Aspectos jurídicos das fraudes nos contratos de imagem dos atletas profissionais
23 de março de 2024, 6h03
Discorre-se neste artigo sobre a temática dos contratos para exploração e uso da imagem de atletas profissionais no contexto da ocorrência de fraudes que os desvirtuam.
Como se sabe, a imagem de qualquer pessoa é um dos aspectos de sua dignidade, tanto que a Constituição assegura a sua inviolabilidade (artigo 5º, inciso X) ao mesmo tempo em que confere à lei a tarefa de estabelecer critérios de proteção alusivos à reprodução da imagem e voz humanas, inclusive nas atividades desportivas (inciso XXVII, “a”, artigo 5º CF).
No plano infraconstitucional, prescreve o artigo 11 do Código Civil (CC) que, com exceção dos casos previstos em lei, os direitos da personalidade são intransmissíveis e irrenunciáveis, não podendo o seu exercício sofrer limitação voluntária.
Coerentemente, o artigo 18 desse mesmo código estabelece que, sem autorização, não se pode usar o nome alheio em propaganda comercial. Nessa mesma toada, o artigo 20 do CCB pontua que, salvo quando autorizadas, a divulgação da palavra, publicação ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, se destinadas a fins comerciais.
Imagem dos atletas segundo a Lei Pelé e a Lei Geral do Esporte
A relação específica dos atletas com os clubes de futebol, inclusive no que diz respeito à exploração de suas imagens, está disciplinada em legislação específica, mais precisamente nas Leis nº 9.615/98 (Lei Pelé) e 14.597/2023 (Lei Geral do Esporte).
A Lei Pelé, em seu artigo 87, dispõe que o direito ao uso da imagem do atleta pode ser por ele cedido ou explorado, mediante ajuste contratual de natureza civil e com fixação de direitos, deveres e condições inconfundíveis com o contrato especial de trabalho desportivo.
A Lei Geral do Esporte trouxe algumas mudanças a respeito, mas sem alterar a essência da regulação jurídica anterior, restando assinalado no §2º do seu artigo 98 que o direito de imagem não possui natureza salarial, devendo constar de contrato avulso de natureza exclusivamente civil.
Já o artigo 164 (caput) dessa mesma lei registra que esse direito personalíssimo pode ser por ele cedido ou explorado por terceiros, inclusive por pessoa jurídica da qual seja sócio, mediante ajuste contratual com fixação de direitos, deveres e condições inconfundíveis com o contrato especial de trabalho desportivo.
De forma mais objetiva, o § 1º do artigo 164 diz não haver impedimento para que o atleta empregado, concomitantemente à existência de contrato de trabalho, ceda seu direito de imagem à organização esportiva empregadora, ficando claro que o pagamento por essa cessão de direitos não substitui a remuneração devida quando configurada a relação de emprego entre o atleta e a organização contratante.
Prática de fraudes nos contratos
Embora a interpretação desses contratos deva ser pautada pela presunção de boa-fé (artigo 113 do CC), não se pode deixar de reconhecer, à luz de seguidos casos vistos no cotidiano forense, que ajustes dessa natureza podem e vêm sendo manejados, infelizmente, para instrumentalizar fraudes trabalhistas, fiscais e previdenciárias, em que pese a Lei Pelé e a Lei Geral do Esporte estabelecerem travas de licitude, de modo a garantir a idoneidade da pactuação.
Note-se, nesse sentido, que o artigo 18-A, IV, da Lei Pelé, e artigo 36, VII, da Lei Geral do Esporte, só admitem o repasse de recursos públicos para os clubes que sejam transparentes na gestão de direitos de imagem.
Mais que transparentes, e independente de receberem recursos públicos ou não, os clubes devem agir dentro do critérios de conformidade legal (artigo 2º, § único, inciso I , e 58, da LGE) e dos preceitos da moralidade (artigo 2º, § único, inciso II , da Lei Pelé).
A conformidade legal, no ambiente da relações privadas e corporativas, caracteriza-se pela liberdade de fazer ou deixar de fazer alguma coisa, conforme a conveniência administrativa, desde que os atos praticados não se oponham às disposições legais de ordem geral e da legislação esportiva, ao passo que a moralidade deve ser entendida como dever de agir pautado pela probidade e honestidade.
No caso da Lei nº 9.615/98 (Lei Pelé), restou estabelecido no § único do artigo 87, como primeira métrica objetiva de apuração da licitude dos contratos, um critério aritmético determinativo de que, na cessão de direitos de sua imagem dos atletas em favor da entidade de prática desportiva, o valor respectivo contratado não pode ultrapassar 40% da remuneração total que, para essa finalidade, é composta pela soma do salário (CLT) com o valor do contrato de imagem.
Já a Lei Geral do Esporte, aplicável aos contratos celebrados após a sua vigência, majorou esse percentual de 40 para 50%, nos termos do §2º do artigo 164, balizado pela mesma operação de soma desses mesmos fatores.
