Opinião

ADC 49: reflexões sobre a atual regulamentação

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5 de novembro de 2024, 9h20

A incidência do ICMS nas remessas de bens entre estabelecimentos de mesma titularidade há muito vem sendo questionada pelos contribuintes e, após a decisão do STF (ADC 49), o foco da discussão foi alterado, voltando-se aos procedimentos relativos à efetivação da não cumulatividade, especialmente na manutenção e transferência de créditos entre estabelecimentos do mesmo titular.

Com o advento da Lei Complementar n° 204/2023, editada posteriormente ao Convênio n° 178/2023, a discussão relativa à manutenção dos créditos foi devidamente encerrada em razão da nova redação conferida aos parágrafos 4° e 5° do artigo 12 da Lei Complementar 87/96, a seguir transcrita:

“(…)

§ 4º Não se considera ocorrido o fato gerador do imposto na saída de mercadoria de estabelecimento para outro de mesma titularidade, mantendo-se o crédito relativo às operações e prestações anteriores em favor do contribuinte, inclusive nas hipóteses de transferências interestaduais em que os créditos serão assegurados:

I – pela unidade federada de destino, por meio de transferência de crédito, limitados aos percentuais estabelecidos nos termos do inciso IV do § 2º do art. 155 da Constituição Federal, aplicados sobre o valor atribuído à operação de transferência realizada;

II – pela unidade federada de origem, em caso de diferença positiva entre os créditos pertinentes às operações e prestações anteriores e o transferido na forma do inciso I deste parágrafo.

§ 5º Alternativamente ao disposto no § 4º deste artigo, por opção do contribuinte, a transferência de mercadoria para estabelecimento pertencente ao mesmo titular poderá ser equiparada a operação sujeita à ocorrência do fato gerador de imposto, hipótese em que serão observadas:

I – nas operações internas, as alíquotas estabelecidas na legislação;

II – nas operações interestaduais, as alíquotas fixadas nos termos do inciso IV do § 2º do art. 155 da Constituição Federal.”

Com efeito, a redação do parágrafo 4° é contundente ao afastar as remessas em transferência das operações sem incidência do ICMS que ensejariam o estorno dos créditos das operações anteriores [1], em linha com o decidido pelo STF, que considerou tal remessa irrelevante para efeitos de ICMS.

Todavia, não é possível dizer o mesmo acerca do restante do parágrafo e seus incisos. Isto porque a redação determina a garantia de manutenção dos créditos remanescentes na origem em razão da transferência destes dentro dos limites de aplicação das alíquotas interestaduais sobre o “valor atribuído à operação”.

Lei complementar permite interpretações

A imprecisão da redação é evidente ao tratar de transferências e utilizar o termo “operações”, justamente a acepção afastada pelo STF à hipótese, por não haver negócio jurídico de compra e venda envolvido no trânsito físico dos bens.

Ainda, ao tratar da garantia do crédito remanescente na origem e do efetivamente transferido no destino, a lei complementar não estabelece efetivamente a obrigatoriedade de transferência dos créditos, tampouco permite expressamente a manutenção integral na origem, abrindo margem a interpretações.

Assim, uma interpretação possível seria no sentido de que o parágrafo 4° seria um comando aos estados, no qual impedir-se-ia a cobrança do ICMS sobre a transferências de bens, além de estornos de créditos em razão da faculdade em transferir tais créditos e, uma vez exercido tal direito, ficam estabelecidos limites.

Spacca

Outra interpretação seria no sentido de que o crédito segue o bem, já que não há qualquer ressalva ou autorização em contrário, sendo assegurado ao contribuinte o valor que transita com a mercadoria apenas no destino, assim como o remanescente na origem em razão de tal transferência.

Vale mencionar que o parágrafo 5° permite ao contribuinte equiparar a remessa em transferência a uma operação regulamente tributada.

Este último parágrafo, inicialmente vetado, foi promulgado posteriormente com a derrubada do veto pelo Congresso, mas a sua redação não prescreve base de cálculo ou o valor a ser atribuído ao bem para efeitos de transferência.

Divergência em relação ao STF

O ponto de maior atenção, portanto, volta-se à obrigatoriedade implícita de o crédito seguir o bem em tais remessas, conferindo um “carimbo” ao crédito escriturado que só deve ser mantido, transferido ou compensado em razão do destino a ser dado ao bem que lhe deu ensejo, diferindo bastante do posicionamento do STF sobre o tema na ADC 49 (faculdade de transferência).

