Opinião

Licença edilícia e alvará de construção diante dos objetivos de desenvolvimento sustentável da ONU

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19 de março de 2024, 17h22

O ato administrativo municipal destinado à aprovação de projeto de construção é denominado licença e é outorgado por alvará. Antes disso, geralmente existem dois procedimentos relacionados: a consulta de viabilidade e a análise dos projetos ou planos relacionados à edificação, que precisam ser aprovados para a outorga da licença edilícia pelo órgão público responsável.

Isso não significa que o ato administrativo que concede a licença se torna ato complexo. Este ato é simples, unilateral, vinculado e ato-condição (SANTOS, 2001, p.18-19).

Segundo Lúcia Valle Figueiredo (2005, p.128) a licença para construir é “[…] ato jurídico administrativo constitutivo-formal, possibilitando aquele em função de quem é expedida o direito de levar a cabo a construção nos termos em que lhe foi deferida […]”.

Os termos do deferimento devem seguir as prescrições legais, via de regra de ordem local, produzindo a aprovação do projeto apresentado pelo particular ao órgão público. Esta aprovação deve estipular prazo de validade para a licença expedida.

Segundo ainda Figueiredo (2005, p.128-129), é importante compreender que há diferença entre licença e autorização. “A primeira é ato vinculado, enquanto a segunda encontra-se na esfera de competência discricionária administrativa — precariedade é uma de suas características”.

A autora explica que “a licença para edificar é ato administrativo inserido na competência vinculada, pois, satisfeitos os pressupostos legais, nada remanesce à administração a não ser a outorga da licença”. (FIGUEIREDO, 2005, p.128-129).

Meirelles (2005, p.166-167), por sua vez, reforça a característica do ato vinculado como aquele que retira do administrador, quase que por completo, sua liberdade, visto que a ação administrativa deverá se conter aos requisitos normativos para a validade do ato.

Isso significa que sem a apresentação do projeto ou dos planos necessários para que o órgão público compreenda aquilo que se deseja construir ou realizar, não poderá o órgão público emitir a licença (SILVA, 2006, p.437-438). Por outro lado, havendo o cumprimento de todos os requisitos legais e normativos, a aprovação é ato vinculado.

Para tanto, o setor municipal responsável pela análise e aprovação dos projetos e planos precisa possuir profissionais habilitados tecnicamente para realizarem a referida avaliação, que deverá seguir as diretrizes e exigências técnicas previstas em lei edilícia.

Face a análise da margem de atuação da administração para a outorga de licença edilícia, é fundamental compreender a diferença entre esta e a autorização. José Afonso da Silva (2006, p.438) utiliza o exemplo da atividade urbanística para avaliar essa diferença.

Esta atividade é função pública e por consequência a sua realização por particular depende de autorização. O caráter público da função garante discricionariedade para a administração pública. Segundo Silva (2006, p.439), “[…] tratando-se da pretensão de exercício de uma função pública ou da prestação de um serviço público ou de utilidade pública por particular, […] não lhe cabe direito subjetivo a esse exercício ou prestação”.

Spacca

Hely Lopes Meirelles (2005, p.188) afirma que a “autorização é ato administrativa discricionário e precário pelo qual o Poder Público torna possível ao pretendente a realização de certa atividade, serviço ou utilização de determinados bens particulares ou públicos, de seu exclusivo ou predominante interesse […]”. E completa o autor: “Não há direito subjetivo à obtenção ou à continuidade da autorização, daí por que a administração pode negá-la ao seu talante, como pode cassar o alvará a qualquer momento, sem indenização alguma”. (MEIRELLES, 2005, p.188).

Licença edilícia

Constata-se assim que a licença edilícia é ato vinculado, simples, individual, declaratório e negocial. É simples porque a competência para concedê-la é de único órgão. É individual porque produz efeitos a destinatário certo. É ato declaratório porque se presta apenas a declarar um direito que surge com o cumprimento dos requisitos normativos. E negocial porque gera obrigação para o requerente e para a administração pública, o que se perfectibiliza por meio do alvará de construção (SANTOS, 2001, p.69-72).

