Opinião

Proposta de unidade prisional federal exclusiva para venezuelanos

Autores

  • é professor associado do Instituto de Ciências Jurídicas da Universidade Federal de Roraima (UFRR) professor doutor Nível II da Universidade Estadual de Roraima (Uerr) doutor em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília (UnB) e estagiário pós-doutoral no Instituto e Filosofia e Direito da Academia Russa de Ciências em Ecaterimburgo.

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  • é mestre em Direito pela Universidade Estácio de Sá (Unesa) mestre em Segurança Pública Direitos Humanos e Cidadania pela Universidade Estadual de Roraima (UERR) e defensor público do estado de Roraima.

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5 de novembro de 2024, 20h57

No último dia 31 de outubro, no Palácio do Planalto, durante uma reunião com o presidente da República e governadores de todo o país, para tratar da segurança pública, ressurgiu uma proposta controversa do governo do estado de Roraima: a criação de uma unidade prisional federal exclusiva para venezuelanos.

Em estudos realizados no Programa de Pesquisa e Pós-graduação em Segurança Pública do Mestrado Profissional em Segurança Pública, Direitos Humanos e Cidadania da Universidade Estadual de Roraima, entre 2022 e 2024, analisamos a legitimidade de prisões exclusivas para estrangeiros.

Utilizando como estudo de caso a proposta da Secretaria de Estado da Justiça e da Cidadania para destinar a Cadeia Pública de Rorainópolis à custódia exclusiva de migrantes, apresentada em 2022 [1], observamos que a segregação de presos com base na nacionalidade, em um contexto de crise migratória e vulnerabilidade, pode intensificar estereótipos negativos, reforçar práticas discriminatórias e agravar a situação dos migrantes no sistema prisional [2].

O discurso de segurança pública, usado para defender a medida, mascara a lógica de controle punitivo e segregacionista, que desconsidera os impactos negativos dessa exclusão para uma população em condições de extrema vulnerabilidade.

A lógica subjacente à construção de prisões segregadas baseia-se em uma visão distorcida e seletiva da segurança pública, que prioriza o controle e a exclusão em detrimento da inclusão e do apoio. Esse fenômeno é descrito pela “nova penologia” — termo cunhado por Malcolm Feeley e Jonathan Simon — que identifica uma mudança de paradigma punitivo: a lógica de “reabilitação” é substituída por uma abordagem tecnocrática e atuarial, voltada para contenção e exclusão de grupos considerados de “risco” [3].

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prisão cadeia cela janela

Em outras palavras, em vez de oferecer assistência adequada aos migrantes e promover sua integração social, o Estado recorre a uma solução aparentemente mais “simples”, mas fortemente discriminatória: confinar, separar e isolar.

Zona de exclusão em Roraima

Nessa perspectiva, Alessandro De Giorgi, ao estudar os centros de detenção para migrantes na Europa, adverte que tais práticas criam uma espécie de dispositivos de “estocagem” para populações excedentes, transformando-as em categorias de risco a serem administradas, e não em cidadãos a serem integrados [4]. Ou seja, os migrantes deixam de ser vistos como sujeitos de direitos e passam a ser geridos como problemas a serem isolados.

Além de fomentar a xenofobia e reforçar a criminalização dos migrantes venezuelanos, a associação entre imigração e criminalidade, alimentada por narrativas políticas e midiáticas, provoca estigmatização e distorção da percepção pública, favorecendo ciclos de discriminação e exclusão.

Para Roraima, um estado que já enfrenta enormes desafios com o intenso fluxo migratório, a implementação dessa proposta poderia transformar a região em um “laboratório de políticas de segregação”, criando uma verdadeira “zona de exclusão” para venezuelanos dentro do território brasileiro.

O que diz a legislação

Sob a perspectiva normativa, a Constituição de 1988, no artigo 5º, incisos XLVI e XLVIII, sublinha a necessidade de individualização da pena, bem como a separação dos presos conforme a natureza do delito, idade e sexo. A Lei nº 7.210/1984, que institui a Lei de Execução Penal (LEP), foi criada justamente para concretizar o princípio da individualização e estabelece critérios claros para a separação de presos, fundamentando-se na condição de réu ou condenado, na gravidade do crime e no histórico criminal, como forma de evitar misturas que possam gerar riscos.

Por exemplo, a LEP determina, no artigo 84, que presos provisórios sejam mantidos separados dos condenados e que acusados de crimes hediondos ou violentos estejam separados dos acusados de crimes de menor gravidade. A lei prevê, ainda, que funcionários da administração da justiça criminal e detentos cuja integridade física, moral ou psicológica possa estar ameaçada sejam alocados em dependências separadas.