Em outras palavras, é possível que tal interpretação leve os estados à implementação do previsto nos incisos I e II do artigo 26 da Lei Complementar n° 87/96, cuja essência é defendida no STF quando o assunto é manutenção de créditos [2]. Confira-se:

“Art. 26. Em substituição ao regime de apuração mencionado nos arts. 24 e 25, a lei estadual poderá estabelecer:

I – que o cotejo entre créditos e débitos se faça por mercadoria ou serviço dentro de determinado período;

II – que o cotejo entre créditos e débitos se faça por mercadoria ou serviço em cada operação;(…).”

Tal sistemática assemelharia o controle dos créditos de bens transferidos ao adotado na apropriação de crédito acumulado, como previsto na Portaria CAT n° 83/2009 em SP, por exemplo.

Neste contexto, salvo opção do contribuinte em equiparar as transferências a operações tributadas, a complexidade trazida pela regulamentação acarreta uma verdadeira divisão na apuração do Imposto, exigindo controles paralelos para identificação dos créditos vinculados às operações e os créditos remanescentes e envolvidos nas remessas em transferência.

O estado de São Paulo, por meio de sua Consultoria Tributária, publicou entendimento [3] que tangencia o tema da marcação de créditos e contundente acerca da obrigatoriedade da transferência de créditos, conforme previsão da Lei Complementar, afirmando que o procedimento do Convênio n° 178/2023, ora revogado, seria totalmente aderente às suas regras estruturais. Confira alguns trechos:

“(…)

  1. Registre-se que, (…) a autonomia dos estabelecimentos continua a existir (…), tratando-se, portanto, de um fato jurídico apto a produzir outros efeitos tributários que não sejam o surgimento da obrigação tributária principal que seria devida em decorrência de eventual saída destinada a outros contribuintes. É o caso, por exemplo, da própria transferência do crédito do imposto prevista na Lei Complementar 204/2023. (…)

6.1. Para as transferências interestaduais, na Unidade Federada de destino, os créditos serão assegurados por meio de transferência de crédito, limitada aos percentuais das alíquotas interestaduais cabíveis, aplicados sobre o valor atribuído à operação de transferência realizada, conforme inciso I do parágrafo 4º do artigo 12 da Lei Complementar 87/1996.

6.2. Já na Unidade Federada de origem, os créditos serão assegurados em caso de diferença positiva entre aqueles pertinentes às operações e prestações anteriores e o transferido na forma do subitem anterior, conforme o inciso II do parágrafo 4º do artigo 12 da Lei Complementar 87/1996. (…)

8. Desse modo, em cumprimento ao disposto na referida Lei Complementar, (…) é obrigatória a transferência de crédito do ICMS do estabelecimento de origem para o estabelecimento de destino na remessa interestadual de bens e mercadorias entre estabelecimentos de mesma titularidade. (…)

10. Assim, nas transferências (…) não haverá incidência do ICMS, mas, (…) haverá obrigatoriamente a transferência do crédito do imposto correspondente às mercadorias remetidas a estabelecimento do mesmo titular.

11. Ainda, (…), na hipótese de haver saldo credor remanescente de ICMS no estabelecimento remetente após a transferência dos créditos (…) ao estabelecimento destinatário, este será apropriado pelo contribuinte junto à Unidade Federada de origem, observado o disposto na sua legislação interna.

12. Dessa forma, a diferença positiva a que se refere o inciso II do parágrafo 4º do artigo 12 da Lei Complementar 87/1996 diz respeito a cada remessa interestadual de bens e mercadorias entre estabelecimentos de mesma titularidade e independe da existência ou não de saldo credor do ICMS na apuração mensal do estabelecimento remetente.

13. Anote-se que, (…), o procedimento estabelecido (…) implica o registro dos créditos correspondentes ao ICMS a que tenha direito, decorrentes de operações e prestações antecedentes, no estabelecimento remetente.

13.1. Portanto, quando for realizada a transferência dos créditos pertencentes à Unidade Federada de destino (…), os créditos remanescentes a que o estabelecimento remetente eventualmente faça jus, nos termos da legislação, já estarão devidamente escriturados. (…).”

Transferência do crédito seria obrigatória

Segundo o entendimento exarado, a transferência do crédito, em remessas interestaduais, seria obrigatória já por força do previsto na lei complementar, sendo necessária a identificação do valor a transferir e o saldo remanescente após a transferência. Além disso, a Sefaz menciona que a escrituração dos créditos não deve sofrer alterações e que os valores remanescentes após a transferência já estariam contidos na escrita fiscal, todavia, esta afirmação não pode ser entendida de forma absoluta.

