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Vivemos um movimento pendular na propaganda eleitoral antecipada?

11 de março de 2024, 11h23

Por Anna Paula Oliveira Mendes

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“O tema da propaganda eleitoral antecipada está coberto pelo manto da insensatez”, afirmou o professor Olivar Goneglian, em um dos escritos clássicas do Direito Eleitoral [1]. Para ele, proibir o político de se expor e se fazer conhecido é como proibir a sua própria existência.

A passagem acima foi pensada em um contexto anterior a 2009, em que a regra, no tema da propaganda antecipada, era a da proibição generalizada. O entendimento jurisprudencial vigente definia a prática como “aquela que leva ao conhecimento geral, ainda que de forma dissimulada,

(1) a candidatura, mesmo que apenas postulada,
(2) a ação política que se pretende desenvolver ou as
(3) razões que induzam a concluir que o beneficiário é o mais apto ao exercício da função pública” [2], o que ficou conhecido como “conceito tripartite”.

Ou seja: restava ao político fazer malabarismos para veicular a sua imagem — e, ainda assim, ele corria o risco de ter a sua conduta sancionada como uma propaganda “subliminar”, pois as Cortes Eleitorais poderiam analisar outros fatores como “imagens, fotografias, números e alcance da divulgação”.

Acadêmicos e doutrinadores levantaram a problemática do sistema então vigente, em razão da forte limitação à liberdade de expressão dos políticos e, consequentemente, à liberdade de informação dos cidadãos-eleitores. Só existe verdadeira liberdade quando a população consegue conhecer as suas possibilidades de escolha — e, isso, no eleitoral e na vida, se faz por meio da propaganda.

Definir um marco legal para o início da propaganda se justifica pelo ideal da igualdade de oportunidade entre os competidores. No entanto, isso não pode importar em uma restrição desproporcional à liberdade de expressão, que detém inclusive uma posição preferencial em razão da sua importância para o sistema democrático.

Em 2009, o artigo 36-A foi incluído na Lei das Eleições, por meio da Lei nº 12.034, o qual introduziu na legislação a figura do pré-candidato e passou a prever condutas que, ainda que praticadas antes do termo legal, não caracterizariam propaganda eleitoral antecipada, como a participação em entrevistas na rádio, televisão e internet.

Entretanto, as alterações introduzidas ainda foram insuficientes frente à necessidade de ampliação do debate político.

Posteriormente, com a promulgação da Lei nº 13.165/2015, as campanhas eleitorais brasileiras sofreram uma mudança significativa: a diminuição da sua duração em 40 dias. Com muito menos tempo para a realização da propaganda, uma limitação excessiva à pré-campanha não poderia mais continuar. Como reservar todo o debate a respeito do futuro de um país, estado ou município a um período tão curto?

Nesse contexto, o legislador alterou a redação do artigo 36-A da Lei nº 9.504/97, em um movimento de superação legislativa da jurisprudência. É como se ele pegasse o antigo conceito tripartite e simplesmente invertesse o sinal, afirmando: “isso não é propaganda antecipada”. A única exceção trazida no texto foi a seguinte: “a menos que contenha pedido explícito de voto”. Vejamos:

Art. 36-A.  Não configuram propaganda eleitoral antecipada, desde que não envolvam pedido explícito de voto, a menção à pretensa candidatura, a exaltação das qualidades pessoais dos pré-candidatos e os seguintes atos, que poderão ter cobertura dos meios de comunicação social, inclusive via internet: (Redação dada pela Lei nº 13.165, de 2015)
[…]
– 2o Nas hipóteses dos incisos I a VI do caput, são permitidos o pedido de apoio político e a divulgação da pré-candidatura, das ações políticas desenvolvidas e das que se pretende desenvolver. (Incluído pela Lei nº 13.165, de 2015) (grifos nossos)

Assim, o estado anterior de proibição generalizada dá lugar a um momento de ampla flexibilização dos atos permitidos na pré-campanha, uma vez que a jurisprudência do TSE, nesta fase, se mostrou deferente à escolha do legislativo [3]. No entanto, os últimos julgados do tema demonstram um retorno a maiores proibições. Dentre todos, destaca-se as seguintes teses acolhidas:

