Desastres climáticos: pautas político-jurídicas nacionais e internacionais
30 de maio de 2024, 15h28
No início de maio, chuvas intensas castigaram o Rio Grande do Sul. Isso decorre diretamente das mudanças climáticas e do fenômeno El Niño, que fazem com que o estado reste no meio de uma massa de ar quente e ar frio, recebendo grande parte da umidade da Amazônia [1] e tenha uma precipitação acima do normal [2], alcançando 461,0 mm.

Essa situação gerou um alagamento sem comparação na capital e na região metropolitana, para além de deslizamentos de terra e outros problemas relativos às diversas cheias dos rios que cortam o estado, afetando 469 de um total de 497 municípios do Rio Grande do Sul. Ademais, gerou mais de 160 mortes e fez com que cerca de 580 mil pessoas fossem deslocadas de suas residências. [3] Em virtude disso, este pode ser considerado o maior desastre climático do País, superando os desastres da região serrana do Rio de Janeiro de 2011 [4], assim como de Pernambuco de 2022 [5].
Os desastres climáticos são espécies de desastres (gênero). Estes, de acordo com os Draft Articles on the protection of persons in the event of Disasters, da ONU, são “a calamitous event or series of events resulting in widespread loss of life, great human suffering and distress, mass displacement, or large-scale material or environmental damage, thereby seriously disrupting the functioning of society”. [6]
Ou seja, os desastres, lato sensu, envolvem acontecimentos que saem da normalidade, expondo tanto a sociedade quanto a natureza a graves danos, sejam estes locais, regionais, nacionais ou globais. Ademais, consoante a doutrina, eles podem ser desencadeados lenta ou intensamente [7], assim como podem ter origem natural ou humana. Por isso, não são atos necessariamente restritos a fenômenos naturais.
É certo que existem desastres naturais, os quais não possuem nenhuma interferência do meio social para ocorrerem, como são os acontecimentos geofísicos. Entretanto, no antropoceno, em virtude da interferência do homem no meio ambiente, cada vez mais nota-se uma série de desastres que possuem interferência humana [8], como os desastres biológicos, exemplificado pela epidemia de Covid-19; socioambientais, como os rompimentos de barragem de Mariana e Brumadinho; ou mesmo climáticos, que nada mais são do que fenômenos meteorológicos (chuvas torrenciais, tornados, furacões), hidrológicos (inundações, aumento dos níveis dos mares) ou climatológicos (tempestades extremas, incêndios, secas) que ocorrem em virtude das mudanças climáticas [9], cuja origem está no aquecimento global gerado pela atividade humana, que promove o aumento de gases que geram o efeito estufa [10].
A grande questão é que esses desastres climáticos estão se tornando cada vez mais corriqueiros, não apenas no Brasil, como no globo [11], de modo que que as mudanças climáticas deveriam figurar no centro dos debates a nível internacional e interno.
Naquele, os debates centram-se na implementação do Acordo de Paris de 2015, sobretudo pelo fato de o mesmo não prever mecanismos vinculantes que imponham aos Estados-membros obrigações concretas de redução de emissões de gases de efeito estufa [12], logo, dependendo dos compromissos espontâneos propostos pelos próprios países, os quais estes tendem a desrespeitar [13]. Inclusive, em virtude disso, é que se vislumbra cada vez mais um aumento da litigância climática em face do poder público, exigindo que este assuma e se responsabilize “pelo controle e impactos do aquecimento global antropogênico e mudanças climáticas”. [14]

Casos de sucesso, como o reconhecimento da responsabilidade internacional da Suíça perante a Corte Europeia de Direitos Humanos em 9 de abril de 2024, na ação proposta pela associação Verein KlimaSeniorinnen Schweiz, demonstram a capilaridade do tema e a busca por alternativas à inexistência de obrigações jurídicas específicas, fazendo com que novos argumentos em torno de outras normas existentes emerjam. Neste caso, por exemplo, reconheceu-se a responsabilidade suíça pela violação do artigo 8 da Convenção Europeia de Direitos Humanos, o qual versa sobre a proteção da vida privada e familiar, que se vê diretamente afetado pela inação estatal frente às mudanças do clima, sendo imperativo que o País busque mitigar progressivamente os seus efeitos em prol da vida, saúde, bem-estar e qualidade de vida. [15]