Além desse aspecto objetivo, outras hipóteses são apontadas na lei, na doutrina e na jurisprudência como desvirtuamento dessa modalidade de contratação, sendo cada dia mais “criativas”, entretanto, as soluções engendradas com o objetivo de burlar a imperatividade da legislação trabalhista e fiscal.
Nesse sentido, o parágrafo §4º, do artigo 164, da Lei Geral do Esporte, traz o alerta de que o uso comercial da exploração do direito de imagem do atleta deve ser efetivo, de modo a se combater a simulação e a fraude.
E isso, como já era reconhecido na jurisprudência, não foi estabelecido na nova lei geral por acaso, na medida em que não são raros os casos em que, embora firmado esse tipo de pacto adjeto, a imagem do atleta, na prática, nunca é usada pelo clube ou é utilizada pouquíssimas vezes.
Importante lembrar, aliás, que o ônus da prova quanto ao efetivo uso da imagem de atletas é do clube, cabendo-lhe evidenciar a veiculação da imagem do contratado pelas variadas formas possíveis (material publicitário, entrevistas, promoção de produtos ou eventos, etc).
Outro ponto a destacar diz respeito a uma certa estratégia que responde pela inclusão de sociedades terceiras na avença de imagem do atleta, a exemplo de “associações de amigos” de determinado clube ou pessoas jurídicas que administram programas de sócio-torcedor.
O mecanismo engendrado, nesses casos, passa pela contratação inicial entre clube e atleta profissional ajustando o pagamento do salário (CLT), além de um primeiro contrato para cessão de direito de imagem, diretamente ao clube, pelo próprio futebolista ou por empresa que o representa.
Ocorre que, paralela e simultaneamente, um segundo contrato de imagem é firmado pela pessoa jurídica representante do atleta (ou por ele mesmo), mas agora com uma das entidades terceiras acima referidas, figurando o atleta e o clube como anuentes.
Nessas situações, são frequentes os casos em que esse segundo contrato de imagem representa quase o triplo do valor dos salários, o que se mostra evidentemente desproporcional, na medida em que, à exceção de casos de extraordinárias e destacadas personalidades esportivas, cuja exploração de imagem é tão ou mais relevante para o clube quanto o seu desempenho esportivo (vide caso Ronaldo no Corinthians), os demais atletas, de ordinário, têm como principal elemento negocial a venda a sua força de trabalho típica para participar dos jogos, dos treinos, dos estágios e de outras sessões preparatórias de competições com aplicação e dedicação correspondentes às suas condições psicofísicas e técnicas; preservar as condições físicas que lhe permitam participar das competições esportivas, submetendo-se às intervenções médicas e assistências especializadas necessárias à prática esportiva e exercitar a atividade esportiva profissional de acordo com as regras da respectiva modalidade esportiva (artigo 74, da LGE).
Esses atributos e deveres são os elementos mais importantes na relação atleta/clube, compromissos em torno dos quais se estabelecem os elementos fundamentais e nucleares da avença principal, ao passo que a exploração da imagem do atleta, como já pontuado, tem natureza acessória.
Soa incompatível, portanto, que a valoração econômica da imagem do atleta ordinário seja três vezes maior do que o despendido com as suas atribuições principais, situação indicativa da possibilidade de fraude.
Tenha-se em mente, ainda, que essas sociedades terceiras, especialmente as denominadas “Associação Amigos”, mas também as gestoras de programas sócio-torcedor, geralmente têm como sócios e diretores os mesmos dirigentes dos clubes aos quais se vinculam, inclusive funcionando no mesmo endereço e tendo como representantes legal o mesmo presidente da entidade de prática desportiva.
Algumas delas, como já se verificou no cotidiano judiciário, não têm sequer vida ativa, dentro do escopo de seu objeto social, quando muito funcionando como simples repassadoras de recursos para atletas ou para camuflar o patrimônio da entidade-mãe.
Trata-se, nesses casos, do uso da personalidade jurídica dessas outras sociedades como forma de mascarar a realidade contratual e burlar a lei, em variadas perspectivas, o que resta absolutamente ineficaz quando os protagonistas desses engenhos se deparam com questionamentos judiciais.
Afirma-se ineficaz, primeiramente, por ser evidente a possibilidade de reconhecer que essas associações formam grupo econômico com a sociedade principal, como amplamente reconhecido na jurisprudência, a exemplo dos arestos TST – RR 1016078620165010052, (DEJT 10/5/2019) , TST – Ag-ARR 116737520145010024 (DEJT 18/02/2020), de modo que os contratos firmados com uma delas obrigam as demais, por serem consideradas empregadoras únicas (ROT: 01017700520175010061 RJ, relator: Gustavo Tadeu Alkmim, Data de Julgamento: 25/1/2022). Para os fins do artigo 2º da CLT, as sociedades derivadas, nesses casos, encontram-se sob direção, controle ou administração de outra, com interesse integrado.
Além disso, o mau uso dessas sociedades pode dar ensejo à desconsideração da personalidade jurídica (artigo 50, do CCB) em caso de abuso operado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial, podendo o juiz determinar que os efeitos de determinadas relações obrigacionais alcancem os bens particulares de administradores ou de sócios da pessoa jurídica beneficiada direta ou indiretamente pelo abuso.
