Razões críticas às preventivas decretadas no âmbito da violência doméstica
30 de maio de 2024, 17h20
A Lei Maria da Penha (nº 11.340/2006) foi importante avanço legislativo e institucional em nosso país para denunciar a cultura de violência doméstica e familiar existente historicamente em nossa sociedade e para estabelecer institutos jurídicos de prevenção e combate à violência contra a mulher.

Com objetivo de combater a cultura de violência de gênero, a lei reconhece a vulnerabilidade da mulher posta em um contexto de violência familiar, e assim estabelece diversos mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica [1], desde acolhimentos, medidas protetivas de urgência e, nos casos mais graves, a prisão preventiva de supostos agressores.
Desta forma, estamos de acordo com as disposições da Lei Maria da Penha e todo o esforço jurídico e institucional que se verifica para a atenuação da cultura de violência doméstica e familiar contra a mulher existente em nossa comunidade.
Preventivas por descumprimento de medidas protetivas
Entretanto, é necessário maior crítica ao tratamento judicial dispensado às decisões no âmbito de processos penais de violência doméstica, mais especificamente as decisões com baixo rigor técnico que decretam prisões preventivas de cidadãos a partir do suposto cometimento do crime de descumprimento de medidas protetivas de urgência, artigo 24-A [2] da Lei 11.340/2006, e fundamentadas para garantia da aplicação de medidas de proteção, artigo 313, inciso III [3], do Código de Processo Penal e ainda no sentimento de risco e receio de violência suportado pela vítima.
Apesar da intenção legislativa de prevenir e coibir a violência doméstica e familiar, entendemos que a aplicação das disposições da Lei Maria da Penha deve ser realizada com muita prudência e rigor técnico, sobretudo quando a análise judicial recair sobre supostas violações de medidas de proteção e pedidos de prisões preventivas.
O rigor técnico nesses casos é fundamental, pois inegavelmente se verifica na prática muitas denúncias falsas registradas por vítimas má intencionadas, que fazem mau uso dos importantes mecanismos da Lei Maria da Penha com intuito de prejudicar outrem, ou para se beneficiar em determinado contexto processual.
Por estas razões, pensamos que no âmbito judicial, para decretação de prisões preventivas por descumprimentos de medidas de proteção e por sentimento de risco suportado pelas vítimas, entendemos seja necessário maior critério e cautela dos magistrados na análise dessas medidas, pois como todos sabemos a prisão preventiva é a última alternativa a ser imposta pelo Estado, sob pena de banalização da custódia cautelar.
Versão unilateral
Vemos na prática decisões que concedem as medidas protetivas de urgência, muitas vezes fundamentadas apenas em boletins de ocorrências realizados com a versão unilateral da ofendida, e até aqui, entendemos estar razoável juridicamente a concessão de proteção as vítimas com base apenas em versão unilateral, porque essas vítimas possuem de fato e de direito a presunção de vulnerabilidade na relação de violência doméstica e familiar.

Entretanto, temos verificado em muitos casos que, após obter medidas de proteção com base em sua versão unilateral por boletim de ocorrência, em ato posterior a vítima procura novamente a polícia judiciária para registrar outro boletim de ocorrência, agora para comunicar o descumprimento pelo suposto agressor das medidas de proteção impostas anteriormente e o seu sentimento de risco e receio de sofrer nova violência.
Via de regra, esse segundo boletim de ocorrência, mesmo desacompanhado de elementos concretos que o sustentem, chega ao conhecimento do Judiciário, por meio de representação da autoridade policial pela prisão preventiva do suposto ofensor, com fundamentação no sentimento de risco e medo da vítima e para garantir a aplicação das medidas de proteção, conforme Art. 313, inciso III, do CPP.
Sem fundamentação
É realidade que pedidos de prisões preventivas nestas circunstâncias têm sido deferidos pelo Judiciário, com a decretação de prisões preventivas de supostos ofensores, mesmo sem fundamentação em elementos concretos, mas tão somente na versão unilateral da vítima — boletim de ocorrência — e no seu sentimento de medo e risco de sofrer violência.
É preciso destacar que, tecnicamente, o boletim de ocorrência, desacompanhado de elemento que o sustente, não pode sequer ser considerado um indício, conforme disposição do artigo 239 [4] do CPP. O referido dispositivo legal estabelece que: “considera-se indício a circunstância conhecida e provada, que, tendo relação com o fato, por indução concluir-se a existência de outra ou outras circunstâncias”.
Sentimento da vítima
No que refere ao sentimento de medo e receio da vítima, este por si só, não é capaz de colocar em risco nenhum dos requisitos do artigo 312 [5] do CPP — ordem pública, ordem econômica, a instrução criminal e a aplicação da lei penal. Assim, para decretação de regular prisão preventiva é necessário que o sentimento de medo e receio da vítima esteja acompanhado de fato ou elemento concreto e não apenas de sua versão unilateral – (boletim de ocorrência) -, sob pena de ser considerada prisão sem fundamentação.