Outro importante passo foi dado por meio da recente opinião consultiva do Tribunal de Direito do Mar, exarada em 21 de maio de 2024, em resposta à solicitação feita pela Comissão dos Pequenos Estados Insulares sobre Alterações Climáticas e Direito Internacional, formada por Antígua e Barbuda e Tuvalu. Neste, que é o primeiro de três pareceres sobre as mudanças climáticas que serão emitidos pelos tribunais internacionais nos próximos meses [16], o Tribunal considerou que as emissões de gases de efeito estufa colaboram sobremaneira para a poluição/degradação marinha, seja por meio do aquecimento, aumento e acidificação dos oceanos, seja por outras questões, sendo, portanto, necessário que os países atuem diligentemente para a sua prevenção, redução e controle, com base nos artigos 192 e 194(1) da Convenção de Direito do Mar. [17]
O trabalho do Brasil
Já no plano interno, o Brasil ainda tem um longo caminho a percorrer, não só diante do desastre gaúcho, mas especialmente se considerarmos que o país “tem cerca de 3 mil quilômetros quadrados de áreas vulneráveis a risco de desastres climáticos” e pelo menos 825 municípios criticamente vulneráveis a desastres, fazendo com que mais de 8 milhões de pessoas estejam em risco. [18]
Inicialmente, deve-se registrar que, por mais que se tenha a Política Nacional sobre Mudança do Clima (PNMC), instituída pela Lei Federal nº 12.187/09, a qual trabalha com as metas de redução de gases de efeito estufa brasileiras, estas não devem ser confundidas com as previsões do Decreto de nº 9.073.17, que internaliza o Acordo de Paris, “havendo uma ambígua duplicidade de metas climáticas no sistema jurídico climático nacional”. [19]
Em segundo lugar, para além de inexistir “um sistema completo, coerente e operacional das contribuições nacionalmente determinadas brasileiras” [20], não há um dispositivo específico constitucional que possa guiar as ações internas, sobretudo, as empresariais, para garantir uma estabilidade climática. Há, nesse sentido, apenas uma proposta de emenda constitucional — a PEC nº 233/19, que almeja incluir no artigo 170, inciso X, a “manutenção da estabilidade climática”, determinando que o poder público adote “ações de mitigação da mudança do clima e adaptação aos seus efeitos adversos”. Contudo, ela ainda aguarda a designação de relator.
Há outros projetos importantes, como o PL 2.963/23, proposto pela deputada federal Duda Salabert (PDT-MG), buscando alterar a Política Nacional de Educação Ambiental para incluir a educação sobre as causas e consequências das mudanças climáticas no Brasil. Na justificativa, a deputada cita que além de políticas emergenciais para desastres climáticos, é importante que se construía uma consciência ecológico-climática no País. O projeto, porém, ainda aguarda votação. [21]
Outro PL importante é o de nº 4.129/21, proposto pela deputada federal Tábata Amaral (PSB/SP), que dispõe sobre diretrizes gerais para a elaboração de planos econômicos e socioambientais de adaptação às mudanças climáticas estaduais e municipais para fins de reduzir vulnerabilidades e exposição de riscos, em complemento ao PNMC. [22]
Este ainda aguarda a apreciação de emendas ao projeto. Ainda, cita-se o PL 1594/24, proposto pela deputada federal Erika Hilton (PSOL/SP), com vistas a criar a Política Nacional dos Deslocados Ambientais e Climáticos (PNDAC), na tentativa de amparar os desabrigados em decorrência de eventos climáticos extremos — uma iniciativa importante, particularmente, para promover o direito à moradia digna e segura aos deslocados por meio de instrumentos econômicos, financeiros e socioambientais, inclusive, em caráter emergencial. [23] O projeto tramita em caráter de urgência.
Ao cabo, menciona-se uma série de PLs recentemente propostos pela deputada federal Fernanda Melchionna (PSOL/RS) após as enchentes do Rio Grande do Sul. [24] O PL 1.844/24 visa não só ao estabelecimento de um auxilio financeiro para o pagamento de alugueis no período de calamidade para famílias de baixa renda afetadas pelas enchentes, como também versa sobre a suspensão de pagamento de alugueis para profissionais autônomos, microempreendedores individuais e pequenos empresários que sejam locatários de estabelecimentos comerciais.
Já o PL 1.647/24 pretende insertar as vítimas da calamidade do RS de Imposto de Renda. Ao seu turno, o PL 1.525/24 busca alterar o Código de Defesa do Consumidor para considerar abusivas as práticas que coloquem o consumidor em especial situação de vulnerabilidade, inclusive, aquelas cometidas em contextos de desastres. Por fim, o PL 1.896/24 tem o condão de instituir um auxílio emergencial aos micro e pequenos empreendedores da área da cultura do RS.