  • Teoria das palavras mágicas: de acordo com o entendimento firmado, “o pedido explícito de votos pode ser identificado pelo uso de determinadas ‘palavras mágicas’, como, por exemplo, ‘apoiem’ e ‘elejam’, que levam a concluir que o emissor está defendendo publicamente a sua candidatura”. As palavras mágicas são definidas como aquelas que têm o mesmo significado do pedido de voto. [4]
  • Análise quadrifásica: 4 critérios foram fixados para verificar a prática da propaganda eleitoral antecipada: (i) no primeiro momento, deveria ser analisado se a mensagem veiculada possuía conteúdo eleitoral; estando presente tal conteúdo, caberiam analisar, alternativamente, três outros critérios: (ii) existência de pedido explícito de votos; (iii) utilização de formas proibidas durante o período de propaganda eleitoral e (iv) violação ao princípio da igualdade de oportunidade entre os candidatos. [5]
  • Proibição à propaganda antecipada negativa: além do pedido explícito de “não voto”, o entendimento do TSE se firmou no sentido de a propaganda eleitoral antecipada, em sua modalidade negativa, também se verifica por meio da utilização de discurso que “desqualificando pré-candidato, venha a macular a sua honra ou imagem ou divulgue fato sabidamente inverídico” [6]

Para o pleito eleitoral de 2024, as balizas acima, que vão além do simples “pedido explícito de votos”, estão sedimentadas. Além delas, o plenário do Tribunal Superior Eleitoral, em um caso peculiar e difícil, optou pela condenação da prática de propaganda eleitoral antecipada, na modalidade positiva, não obstante a inexistência das chamadas “palavras mágicas” e de qualquer forma proibida de propaganda.

Naquela oportunidade, o TSE verificou o ato de propaganda antecipada pelo chamado “conjunto da obra”[7]. A análise daquele julgado fez surgiu nesta autora a inquietação que deu origem ao presente texto: estamos vivendo um movimento pendular no tema da propaganda antecipada? Se sim, isso é compatível com o princípio da liberdade de expressão e sua posição preferencial no Direito Eleitoral?

No paradigma em análise, o então pré-candidato à reeleição ao cargo de presidente da República, Jair Bolsonaro, realizou motociata, carreata e comício eleitoral, o que incluiu a participação em eventos religiosos.

Reprodução/Jair Messias Bolsonaro/Facebook

A relatora original do caso, ministra Maria Claudia Bucchianeri, entendeu pela ausência de prática ilícita, justamente por não se poder extrair, do discurso proferido pelo pré-candidato, a existência dos elementos que a jurisprudência exige: pedido explícito de votos ou palavras mágicas.

O ministro Lewandowski, que votou após a relatora, inaugurou a divergência e afirmou que o evento teve verdadeiro conteúdo eleitoral, em razão de se estar diante de uma motociata de grandes proporções e que reuniu milhares de pessoas na rua — 2,5 mil motocicletas e 7 mil pessoas.

A ministra Cármen Lúcia, que também era juíza da propaganda eleitoral naquele pleito, acompanhou a divergência, mas se fiou às palavras proferidas por Sóstenes Cavalcante, apoiador que discursou da seguinte maneira: “nós teremos um exército aliado com o nosso Presidente para que, se Deus der a ele mais um mandato…”; e a última frase: “um homem que tem esses valores não precisa nos pedir nada. Nós sabemos o que devemos fazer.”

Nas palavras da ministra Cármen:

Essa caracterização que fecha, com o que foi dito, para mim, teria, sim, essas instigações, sem falar ‘estou pedindo voto’. Estou dizendo que não precisa pedir. Está caracterizado para mim.

Por isso, com todas as vênias e sabendo que é um caso mais difícil mesmo, por causa da nossa jurisprudência, especialmente no que se refere à motociata [ato lícito em período pré-eleitoral], que eu já, em outras ocasiões, reafirmei, na esteira da jurisprudência, que não caracteriza, para mim, e realmente não caracteriza por si nenhum ato vedado, proscrito, mas, neste caso, eu acho que o conjunto me leva à conclusão oposta, com a devida vênia do que foi a conclusão da ministra.

