Opinião

Desafios e temas relevantes do processo penal na nova gestão do STJ

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31 de maio de 2024, 15h26

Vivemos um contexto de espetacularização do Direito Penal fundamentado em processos midiáticos promovidos por anos de exposição de empresários, funcionários públicos e seus familiares, expostos em operações alardeadas com seus apelidos inusitados (“satiagraha”, “castelo de areia”, “greenfield”, “cevada”, “boca livre”, entre tantas outras), nas manhãs diárias de televisionamento da “lava jato” no ápice da operação, um processo penal de linchamento público no paredão da imprensa, com imagens de presos algemados nas delegacias de polícia.

Morte pela imagem

Ministro Herman Benjamin

É, nesse ponto, de se recordar digno voto do ministro Herman Benjamin, no TSE (Tribunal Superior Eleitoral). Em Habeas Corpus impetrado em favor do ex-governador Anthony Garotinho, que sofreu com indevida e abusiva exposição à imprensa ao ser arrancado de hospital onde se tratava para recolhimento à prisão, o ministro Benjamin foi contundente em afirmar que:

“é hora, sim, de nós, não apenas na Justiça Eleitoral, mas na Justiça como um todo, dizermos claramente que é inadmissível, no Estado de Direito, que qualquer investigado, qualquer um, o acusado, seja exposto na televisão, nos jornais. É a morte pela imagem fotográfica e televisiva. Isso é inadmissível, não só neste caso, que reverbera nacionalmente. Liguem a televisão à tarde ou nas primeiras horas da noite para verem situações pavorosas de presos que acabaram de ser recolhidos e que teoricamente estariam sob o amparo do Estado, porém, na verdade, são expostos como se fossem presas do Estado de Direito, quando deveriam ter a sua imagem assegurada” [1].

A esse respeito, há um importante projeto de lei visando a alteração do Código de Processo Penal, do qual o deputado federal Paulo Teixeira — atualmente ministro do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar — foi relator do parecer e propôs, em 30/5/2017,  redação ao artigo 594 daquele Código para determinar a vedação do acordo ou ajuste de qualquer autoridade com órgão da imprensa para explorar a imagem da pessoa submetida à prisão, sob pena de responsabilidade civil, administrativa (disciplinar e por improbidade) e penal (abuso de autoridade) [2].

Da justificativa do projeto constata-se que a proposta é motivada pela proteção à imagem do preso, eis que em qualquer país democrático a dignidade humana é respeitada no momento da prisão, instante em que a sociedade lamenta o fracasso das instâncias de controle.

Degeneração

Reprodução

É necessário distinguir o dispositivo constitucional do inciso IX, do artigo 93, que afirma a publicidade dos julgamentos, das condenações prévias pela imprensa baseadas na infâmia a qual, na prática, não permitem uma posterior “limpeza” do nome maculado de investigados e acusados. Recordemos o caso Lula, que foi submetido a condução coercitiva em março de 2016 (instrumento posteriormente considerado ilegal):

“Lula, que poderia ser escutado em seu apartamento, é cercado por uma tropa de guerra, incluindo helicópteros, e é deslocado até o aeroporto de Congonhas para o ato. Todo o deslocamento fazia parte de uma estratégia para durar mais tempo, causar desgaste e exibir o espetáculo de linchamento público” [3].

Fernando Augusto Fernandes, advogado criminalista

A prática comentada é uma degeneração do direito à publicidade dos atos, que é operada junto a agentes públicos de perfil autoritário que instrumentalizam e oferecem atos processuais penais em espetáculo aos noticiários, tornando o investigado em objeto, no que se assemelha a uma espécie de tortura [4].

‘Presas do Estado de Direito’

Outro tema relevante do qual deve se ocupar os ministros do STJ, sob a presidência do ministro Herman Benjamin, é o desnecessário indiciamento, previsto no artigo 2º da Lei nº 12.830/2013 como ato privativo do delegado de polícia, o qual de nada serve ao processo penal porque cabe ao Ministério Público o opinio delicti.