[1] FRANÇA, V. Entenda o motivo de tanta chuva no Sul. Veja, 8 mai. 2024. Disponível em: https://veja.abril.com.br/agenda-verde/entenda-por-que-chove-tanto-no-rio-grande-do-sul
[2] A média de precipitação de maio para o estado é de 112,8 mm, segundo dados de 1991 a 2020, fazendo com que o mesmo mês em 2024 registre 408% a mais de chuvas. Cf. MAIO de 2024 é o mês mais chuvoso da história de Porto Alegre. Poder360, 24 mai. 2024. Disponível em: https://www.poder360.com.br/brasil/maio-de-2024-e-o-mes-mais-chuvoso-da-historia-de-porto-alegre.
[3] RS tem 163 mortos e 65 desaparecidos após cheias. Agora no Vale, 24 mai. 2024. Disponível em: https://agoranovale.com.br/noticias/riograndedosul/rs-tem-163-mortos-e-65-desaparecidos-apos-cheias/
[4] Apesar do número de mortos nesse desastre climático ter restado na casa de 900 pessoas, em relação ao número de municípios (no RS, 469 ao todo) e da população toda afetada (no RS, mais de 2,34 milhões de pessoas), o do Rio Grande do Sul pode ser considerado proporcionalmente maior. G1. Em 2011, chuva na Região Serrana deixou mais de 900 mortos. G1, 15 fev. 2022. Disponível em: https://g1.globo.com/rj/regiao-serrana/noticia/2022/02/15/em-2011-chuva-na-regiao-serrana-deixou-mais-de-900-mortos.ghtml
[5] Foram registradas 126 mortes em Recife, Pernambuco, em virtude de enchentes e deslizamentos, proveniente de chuvas internas, que ficaram 140mm acima da média do mês de maio. NOBREGA, F. Maior tragédia do século em Pernambuco, mortes pelas chuvas de 2022 superam total da cheia de 1975 Folha de Pernambuco, 02 jun. 2022. Disponível em: https://www.folhape.com.br/noticias/maior-tragedia-do-seculo-em-pernambuco-mortes-pelas-chuvas-de-2022/228963/
[6] ONU. Draft Articles on the protection of person in the event of disasters. 2016. Disponível em: https://legal.un.org/ilc/texts/instruments/english/draft_articles/6_3_2016.pdf.
[7] CARVALHO, D. Desastres Ambientais e sua regulação jurídica: deveres de prevenção, resposta e compensação ambiental. 2. ed. São Paulo: RT, 2020. Edição do Kindle.
[8] Idem.
[9] A Convenção Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (UNFCCC, na sigla em inglês), define mudanças climáticas como “uma mudança de clima que possa ser direta ou indiretamente atribuída à atividade humana, que altere a composição da atmosfera mundial e que se some aquela provocada pela variabilidade climática natural observada ao longo de períodos comparáveis”. Cf. NAÇÕES UNIDAS. UNFCCC. 1992. Disponível em: https://unfccc.int/resource/docs/convkp/conveng.pdf. Tradução nossa.
[10] SQUEFF, T. Análise Econômica do Direito Ambiental: perspectivas internas e internacional. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2016.
[11] No mesmo momento em que o RS enfrenta o desastre climático, outros acontecimentos ocorrem noutras localidades ao redor do globo, como na África Oriental (particularmente Quênia, Tanzânia, Somália, Etiópia, Uganda e Burundi), em que 473 pessoas morreram e mais de 410 mil foram deslocadas por chuvas torrenciais e inundações. LUSA. Chuvas na África deixam pelo menos 473 mortos e 1,6 milhão de afetados. Agência Brasil, 22 mai. 2024. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/internacional/noticia/2024-05/chuvas-na-africa-deixam-pelo-menos-473-mortos-e-16-milhao-de-afetados . Em 2023, a China também enfrentou problemas com fortes chuvas, gerando mais de 110 mil deslocados climáticos. Cf. CHUVAS torrenciais tiram mais de 100 mil de casa na China. O Globo, 27 abr. 2024. Disponível em: https://oglobo.globo.com/mundo/noticia/2024/04/27/chuvas-torrenciais-tiram-mais-de-100-mil-de-casa-na-china.ghtml . Também no final de 2023, chuvas intensas afetaram a Austrália em virtude do furacão Jasper – na região de Cairns, quando em menos de 40 horas, choveu 600mm, que é mais do que o triplo esperado para todo o mês de dezembro (182mm), causando um impacto de $649 milhões para a economia da região. CYCLONE brings floods, crocodiles sightinga in Australia’s northeast. RTE, 18 dez. 2023. Disponível em: https://www.rte.ie/news/world/2023/1218/1422551-australia-floods/ .
