Com distribuição recorde, STJ abre mão de controlar aplicação das teses que fixa
29 de maio de 2024, 9h45
*Reportagem publicada no Anuário da Justiça Brasil 2024, lançado no Supremo Tribunal Federal. A versão impressa está à venda na Livraria ConJur (clique aqui). Acesse a versão digital pelo site do Anuário da Justiça (anuario.conjur.com.br).

Capa da edição 2024 do Anuário
Diante da necessidade de ter um mínimo de razoabilidade no trabalho, o Superior Tribunal de Justiça, corte que recebeu distribuição recorde de 452 mil recursos em 2023, trabalha hoje com uma posição fixa: ele define precedentes, mas quem os interpreta e aplica são as instâncias ordinárias. Isso significa que, se algum juiz ou tribunal aplica mal ou simplesmente ignora uma tese de repetitivos, que é vinculante, vai caber recurso, mas a parte terá de passar pelo extenso trâmite da admissibilidade e julgamento até que eventualmente chegue à instância especial, onde provavelmente será contemplada com uma decisão monocrática favorável.
A exceção são os casos penais, em que o STJ tem admitido amplas possibilidades de uso de Habeas Corpus para discutir não apenas causas em que o direito de locomoção do réu está ameaçado, mas também ilegalidades praticadas no curso do processo. Mesmo nessas oportunidades, as decisões unipessoais imperam, diante do imenso volume que chega ao tribunal. Em 2023, de acordo com dados da corte, 77% das decisões foram monocráticas.

Sede do Superior Tribunal de Justiça. Crédito: Marcello Casal Jr./Agência Brasil
Há um instrumento que seria muito mais efetivo e rápido quando os precedentes deixam de ser aplicados, mas que não é aceito pelo STJ: a reclamação. Ela está prevista no artigo 102, inciso I, alínea “l” da Constituição Federal e serve para a preservação da competência e da autoridade das decisões dos tribunais, sempre que forem informados pelas partes de algum desrespeito ou descumprimento. O STJ não admite que seja usada para discutir a aplicação errada ou mesmo a não aplicação de suas teses.
O veto estabelecido pela jurisprudência cria uma distorção no sistema: o STJ fixa posição e exige seu cumprimento, mas abre mão de fazer qualquer tipo de controle sobre isso. E assim o faz porque admitir o uso da reclamação significaria receber e julgar cada descumprimento de precedente, o que aumentaria ainda mais o volume de processos. Cria-se um verdadeiro dilema, capaz de impactar a autoridade das decisões do tribunal e de influenciar na segurança e proteção do jurisdicionado.

STJ em 2022 e em 2023
Até hoje, venceu o pragmatismo, diante do volume de trabalho. A posição restritiva do STJ foi fixada pela Corte Especial em 2020. Relatora, a ministra Nancy Andrighi pontuou que dar ao tribunal o controle da aplicação individualizada de suas teses em cada caso concreto geraria um “descompasso com a função constitucional” do STJ, posição que é defendida por outros ministros. Sérgio Kukina, por exemplo, brinca que seria necessário ao STJ afetar reclamações para julgar em recursos repetitivos, graças ao volume delas que chegaria à corte. “E o que é mais perigoso: que, em centenas de reclamações oriundas de mesmo repetitivo, nós acabemos por perceber que entre nós cada um estará a dar uma interpretação diferente”, disse, em evento no STJ.
Ribeiro Dantas, autor de um estudo sobre o tema que virou livro – A Reclamação Constitucional no Direito Brasileiro – vê sentido na postura do tribunal. Com sua visão construtiva, daquelas que se recusa a ver apenas problemas na cria-ção de um recente sistema de precedentes, vislumbra alguma saída para o problema. “Nós estamos em um momento em que um determinado assunto não está inteiramente resolvido e o país precisa construir uma solução, algum tipo de ‘reclamação relevante’ que tenha uma titularidade especial”, disse, também em evento.

