Justiça ao se posicionar no sentido de que “[n]ão existe interceptação apenas para sondar, para pesquisar se há indícios de que a pessoa praticou o crime, para descobrir se um indivíduo está envolvido em algum delito”. [6] A prova obtida dessa forma é ilegal e, portanto, inadmissível (artigo 5º, LVI, CF) e, por analogia, ao artigo 157, §5º, CPP.
A necessidade de mediação do Judiciário para a obtenção de certas medidas está exatamente — e idealmente — em sua posição equidistante em relação às partes. Ao juiz incumbe avaliar a existência de elementos mínimos que justifiquem cada prova, bem como a proporcionalidade de uma medida que atenta diretamente contra a intimidade dos cidadãos.
Em outras palavras, se a requisição pode ser feita diretamente pela autoridade policial ao Coaf, na prática, é impossível, ao investigado, demonstrar real situação de fishing expedition.
Anotamos em nossa Constituição Federal Comentada que há no senso comum — até mesmo em segmento institucional — a ideia de que o MP é o órgão de acusação por excelência, impressão que vem justamente do fato de titularizar a ação penal pública. [7] Mesmo que ele possa — e, em verdade, deva — deixar de denunciar o investigado quando não houver indícios mínimos de materialidade, bem como pedir a absolvição do réu que se mostrar inocente no curso da instrução, a prática mostra que não é essa a atuação corriqueira do Ministério Público, o que é apenas uma razão adicional para que a prudência do Judiciário seja acionada como contrapeso à senha persecutória do próprio Estado.
Requisição ao Coaf só com autorização judicial
Nesse ponto, não podemos esquecer, não importa a condição financeira ou social do cidadão, ele nunca conseguirá fazer frente aos agentes do Estado se eles agirem de forma parcial e sem submissão a critérios de fiscalização.
Ainda que o STF tenha anotado não ter vislumbrado indícios de fishing expedition ou de abuso por parte das autoridades policiais ou do MP, parece-nos que o mais correto teria sido que o STF aprimorasse a tese fixada no Tema n° 990 de RG. Essa é, aliás, uma das mais importantes funções desempenhadas pela reclamação na atualidade. [8] Se a Corte quiser de fato prestigiar a atuação persecutória do Estado e evitar a mediação do Judiciário em casos que está lhe pareça desnecessária, poderia ter fixado ao menos deveres e responsabilidades às autoridades policiais, ao MP e aos próprios membros do Coaf.
Como sugestão, ainda que não a ideal, poder-se-ia pensar na necessidade de fundamentação da requisição policial e da necessidade de análise igualmente fundamentada por parte do Coaf, que pode até mesmo negar o acesso aos relatórios e acionar o MP para que este, por sua vez, acione o Judiciário para que constranja o órgão financeiro a oferecer tais provas. Tratar-se-ia, aqui, de uma espécie autorregulação regulada dos poderes públicos imbuídos do dever de accountability.
Reiteramos, o ideal é que o STF não possibilite a requisição ao Coaf sem autorização judicial. Os riscos da ausência de controle são vários. Além da fishing expedition pode haver a formação de clandestino mercado de dossiês contra inimigos políticos, concorrentes no mercado etc. Não se trata de desconfiar da boa-fé dos agentes públicos. Trata-se de verificar os riscos reais (consequencialismo) do entendimento firmado.
Recentemente, o STF [9] declarou ser ilícita a prova obtida de acesso a celular sem ordem judicial. Em termos de integridade, a ratio desse entendimento deveria se estender, com ainda maior razão, à requisição de relatórios ao Coaf porque em essência é o mesmo bem jurídico a ser protegido.
Tanto num caso como no outro, deve existir proteção presumida ao direito fundamental à intimidade face a persecução estatal. É uma lição antiga dos penalistas e processualistas penais alinhados aos valores democráticos: a liberdade se presume, sua restrição é que deve ser justificada. [10] Daí a razão da necessidade de chancela judicial para requisição de documentos ao Coaf, não porque o Judiciário seja uma instância necessariamente mais preparada ou mais razoável, mas porque ele está obrigado a se justificar.