Spacca

De sua vez, a Lei nº 11.671/2008, que dispõe sobre a transferência e inclusão de presos em estabelecimentos penais federais de segurança máxima, também não menciona a nacionalidade como critério para a inclusão de presos em unidades prisionais federais. Nos termos do artigo 3º da lei, presos podem ser incluídos em tais estabelecimentos por motivos de segurança pública ou para proteção do próprio preso, seja ele condenado ou provisório.

No mesmo sentido, o Decreto nº 6.877/2009, que regulamenta a Lei nº 11.671/2008, reforça a excepcionalidade e temporariedade da inclusão de presos em estabelecimentos federais, estabelecendo que a medida é direcionada a pessoas com características específicas, como liderança em organização criminosa, envolvimento em crimes que coloquem em risco sua integridade física, participação em regime disciplinar diferenciado, colaboração premiada ou histórico de incidentes de fuga, violência ou indisciplina.

Nenhuma dessas normativas sugere a nacionalidade como critério para inclusão em unidades prisionais federais. A ausência de distinções baseadas na origem nacional reforça o princípio constitucional da igualdade, reafirmando que o sistema penal deve se ater a critérios objetivos, em vez de características pessoais, como a nacionalidade.

Diante disso, mostra-se plausível afirmar que a segregação de presos com base na nacionalidade contraria princípios fundamentais de um Estado democrático e inclusivo, afastando-se dos valores constitucionais e dos compromissos internacionais de direitos humanos assumidos pelo Brasil.

 


Referências

ENCARNAÇÃO, Frederico Cesar Leão. Entre a proteção e a segregação: uma análise crítica da proposta de destinação de um estabelecimento prisional exclusivo para estrangeiros em roraima. 2024. 1 v. Dissertação (Mestrado) – Curso de Mestrado Profissional em Segurança Pública, Direitos Humanos e Cidadania, Universidade Estadual de Roraima, Boa Vista, 2024.

FEELEY, Malcolm M.; SIMON, Jonathan. The new penology: notes on the emerging strategy of corrections and its implications. Criminology, v. 30, n. 4, p. 449-474, 1992.

GIORGI, Alessandro de. A miséria governada através do sistema penal. 3. ed. Rio de Janeiro: Renavan, 2006. Tradução de Sérgio Lamarão.

[1] O caso envolveu debates sobre o requerimento encaminhado à Vara de Execução Penal de Boa Vista, no qual a Secretaria de Estado da Justiça e da Cidadania solicitou autorização para destinar a Cadeia Pública de Rorainópolis, situada no sul de Roraima, exclusivamente para abrigar estrangeiros. A população seria composta principalmente por venezuelanos, mas também incluiria colombianos, cubanos e guianenses. Entretanto, o pedido foi indeferido.

[2] ENCARNAÇÃO, Frederico Cesar Leão. Entre a proteção e a segregação: uma análise crítica da proposta de destinação de um estabelecimento prisional exclusivo para estrangeiros em roraima. 2024. 1 v. Dissertação (Mestrado) – Curso de Mestrado Profissional em Segurança Pública, Direitos Humanos e Cidadania, Universidade Estadual de Roraima, Boa Vista, 2024.

[3] FEELEY, Malcolm M.; SIMON, Jonathan. The new penology: notes on the emerging strategy of corrections and its implications. Criminology, v. 30, n. 4, p. 449-474, 1992.

[4] GIORGI, Alessandro de. A miséria governada através do sistema penal. 3. ed. Rio de Janeiro: Renavan, 2006. Tradução de Sérgio Lamarão.

Autores

  • é doutor em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília (UnB), doutor em Sociologia e Direito pela Universidade Federal Fluminense (UFF), doutorando em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), com estágio pós-doutoral como visiting researcher no Instituto de Filosofia e Direito da Academia Russa de Ciências (Sucursal dos Urais), professor associado do Instituto de Ciências Jurídicas, professor Colaborador no Programa de Mestrado em Sociedade e Fronteiras da Universidade Federal de Roraima (UFRR), professor associado do curso de Direito e professor permanente no Programa de Mestrado Profissional em Segurança Pública, Direitos Humanos e Cidadania da Universidade Estadual de Roraima (UERR).

  • é mestre em Direito pela Universidade Estácio de Sá (Unesa), mestre em Segurança Pública, Direitos Humanos e Cidadania pela Universidade Estadual de Roraima (UERR), defensor público do estado de Roraima.

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