Casos novos por classe processual
O maior exemplo do trabalho que daria abrir demais o uso da reclamação vem do Supremo Tribunal Federal, que tem vivido uma explosão de pedidos. Lá, há menos amarras: esse instrumento serve para adequar decisão de tribunal à orientação firmada em controle concentrado de constitucionalidade e também discutir a observância do regime da repercussão geral. E ainda para esclarecer a extensão do conteúdo da decisão paradigma, no que se chama de “função integrativa”. A evolução do uso da reclamação vem sendo balizada pelo próprio STF, onde ela surgiu com base na doutrina dos poderes implícitos (implied powers), delineada na Suprema Corte dos Estados Unidos. Ela só apareceu no ordenamento jurídico brasileiro a partir da Constituição de 1988 e foi estendida a todos os tribunais pelo Código de Processo Civil de 2015.
Na parte da doutrina que defende o cabimento da reclamação contra desrespeito de tese vinculante do STJ, a experiência do Supremo aparece como argumento forte. Se a corte que é a guardiã da Constituição a cumpre admitindo esse uso da reclamação, por que o STJ pode fazer diferente? O constitucionalista Lenio Streck, por exemplo, ainda indaga: se os Tribunais de Justiça têm a obrigação de garantir a observância de precedentes do STJ, então por que o próprio STJ não teria o dever de exercer este mesmo papel, no âmbito de decisões oriundas dos Tribunais Regionais? “Parece inadequado que o tribunal que fixa uma tese ou uma súmula não queira vigiar o sistema. Não parece haver razão jurídica para que a reclamação não seja aceita — a não ser o de política judiciária, que, todavia, não é um argumento constitucional”, escreveu, em coluna na revista eletrônicaConJur. Há uma ideia entre ministros, advogados e estudiosos de que o STJ tem um encontro marcado com o assunto.

Índice de recursos concedidos e negados
A parte prática do problema é a mais preocupante. Sem o uso da reclamação, a correção de rumos na interpretação dos precedentes fica arrastada e até invisível. E ela frequentemente é necessária. Um bom exemplo é o do Tema 677 dos repetitivos, que trata dos encargos do devedor após o depósito judicial na execução de uma dívida. A tese foi firmada em 2014 e acabou se desdobrando em acórdãos de colegiados do próprio STJ, ao ponto em que essa dispersão jurisprudencial chegou às instâncias ordinárias.
Em 2020, a ministra Nancy Andrighi percebeu o problema e sugeriu a revisão da tese, porque não estava mais cumprindo adequadamente sua finalidade. A nova posição é de que, na fase de execução, quando um devedor deposita o valor referente à dívida, no todo ou em parte, ele não necessariamente fica liberado de pagar juros e correção monetária. Quando o dinheiro for entregue ao credor, deve ser acrescido dos juros e correção monetária pagos pelo banco no período em que a quantia ficou depositada. O que ainda faltar para atingir o total da condenação deverá ser pago pelo devedor, nos termos do título judicial. O STJ já recebeu reclamações informando da aplicação errônea do precedente revisado, mas não as admitiu, com base na jurisprudência.

Tráfico lidera lista de temas mais recorrentes na corte
Sem controlar as teses que fixa, o STJ continua sendo um tribunal que recebe excessivo número de processos, o que o obriga a se apertar como pode para ser mais eficiente. A identificação de temas para julgamento sob o rito de repetitivos vem sendo amplamente feita com ajuda da tecnologia, no chamado Sistema Athos. Por meio dele, o tribunal identifica antes da triagem os processos com a mesma controvérsia. Com esse dado, a Comissão Gestora de Precedentes e de Ações Coletivas (Cogepac) prepara um relatório recomendando ao relator da ação a afetação.
Em 2023, 72% dos temas afetados contaram com a ajuda desse robô. A busca por eficiência ainda levou o tribunal a adotar tolerância zero com o envio de recursos fora do padrão pelos tribunais de apelação. Desde janeiro de 2024, as peças nessa situação passaram a ser devolvidas às cortes, para adequação. A exigência é de preenchimento dos chamados metadados — conjunto de dados processuais da autuação, que são importantes porque vinculam todas as etapas de tramitação. A falta dessas informações afeta a distribuição dos recursos, dificulta a definição de competência de julgamento, de prevenção e de impedimento dos julgadores. Impacta até a urgência, quando não há a correta marcação de existência de pedido liminar. Internamente, o STJ precisa indexar as informações manualmente em cada um desses casos para permitir a triagem, feita justamente com ajuda de robôs.

Em 2023, STJ julgou menos repetitivos
Um tema de suma importância que não teve avanços ainda é o do filtro da relevância. Criado em 2022 pela Emenda Constitucional 125, ele permite que a corte só aprecie as questões federais que as partes comprovem ser relevantes, o que deve ser suficiente para reduzir de 30% a 40% do número excessivo de processos que chegam ao tribunal anualmente. Nem todo processo precisará ser filtrado. O Congresso fixou cinco causas de relevância presumida: ações penais; ações de improbidade administrativa; ações cujo valor ultrapasse 500 salários mínimos (R$ 706 mil); ações que possam gerar inelegibilidade; e ações que possam contrariar a jurisprudência do STJ.