O seu caráter vinculado e declaratório fez com que, durante muito tempo, a licença edilícia fosse encarada como uma “remoção de obstáculos” (SILVA, 2006, p.443). No entanto, como já havia observado Meirelles (2005, p.167), tem na realidade legislativa, quase que por completo, sua vinculação. No entanto, com a dimensão constitucional que precisa estar presente em todos os atos do poder público, buscando a efetivação dos direitos fundamentais, a licença para edificação passa a ser um condicionamento de exigências, que precisa além de legalidade, legitimidade (SANTOS, 2001, p.68), o que demanda adequação do uso da propriedade através do direito de construir, à função social da propriedade e à função social da cidade, como forma de realizar o artigo 182 da Constituição.

Em livro sobre o tema (GUERREIRO FILHO, 2023), tivemos a oportunidade de compreender a política urbana estabelecida pela Constituição a partir dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) das Nações Unidas. Identificou-se que, por mais que não possuam força normativa na realidade brasileira, configuram-se na qualidade de soft law, devendo serem incorporadas, na medida do possível, por todos aqueles que devem aplicar as normas brasileiras, na conformação de seu conteúdo por meio da interpretação. Isso se reforça no campo da atuação jurisdicional e administrativa buscando sua conformação aos padrões de legitimidade, provenientes de diretrizes constitucionais, como neste caso, o desenvolvimento sustentável, princípio constitucionalmente reconhecido (artigo 225 da CF).

Essa compreensão se confirma e completa por meio do artigo 2º da lei nº10.257/2001 (BRASIL, 2001) (Estatuto da Cidade) quando especifica que é necessário ordenar a política urbana brasileira para implementar a função social da cidade e da propriedade. A estes, conjuga-se a implementação dos direitos fundamentais, dentre eles o meio ambiente equilibrado, o desenvolvimento sustentável e o direito à cidade.

Isso fica evidenciado no referido dispositivo do Estatuto da Cidade que a execução da política urbana brasileira deve garantir o direito a cidades sustentáveis, entendido como o direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infra-estrutura urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer, para as presentes e futuras gerações; planejar o desenvolvimento das cidades, a distribuição espacial da população e as atividades econômicas do município e do território sob sua área de influência, de modo a evitar e corrigir as distorções do crescimento urbano e seus efeitos negativos sobre o meio ambiente; ofertar equipamentos urbanos e comunitários, transporte e serviços públicos adequados aos interesses e necessidades da população e às características locais; adotar padrões de produção e consumo de bens e serviços e de expansão urbana compatíveis com os limites da sustentabilidade ambiental, social e econômica do município e do território sob sua área de influência;  garantir a justa distribuição dos benefícios e ônus decorrentes do processo de urbanização; proteger, preservar e recuperar o meio ambiente natural e construído, o patrimônio cultural, histórico, artístico, paisagístico e arqueológico; e garantir de condições condignas de acessibilidade, utilização e conforto nas dependências internas das edificações urbanas, inclusive nas destinadas à moradia e ao serviço dos trabalhadores domésticos, observados requisitos mínimos de dimensionamento, ventilação, iluminação, ergonomia, privacidade e qualidade dos materiais empregados.

Por condições sustentáveis para a vida em sociedade

Todos estes elementos normativos do Estatuto da Cidade, além de outros presentes na referida lei, deixam evidente a necessidade da administração pública buscar, inclusive no momento da avaliação e análise dos projetos e emissão da licença edilícia, a validação e consagração de condições sustentáveis para a vida em sociedade, como forma de garantir não apenas a legalidade do ato administrativo, mas também sua legitimidade. Isso não retira o caráter vinculado do ato de aprovação dos projetos e emissão das licenças, mas amplia o teor normativo de incidência sobre ele.

Dando um exemplo, Castilho (2010, p.113) afirma que, em razão do adensamento populacional e aumento de demanda por serviços provenientes da futura edificação, é necessário, além do respeito às prescrições da lei, levar em consideração “[…] a capacidade da infraestrutura disponível no local, o que deverá ser apreciado pelo poder local aquando da concessão da licença, ato administrativo de controle prévio”.

O autor afirma que não é possível permitir que o aumento da demanda coloque em colapso a capacidade dos sistemas implantados para a sociedade (CASTILHO, 2010, p.113).