 Como resultado, venceu a divergência. No entanto, a ideia de um “conjunto da obra” que indique a prática de propaganda pode ser aplicada de modo incompatível com a posição preferencial que o próprio TSE tem assegurado à liberdade de expressão nas campanhas eleitorais. Como conceito jurídico indeterminado, essa ideia pode ser utilizada para abrigar qualquer coisa, inclusive o retorno à ideia do pedido implícito ou subliminar de votos.

Por isso, não se pode pensar na aplicação desse julgado sem o devido conhecimento do contexto em que ele foi proferido e do caso concreto que o originou. Para reproduzir a sua conclusão, é preciso conhecer a sua razão de decidir. Casos difíceis demandam decisões únicas, forjadas pela particularidade dos fatos, que é exatamente o que os diferenciam dos demais.

Os ministros reconheceram estar diante de uma hipótese complexa, em razão da magnitude do evento, da quantidade de pessoas participantes e do fato do discurso se inserir em uma zona cinzenta a respeito da utilização das palavras mágicas.

Portanto, respondendo à pergunta do título: não creio que a propaganda eleitoral tenha vivido um movimento pendular completo. É um erro se utilizar da decisão mencionada para concluir que o TSE superou a sua jurisprudência até então existente [8].

A pré-campanha segue sendo guiada pelo ideal constitucional da liberdade de expressão e de uma maior flexibilidade na atuação dos pré-candidatos. Entender contrariamente a isso é retornar ao período do “manto da insensatez”.

Cabe aos aplicadores do Direito compreenderem a evolução das decisões do tema, e não apenas “recortarem e colarem” as ementas. Esse é o grande desafio do sistema da civil law brasileiro, que cada vez mais se aproxima da common law, mas sem que os atores envolvidos tenham recebido o devido preparo para isso. E isso não se refere apenas ao Direito Eleitoral.           

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[1] CONEGLIAN, Olivar. Propaganda Eleitoral: eleições 2014. 12ª Ed. Curitiba: Juruá, 2014.

[2] TSE, Acórdão 15.372, Rel. Min. Eduardo Alckmin, de 15.04.1999.

[3] Respe nº 51-24/MG (Rel. Min. Luiz Fux, j. em 18.10.2016) e AgR-AI nº 9-24/SP, Rel. Min. Tarcisio Vieira, julgados em 26.06.2018.

[4] Respe nº 2931, Rel. Min. Luís Roberto Barroso, DJE de 03/12/2018.

[5] AgRg em AI 924, Rel. Min. Tarcisio Vieira De Carvalho Neto, Dje de 22/08/2018 [voto do Min. Luiz Fux]; AgRg em RESPE nº 060027081, Rel. Min. Edson Fachin, DJe de 22/08/2019; AgRg em RESPE 060048973, Rel. Min. Luís Roberto Barroso, j. em 12/12/2019, DJe de 06/03/2020.

[6] Respe nº 060007223, Acórdão, Relator(a) Min. Luís Roberto Barroso, Relator(a) designado(a) Min. Tarcisio Vieira De Carvalho Neto, Publicação:  DJE – Diário da justiça eletrônica, Tomo 167, Data 10/09/2021; AgRg no Respe nº060006951, Acórdão, Min. Benedito Gonçalves, Publicação: DJE – Diário de Justiça Eletrônico, 24/03/2023

[7] Rec na RP 0600229-33, Rel. Originária Min. Maria Claudia, Rel. designado Min. Ricardo Lewandowski, Julgamento em 20/09/2022.

[8] A Ministra Cármen, posteriormente, completa o seu discurso e afirma “Eu estou votando no sentido […] de que estamos mantendo a jurisprudência. É preciso haver o pedido ou que se extraia, com clareza e com comprovação, que houve esse direcionamento, caso contrário nós teremos dificuldade, os advogados também, os candidatos também, os marqueteiros também, ao fazer este encaminhamento, nesta e em outras eleições”