Instituições com mais recursos no STJ
Por decisão do próprio STJ, o filtro só será colocado em prática após o Congresso editar lei de regulamentação, e é aí que está o problema. Em dezembro de 2022, o tribunal enviou ao Congresso um anteprojeto com algumas sugestões, dentre as quais está a previsão de que as decisões tomadas serão vinculantes. Ou seja, uma vez fixadas, terão que ser obedecidas pelas instâncias ordinárias, inclusive quanto à inexistência de relevância. Só em abril de 2024, a OAB encaminhou sua própria versão de anteprojeto, rejeitando essa função vinculante, sob o argumento de que isso levaria ao engessamento total do sistema de controle da legislação federal.
A partir de agosto, o STJ terá outro presidente para tentar sensibilizar o Congresso a tratar do tema com celeridade: Herman Benjamin foi eleito em abril para o biênio 2024-2026. Ele atuará com Luis Felipe Salomão como vice. Mauro Campbell será o corregedor nacional de Justiça. Uma das missões de Herman será, também, promover pacificações internas. Sua eleição foi a última feita por aclamação. A praxe até então era dar a presidência a cada integrante, a partir da antiguidade. Por sugestões de seus membros, o Pleno definiu que, em 2026, a eleição será feita de acordo com o regimento interno: por votação secreta.
Ex-presidente do STJ, João Otávio de Noronha justificou a mudança pelo surgimento de arestas entre os ministros. “Notícias saem de dentro desta casa para a imprensa, contra colegas. Há clima de hostilidade nas sessões. A gente não transita mais como transitava antigamente. Acredito que o momento é de resgatar as formalidades, em conformidade com o regimento interno.” Segundo ele, é preciso resgatar o prestígio do tribunal. Definitivamente, não é esse o tipo de reclamação que o STJ quer admitir.
Assista à cerimônia de lançamento do Anuário da Justiça Brasil 2024:
ANUÁRIO DA JUSTIÇA BRASIL 2024
18ª Edição
ISSN: 2179981-4
Número de páginas: 276
Versão impressa: R$ 50, à venda na Livraria ConJur
Versão digital: disponível gratuitamente no app “Anuário da Justiça” ou pelo site anuario.conjur.com.br
O Anuário da Justiça Brasil 2024 contou com o apoio da Fundação Armando Alvares Penteado – FAAP.
Anunciaram nesta edição do Anuário da Justiça Brasil:
Abdala Advogados
Advocacia Fernanda Hernandez
Antonio de Pádua Soubhie Nogueira Advocacia
Arruda Alvim & Thereza Alvim Advocacia e Consultoria Jurídica
Ayres Britto Consultoria Jurídica e Advocacia
Barroso Fontelles, Barcellos, Mendonça Advogados
Basilio Advogados
Bottini & Tamasauskas Advogados
Cançado e Barreto Advocacia S/S
Cecilia Mello Sociedade de Advogados
Cesa — Centro de Estudos das Sociedades de Advogados
Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil
Corrêa da Veiga Advogados
Costa & Marinho Advogados
Cury & Cury Sociedade de Advogados
Décio Freire Advogados
Dias de Souza Advogados
DMJUS
D’Urso & Borges Advogados Associados
FAAP
Feldens Advogados
Fidalgo Advogados
Fontes Tarso Ribeiro Advogados Associados
Fux Advogados
Gomes Coelho & Bordin Sociedades de Advogados
Hasson Sayeg, Novaes e Venturole Advogados
JBS S.A.
Justino de Oliveira Advogados
Laspro Advogados Associados
Leite, Tosto e Barros Advogados
Lollato, Lopes, Rangel, Ribeiro Advogados
Machado Meyer Advogados
Marcus Vinicius Furtado Coêlho Advocacia
Mauler Advogados
Mendes, Nagib e Luciano Fuck Advogados
Milaré Advogados
Moraes Pitombo Advogados
Multiplan
Nelio Machado Advogados
Nery Sociedade de Advogados
Oliveira Lima & Dall’Acqua Advogados
Ordem dos Advogados do Brasil — São Paulo
Original 123 Assessoria de Imprensa
Pardo Advogados Associados
Prevent Senior
Sergio Bermudes Advogados
Tavares & Krasovic Advogados
Tojal Renault Advogados
Warde Advogados
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