Observar questões como esta é buscar a sustentabilidade no ato de aprovação do projeto e emissão da licença edilícia. O artigo 2º, VI, ‘c’, do Estatuto da Cidade, deixa isso literal, ao ordenar que a ocupação do solo deve evitar edificações que proponham o uso excessivo ou inadequado da infra-estrutura urbana.

Assim, a averiguação do conteúdo normativo do desenvolvimento sustentável e de todas as regras que a ele se alinhem deve absorver o conteúdo dos ODSs como o que há de mais aprimorado na organização social da governança global sob o tema, pelo fato de o Brasil ser consignatário de tais objetivos.

O Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ADI 6.148 (BRASIL, 2022), reconheceu a validade, ainda que não imediatamente, de padrões internacionais (da Organização Mundial da Saúde — OMS) e determinou que o Conama se adequasse a estes padrões no que se refere à qualidade do ar, no prazo máximo de um ano.

Isso permite concluir que uma regra de soft law (orientação da OMS) passa a ser referida e utilizada para produzir o conteúdo específico da regulamentação legal garantindo conformação do âmbito normativo diante de um bem jurídico, o que de certa forma também pode ser observado para os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável.

Desta forma, conclui-se que tanto autorizações como licenças precisam levar em conta na hora de suas avaliações, análises e expedições os atuais conteúdos e a melhor técnica no que se refere a garantia do desenvolvimento sustentável, elemento reconhecido pelo ordenamento jurídico pátrio como direito de todos, sobretudo nos termos do artigo 182 da Constituição, quando se refere ao bem estar de seus habitantes, e do artigo 225, quando relacionado ao direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado.

O fato de a licença edilícia ser um ato vinculado não permite que a análise legal realizada pela administração pública não leve as referências de conteúdo constitucional e por consequência, àquelas relacionadas ao direito ao desenvolvimento sustentável, em conta.

Pelo contrário, por menor que seja a margem de atuação de quem analisa planos e projetos de edificação, sempre deverá se levar em conta o conteúdo consagrado socialmente para a garantia do desenvolvimento sustentável (literalmente referidos no texto dos Estatuto da Cidade), o que atualmente ocorre no campo internacional, também válido para o Brasil, por meio dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas.

 

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Referência bibliográfica
BRASIL, Constituição da República Federativa do Brasil de 8 de outubro de 1988. DF: Presidência da República, 2024. Disponível em https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acessado em 14.3.2024.

BRASIL, Lei nº10.257 de 10 de julho de 2001 (Estatuto das Cidades). DF: Brasília: Presidência da República, 2024. Disponível em https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/leis_2001/l10257.htm. Acessado em 13.3.2024.

BRASIL, Supremo Tribunal Federal. ADI 6148, Relatora Min. Cármen Lúcia, Relator para o Acórdão Min. André Mendonça, j. 5.5.2022, DJe 14.9.2022. Disponível em https://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15353486920&ext=.pdf. Acessado em 13.3.2024.

CASTILHO, José Roberto Fernandes. Disciplina urbanística da propriedade: o lote e seu destino. 3 ed. São Paulo: Editora Pillares, 2010.

FIGUEIREDO, Lúcia Valle. Disciplina urbanística da propriedade. 2.ed. São Paulo: Malheiros, 2005.

GUERREIRO FILHO, Evaldo José. Direito constitucional urbanístico diante do Objetivo de Desenvolvimento Sustentável n.11 da Agenda 2030 da ONU. Revista dos Tribunais: São Paulo, 2023.

MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 30.ed. São Paulo: Malheiros, 2005.

SANTOS, Márcia Walquíria Batista dos. Licença urbanística. São Paulo: Malheiros, 2001.

SILVA, José Afonso da. Direito urbanístico brasileiro. 4.ed. São Paulo: Malheiros, 2006.

Autores

  • éadvogado, mestre em direito pela UFSC, professor da Faculdade de Direito Uniavan e da Escola Superior de Advocacia (ESA-SC), membro da Comissão de Direito Urbanístico da OAB-SC, procurador e secretário de Governo e Planejamento Estratégico de Itapema-SC (2006-2011), prefeito de Porto Belo-SC (2013-2016), assessor jurídico-parlamentar na Assembleia Legislativa de SC (2017-2018).

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