Sendo assim, a única (dis)função do ato é servir a uma condenação pública e antiquada na fase inquisitorial. Não é à toa que a Constituição prevê que o civilmente identificado não será submetido a identificação criminal (artigo 5º, inciso LVIII), pretendendo, assim, evitar a mesma humilhação de que o ministro Herman Benjamin tratou no voto proferido no TSE a que já nos referimos:

“Liguem a televisão à tarde ou nas primeiras horas da noite para verem situações pavorosas de presos que acabaram de ser recolhidos e que teoricamente estariam sob amparo do Estado, porém, na verdade, são expostos como se fossem presas do Estado de Direito, quando deveriam ter a sua imagem assegurada. Refiro-me, de modo específico, aos agentes de Estado que expõem essas pessoas, violando não apenas a sua dignidade, mas também princípios básicos do próprio Estado de Direito” [5].

Tornozeleira eletrônica

Mesmo alterações recentes, que à primeira vista podem parecer avanços civilizatórios do processo penal, merecem reflexão profunda para sua compatibilização com o Estado Democrático de Direito. É o caso do uso indiscriminado da tornozeleira eletrônica enquanto medida cautelar diversa da prisão (artigo 319, inciso IX, do Código de Processo Penal). Esse método de vigilância, aplicada desnecessariamente, tem exercido no mundo pós-moderno um papel de estigmatização de seus portadores, semelhante aos “Triângulos do Holocausto”, destinados aos judeus durante o domínio nazista da Alemanha.

O emprego abusivo da tornozeleira eletrônica causa uma grave ofensa à imagem, personalidade e dignidade humana, na medida em que expõe os acautelados no coliseu midiático com requintes de subjugamento e pré-condenação.

A lição de Darcy Ribeiro

Estamos entre os países que mais prendem no mundo — no Brasil são mais de 644 mil presos, de acordo com estudo recente da Secretaria Nacional de Políticas Penais [6]. Porém, somos um país que prende mal.

Quando dos debates acerca das dez medidas contra a corrupção propostas pelo Ministério Público Federal, tivemos a oportunidade de apontar que as “soluções” simbólicas por meio do Direito Penal conduzem a investimentos em penitenciárias, promotores e juízes, majorando o Estado Burocrático dos Bacharéis e negligenciando escolas, médicos, habitação, geração de empregos — não há verba para tudo [7].

Darcy Ribeiro dizia, na década de 1980, que se não investíssemos em escola faltaria dinheiro para os presídios. Investimentos no sistema de Justiça precisam ser feitos com inteligência, veja-se que há notícia de que menos de 10% dos casos de homicídio são solucionados, o que denota pouco tratamento de crimes violentos em comparação com muitas prisões por tráfico e crimes contra o patrimônio sem emprego de agressão.

O Superior Tribunal de Justiça contempla a alcunha de Corte Cidadã ao assentar em sua presidência o ministro Herman Benjamin, com sua nobre preocupação com a proteção da imagem e da dignidade humana [8], a qual citamos ipsis litteris: “a exposição da sua imagem é uma violação praticada diariamente no Brasil e que não podemos aceitar”. E ele conclui brilhantemente: “nós, ministros, não temos mais dignidade do que Zezinho que mora na favela da Maré, no Rio de Janeiro”.

 


[1] Cf. Habeas Corpus criminal nº 0602487-26.2016.6.00.0000, julgado pelo TSE em 19/12/2016.

[2] Cf. https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=490263

[3] FERNANDES, Fernando Augusto. Geopolítica da Intervenção: a verdadeira história da lava jato. São Paulo: Geração Editorial, 2020, p. 209

[4] MARCHIONI, Guilherme. Autoritarismo Líquido e Anticorrupção: medidas de exceção à espreita em discursos e normas de combate à corrupção. São Paulo: Contracorrente, 2024, p. 249.

[5] Cf. habeas corpus criminal n. 0602487-26.2016.6.00.0000 julgado pelo TSE em 19/12/2016.

[6] https://www.gov.br/senappen/pt-br/assuntos/noticias/senappen-lanca-levantamento-de-informacoes-penitenciarias-referentes-ao-primeiro-semestre-de-2023.

[7] Cf. artigo publicado no Estadão, 15 de janeiro de 2017. Disponível em:

https://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/prendemos-demais-eprendemos-

mal/

[8] Cf. habeas corpus criminal nº 0602487-26.2016.6.00.0000 julgado pelo TSE em 19/12/2016.

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