[12] A meta, por meio do Tratado, era de evitar um aumento do aquecimento global acima de 2°C, fazendo com que ele restasse em até 1,5°C acima dos níveis pré-industriais. Para tanto, seria necessário reduzir as emissões de gases de efeito estufa global entre 28% e 42% até 2030. A probabilidade (otimista!) de que isso ocorra, porém, é de 14%. PEIXOTO, R. ONU: metas do Acordo de Paris já são insuficientes para evitar aquecimento crítico de 1,5°C. G1, 20 nov. 2023. Disponível em: https://g1.globo.com/meio-ambiente/noticia/2023/11/20/onu-metas-do-acordo-de-paris-ja-sao-insuficientes-para-evitar-aquecimento-critico-de-15c.ghtml
[13] É o caso do Brasil, que “vem aumentando suas emissões de gases de efeito estufa (GEE), ao invés de reduzi-las para cumprir as metas propostas no Acordo de Paris. Os dados […] apresentados […] no espaço Brazil Climate Action Hub da Cop 27 [em novembro de 2022] […] indicam que as emissões líquidas avançaram 21,4% nos últimos sete anos, saltando de 1.446 milhões de toneladas (MtCO2e) em 2015 para 1.756 MtCO2e em 2021. A meta [era de] que o Brasil cheg[asse] a 2025 emitindo 1.614 MtCO2e e a 2030 com 1.281 MtCO2e”. COP27: Brasil está se distanciando das suas metas propostas ao Acordo de Paris. IEMA, nov. 22. Disponível em: https://energiaeambiente.org.br/cop27-brasil-esta-se-distanciando-das-suas-metas-propostas-ao-acordo-de-paris-20221110 .
[14] CARVALHO, D.; BARBOSA, K. Litigância climática como estratégia jurisdicional ao aquecimento global antropogênico e mudanças climáticas. Revista de Direito Internacional, Brasília, v. 16, n. 2, p. 54-72, 2019
[15] CEDH. Verein KlimaSeniorinnen Schweiz and Others v. Switzerland – 53600/20. Judgment [GC] 9.4.2024. Disponível em: https://hudoc.echr.coe.int/eng#{“itemid”:[“002-14304”]}
[16] Refere-se aos pareceres da Corte Internacional de Justiça e da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Para esta, cf. o Amicus Curiae do GEPDI/UFU, subscrito por SQUEFF, T. el al., em https://corteidh.or.cr/sitios/observaciones/OC-32/14_uni_Federal_Uberlandia.pdf (também disponível na Revista de Direito Ambiental n. 114, 2024 – no prelo).
[17] ITLOS. OC Mudanças Climáticas e Direito Internacional. Hamburgo, 21 mai. 2024. Disponível em: https://www.itlos.org/fileadmin/itlos/documents/cases/31/Advisory_Opinion/C31_Adv_Op_21.05.2024_orig.pdf. §§ 235, 243, 396 e 400.
[18] BRASIL. Pesquisadores brasileiros fazem recomendações. MCTI, 31 jan. 2023. Disponível em: https://www.gov.br/cemaden/pt-br/assuntos/noticias-cemaden/pesquisadores-brasileiros-fazem-recomendacoes-analisando-as-repentinas-inundacoes-e-deslizamentos-de-terra-em-recife-pe-apos-fortes-chuvas-ocorridas-em-maio-de-2022
[19] CARVALHO, D. Constitucionalismo climático como fundamento transnacional aos litígios climáticos. Revista de Direito Internacional, Brasília, v. 19, n. 1, p. 192-205, 2022, p. 196.
[20] Idem.
[21] FONSECA, B. Bancada bolsonarista no Congresso barra avanço de projeto que institui educação climática. Visão Socioambiental, 16 mai. 2024. Disponível em: https://visaosocioambiental.com.br/bancada-bolsonarista-no-congresso-barra-avanco-de-projeto-que-institui-educacao-climatica/ .
[22] SENADO vota regras para planos de adaptação à mudança do clima nesta terça. Agência Senado, 13 mai. 2024. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2024/05/13/senado-vota-regras-para-planos-de-adaptacao-a-mudanca-do-clima-nesta-terca
[23] GOUVEIA, A. Erika Hilton propõe criação de Política Nacional para Refugiados Climáticos. Correio Braziliense, 09 mai. 2024. Disponível em: https://www.correiobraziliense.com.br/politica/2024/05/6853883-erika-hilton-propoe-criacao-de-politica-para-refugiados-climaticos.html
[24] Cf. https://www.camara.leg.br/busca-portal?contextoBusca=BuscaProposicoes&pagina=1&order=data&abaEspecifica=true&filtros=%5B%7B%22descricaoProposicao%22%3A%22Projeto%20de%20Lei%22%7D%5D&q=autores.ideCadastro%3A%20204407%20AND%20dataApresentacao%3A%5B2024-01-01%20TO%202024-12-31%5D
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