Nesse ponto, o desvio de finalidade se caracteriza pela utilização da pessoa jurídica com o propósito de lesar credores (inclusive o Fisco) e para a prática de atos ilícitos de qualquer natureza.
Esse tipo de praxe caracteriza simulação dos negócios jurídicos por conter declarações falsas (artigo 167, II, do CCB), valendo lembrar também que o § único do artigo 116, do CTN, estabelece que a autoridade administrativa poderá desconsiderar atos ou negócios jurídicos praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária.
Do mesmo modo, o artigo 9º, da CLT, estabelece que serão nulos de pleno direito os atos praticados com o objetivo de desvirtuar, impedir ou fraudar a aplicação dos preceitos contidos naquela lei.
Outro efeito prático dessas modalidades de vício, especialmente no aspecto atinente à tentativa de mascarar as reais bases remuneratórias do atleta, é abrir a porta para o reconhecimento da rescisão indireta dos contratos especiais de trabalho desportivo, geralmente com pagamento de valores elevados, previstos em cláusulas compensatórias.
Além da rescisão indireta, danosa por si, a desconsideração da cessão de imagem como tal, caracterizando-a como salário, repercute no realinhamento e dever de quitação de verbas rescisórias, férias ordinárias, 13º salário, FGTS e de recolhimento de contribuição previdenciária e imposto de renda, o que pode gerar severas perdas patrimoniais para as entidades de prática desportiva praticantes de condutas fraudulentas, sem prejuízo da responsabilização desportiva, civil e criminal dos seus dirigentes.
Responsabilização
Do ponto de vista desportivo, o engendramento de fraudes dessa ordem, pelo dirigente esportivo, ao não observar os padrões de conformidade, que nada mais é que o agir em consonância com a lei, acarretando prejuízos vultuosos para o clube, consubstancia violação do dever legal de diligência (artigo 64, § único, I, da LGE), caracterizado pela obrigação de gerir a organização com a competência e o cuidado que seriam usualmente empregados por todo homem digno e de boa-fé na condução dos próprios negócios. O risco excessivo, resultado de manobras ilegais, pode inclusive dar ensejo ao reconhecimento de gestão temerária do dirigente (artigo 67 da Lei Geral do Esporte).
Essa ordem de desconformidades pode originar, igualmente, a responsabilização civil dos dirigentes por danos materiais provocados à associação pela prática de atos notoriamente ilegais ou, ainda, por negligência, imprudência ou imperícia.
Criminalmente, o artigo 1º, inciso II, da Lei 4729/65 caracteriza como sonegação fiscal prestar declaração falsa ou omitir, total ou parcialmente, informação que deva ser produzida a agentes das pessoas jurídicas de direito público interno, com a intenção de eximir-se, total ou parcialmente, do pagamento de tributos.
Já a Lei 8.137/90, também em seu artigo 1º, incisos I e II, assinala que constitui crime contra a ordem tributária suprimir ou reduzir tributo, ou contribuição social e qualquer acessório, pela omissão informativa ou por meio de declaração falsa às autoridades fazendárias ou, ainda, quando a conduta do particular tiver o objetivo de fraudar a fiscalização tributária, inserindo elementos inexatos, ou omitindo operação de qualquer natureza, em documento ou livro exigido pela lei fiscal.
Destaque-se que o Superior Tribunal de Justiça já entendeu que “(..) a fraude, a simulação ou a prática de atos dolosos voltados a subtrair do Estado o conhecimento da obrigação de pagar o imposto, inclusive por substituição tributária (regime com assento constitucional), não consubstancia mera inadimplência fiscal e a observância da Súmula Vinculante n. 24 é suficiente à tipificação da conduta prevista no art. 1º, II, da Lei n. 8.137/1990. Não há falar, pois, em falta de condição para a persecução penal. 9. Recurso em habeas corpus não provido (STJ – RHC: 117012 MG 2019/0251816-5, Data de Julgamento: 14/02/2023, T6 – 6ª Turma, data de publicação: DJe 28/02/2023)”.
Não fosse isso, essas modalidades de fraudes também se expressam pela omissão, em documento público ou particular, de declaração que dele devia constar, ou quando neles se insere ou se faz inserir declaração falsa ou diversa da que devia ser escrita, com o fim de prejudicar direito, criar obrigação ou alterar a verdade sobre fato juridicamente relevante, consolidando a prática do crime de falsidade ideológica em concurso formal (artigo 69 do CPB) com aqueles outros acima nominados.
Conclusão
Em resumo de tudo, constata-se que os lamentáveis casos de fraude na contratação do direito de imagem dos atletas de futebol objetivam frustrar a aplicação da legislação trabalhista e tributária, o que não se compatibiliza com os deveres dos dirigentes esportivos expressamente consignados na Lei Pelé e na Lei Geral do Esporte. Dirigentes que agem assim devem e precisam ser banidos do futebol em nome da saúde financeira dos clubes e dos interesses maiores da sociedade brasileira.
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