A motivação é uma garantia inerente ao Estado de direito. É uma das lições históricas de Barbosa Moreira: “No Estado de Direito, todos os poderes sujeitam-se à lei. Qualquer intromissão na esfera jurídica das pessoas deve, por isso mesmo, justificar-se, o que caracteriza o Estado de Direito como ‘rechtsfertigender Staat’, como ‘Estado que se justifica'”. [11]
É bem verdade que ilustramos a tese a partir da imagem do diabo, não no sentido de mal absoluto, mas como artimanha, engodo e desatenção. Seria injusto, com o direito e com Riobaldo, que não lembrássemos que ele próprio nos dá a lição: “O diabo não há! É o que eu digo, se for… Existe é homem humano”. [12]
[1] ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. p.436.
[2] Rcl 61.944 AgR, p. 2 do acórdão.
[3] Philipe Benoni Melo e Silva. “Fishing Expedition: A pesca predatória por provas por parte dos órgãos de investigação”. In: Jota, 20.1.2017. Disponível em https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/fishing-expedition-20012017.
[4] STF, 2.ª T., HC 106566, rel. Min. Gilmar Mendes, j. 16.12.2014, DJUe 19.3.2015. No mesmo sentido, STF, HC 137828, rel. Min. Dias Toffoli, decisão monocrática, j. 14.12.2016.
[5] Em 27.4.2021, o Min. Gilmar Mendes dedicou extenso capítulo de seu voto na Rcl 43.479 para rememorar o conceito e a ilicitude do fishing expedition. Destacamos: “Na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, fez-se menção ao conceito de fishing expedition no julgamento do HC 137.828 (Rel. Min. Dias Toffoli, j. 14.12.2016), no qual se discutia a ilicitude de interceptação telefônica não fundamentada em provas razoáveis. No AgRg-INQ 2245 (Red. p. o acórdão Min. Cármen Lúcia, Tribunal Pleno, j. 29.11.2006), também julgado por esta Corte, o Tribunal decidiu pela ilegalidade da quebra de sigilo bancário com base em lista genérica de pessoas que fizeram uso de conta titularizada por pessoa jurídica. Nesse julgamento, rejeitou-se essa ampla e indiscriminada devassa da privacidade que se encontra na base da compreensão da proibição do fishing expedition, embora sem se fazer menção expressa a essa nomenclatura. Destaque-se que o eventual encontro fortuito de provas não exclui a ilicitude da pescaria probatória. Na verdade, a proibição do fishing expedition busca exatamente coibir essa conduta dos agentes públicos de buscar provas relativas a fatos não investigados com base em medidas de disfarçada ilegalidade.”
[6] STJ, 6ª T., AgRgREsp 1154376, rel. Min. Sebastião Reis Júnior, j. 16.5.2013, DJUe 29.5.2013.
[7] Georges. Abboud. Constituição Federal Comentada, 2ª edição, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2024, coment. 10 aos arts. 125 a 130-A da CF, p. 945.
[8] Cf. Georges Abboud. Direito Constitucional Pós-Moderno, 2ª edição, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2024, p. 757 e ss.
[9] https://www.conjur.com.br/2024-out-23/acesso-a-celular-sem-ordem-judicial-gera-nulidade-das-provas-decide-toffoli/#:~:text=Com%20base%20nesse%20entendimento%2C%20o,quebra%20de%20sigilo%20dos%20dados.
[10] Com Aury Lopes Júnior, “o que necessita ser legitimado e justificado é o poder de punir, é a intervenção estatal e não a liberdade individual.” Aury Lopes Júnior. Fundamentos do processo penal: introdução crítica, 5ª edição, São Paulo: Saraiva, p. 35.
[11] José Carlos Barbosa Moreira. Temas de Direito Processual: Segunda Série, 2ª edição, Saraiva, 1988, p. 88-89.
[12] ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. p.875.
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