É preciso fazer um destaque, o sentimento por si só, no caso o sentimento de medo e receio aqui abordado, não pode ser considerado um instituto jurídico capaz de respaldar um decreto de prisão preventiva, pois a prisão preventiva é uma medida cautelar do processo, sendo o sentimento de medo da vítima algo pessoal e psíquico que pode ocorrer independente da existência de conduta concreta do suposto agressor em relação ao processo ou a própria vítima.
O que se deve proteger sim é a vítima em relação as condutas concretas do agressor que lhe possam colocar em risco, mas não a proteção do sentimento por si só da vítima. Na linha do que leciona Túlio Viana e Lucas Miranda ao citarem a doutrina de Luiz Greco quando realiza crítica ao bem jurídico “sentimento”: “o fundamento da criminalização não estaria no fato de que elas ocasionariam medo em si, mas no fato de que, ao se depararem com determinadas condutas, os cidadãos teriam a sua liberdade restringida.” [6]
Destacamos que o §2º [7] do artigo 312 do CPP exige que “a decisão que decretar a prisão preventiva deve ser motivada e fundamentada em receio de perigo e existência concreta de fatos novos ou contemporâneos que justifiquem a aplicação da medida adotada”, da mesma forma o §1º do artigo 315 [8] do CPP dispõe que “na motivação da decretação da prisão preventiva ou de qualquer outra cautelar, o juiz deverá indicar concretamente a existência de fatos novos ou contemporâneos que justifiquem a aplicação da medida adotada”.
Conclusão
Portanto, não há uma exceção legislativa que permita, nos crimes de violência doméstica, a decretação de prisões preventivas sem a necessária fundamentação na existência de risco concreto à vítima. Assim, o sentimento de medo ou receio da vítima, desacompanhado de elemento concreto que lhe sustente não é suficiente para gerar a necessidade da custódia cautelar.
A nosso juízo, são carentes de fundamentação, artigo 93, inciso IX [9] da Constituição, e violam os Artigos 312, §2 e 315, §1º do CPP, e portanto flagrantemente ilegais, as decisões que decretam prisões preventivas a supostos agressores, sustentadas tão somente na existência de boletim de ocorrências — (versão unilateral) — dando conta do descumprimento de medida de proteção e no sentimento de risco e medo da vítima, quando desacompanhados de elementos concretos que os sustentem.
Concordamos que as vítimas de violência doméstica precisam de proteção estatal, entretanto essa proteção não pode ser ao preço de garantias processuais penais da cidadania. Assim destacamos a importância de maior rigor técnico por parte poder judiciário nestas situações.
[1] Lei nº11.340/2006, art. 1º Esta Lei cria mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8º do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Violência contra a Mulher, da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher e de outros tratados internacionais ratificados pela República Federativa do Brasil; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; e estabelece medidas de assistência e proteção às mulheres em situação de violência doméstica e familiar.
[2] Art. 24-A. Descumprir decisão judicial que defere medidas protetivas de urgência previstas nesta Lei: Pena – detenção, de 3 (três) meses a 2 (dois) anos.
[3] Art. 313. Nos termos do art. 312 deste Código, será admitida a decretação da prisão preventiva: III – se o crime envolver violência doméstica e familiar contra a mulher, criança, adolescente, idoso, enfermo ou pessoa com deficiência, para garantir a execução das medidas protetivas de urgência;
[4] Lei nº 3689/1941 – Art. 239. Considera-se indício a circunstância conhecida e provada, que, tendo relação com o fato, autorize, por indução, concluir-se a existência de outra ou outras circunstâncias.
[5] Lei nº 3689/1941 – Art. 312. A prisão preventiva poderá ser decretada como garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria e de perigo gerado pelo estado de liberdade do imputado.
[6] VIANA, Túlio. MIRANDA, Lucas. O direito ao sossego: uma alternativa ao falso bem jurídico “sentimento”. Revista Tribunal Regional Federal 1ª Região, Brasília-DF, nº2 – 2024.
[7] Lei nº 3.689/1941 – Art. 312, § 2º A decisão que decretar a prisão preventiva deve ser motivada e fundamentada em receio de perigo e existência concreta de fatos novos ou contemporâneos que justifiquem a aplicação da medida adotada
[8] Lei nº 3.689/1941, Art. 315, § 1º Na motivação da decretação da prisão preventiva ou de qualquer outra cautelar, o juiz deverá indicar concretamente a existência de fatos novos ou contemporâneos que justifiquem a aplicação da medida adotada.
[9] Constituição Federal Art. 93, inciso IX todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação;
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