Isso porque somente os créditos efetivamente tomados é que podem ser transferidos. Portanto, não basta aplicar a alíquota prevista na legislação com base na origem e destino da remessa sobre um valor eleito do bem. É necessário saber o quanto de crédito foi recuperado em razão da entrada daquele item específico para carregá-lo ao destino, nos limites estabelecidos na LC [4], do contrário, créditos em excesso eventualmente transferidos não estariam assegurados ao estabelecimento destinatário. Além disso, a remessa tomaria contornos de operação tributada, contrariando o parágrafo 4° do mencionado artigo 12 da LC 87/96.

Ainda, merece atenção na consulta a menção à apropriação dos créditos frente à unidade de origem, na hipótese de haver saldo credor após a realização das transferências, pois é possível entender tal passagem como uma menção a crédito efetivamente acumulado em razão de transferências ou que os créditos envolvidos nas remessas estariam sujeitos a um regime e controles específico, conforme mencionado anteriormente (crédito carimbado).

O Convênio ICMS n° 109/2024, recentemente publicado, revogou o Convênio ICMS n° 178/2023 e regulamentou a matéria à luz da LC 204/2023. Sua redação, vai na mesma esteira do entendimento da SEFAZ/SP citado.

Com efeito, o convênio não obriga expressamente a transferência do crédito, apenas trata do direito à transferência do valor efetivamente creditado em relação às operações anteriores[5], garantindo, com fundamento os incisos I e II do parágrafo 4° do artigo 12 da Lei Complementar 87/96, a sua manutenção, no destino, restrita ao valor transferido nos limites impostos pela LC e, na origem, do saldo remanescente, cabendo ao contribuinte a utilização de acordo com as regras da legislação local (crédito acumulado).

A sua cláusula quarta esclarece quais valores devem ser atribuídos ao bem objeto da remessa e que o ICMS a ser transferido seja adicionado a este valor. Confira:

“Cláusula quarta O crédito a ser transferido corresponderá ao imposto apropriado referente às operações anteriores, relativas às mercadorias transferidas.

§ 1º O crédito a ser transferido nos termos do “caput” fica limitado ao resultado da aplicação de percentuais equivalentes às alíquotas interestaduais do ICMS, definidas nos termos do inciso IV do § 2º do art. 155 da Constituição Federal, sobre os seguintes valores das mercadorias:

I – o valor médio da entrada da mercadoria em estoque na data da transferência;

II – o custo da mercadoria produzida, assim entendida a soma do custo da matéria-prima, insumo, material secundário e de acondicionamento;

III – tratando-se de mercadorias não industrializadas, a soma dos custos de sua produção, assim entendidos os gastos com insumos, e material de acondicionamento.

§ 2º No cálculo do crédito a ser transferido, os percentuais de que trata o “caput” devem integrar o valor das mercadorias. (…).”

O parágrafo primeiro da Clausula sexta, por sua vez, determina a base de cálculo do ICMS, caso o contribuinte opte por equiparar as transferências a uma operação tributada:

“(…)

I – o valor correspondente à entrada mais recente da mercadoria;

II – o custo da mercadoria produzida, assim entendida a soma do custo da matéria-prima, material secundário, mão-de-obra e acondicionamento;

III – tratando-se de mercadorias não industrializadas, a soma dos custos de sua produção, assim entendidos os gastos com insumos, mão-de-obra e acondicionamento.(…)”

Base de cálculo questionável

É importante lembrar que, neste particular, a base de cálculo eleita é questionável por extrapolar competência de lei complementar (artigo 146, III, ‘a’, da CF), todavia, a omissão do congresso quando da edição da LC 204/2023, abriu margem para a regulamentação abusiva, o que ocasiona insegurança jurídica.

Destaque-se, ainda, que a opção anual pela equiparação será renovada automaticamente, abrangerá todos os estabelecimentos do contribuinte em território nacional e não deve afetar incentivos ou benefícios relativos ao tributo.

Por fim, alertamos aos contribuintes a necessidade de estudo específico para a reflexão acerca da referida opção, além da construção de controles eficazes para a identificação dos créditos envolvidos em tais remessas, visando maior segurança no desenvolvimento das atividades empresariais.

De toda sorte, a decisão do STF que deveria encerrar uma das mais antigas discussões vinculadas ao ICMS acabou por dar ensejo a uma nova série de regulamentações e aumento da complexidade do sistema.

 


[1] CF. Art. 155, II, §2°, II.

[2] Vide: RE 427144 AgR / RS; RE 607162 AgR

[3] RC n° 30041/2024, publicada na vigência do Convênio ICMS n° 178/2023.

[4] Sobre o tema, vide RC 29566/2024 – SEFAZ/SP.

[5] Há necessidade de nota técnica para adequação da NF-e.

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