Efeitos da calamidade no Rio Grande do Sul na locação de imóveis
28 de maio de 2024, 6h37
O Rio Grande do Sul enfrenta a maior tragédia natural de sua história, ocasionada por eventos climáticos, o que culminou na decretação de estado de calamidade pública, nos termos dos Decretos estaduais nº 57.596, de 1º de maio de 2024, e nº 57.600, de 4 de maio de 2024, os quais foram igualmente reconhecidos em nível nacional pelo Decreto Legislativo nº 36, de 7 de maio de 2024.

Os efeitos trazidos por esses eventos climáticos resultaram em severas perdas de vidas, milhares de desalojados, causando um prejuízo social e econômico de grande magnitude, o qual só vem sendo um pouco arrefecido ante a solidariedade do povo brasileiro.
Nesse contexto, diversas são as inquietudes — entre elas, as relações locatícias de imóveis urbanos.
Os eventos ocorridos no RS configuram-se como caso fortuito e força maior, visto que se verificam no fato necessário, cujos efeitos não se poderiam evitar ou impedir, nos termos do artigo 393 do Código Civil. Desse modo, não respondem o locador e o locatário pelos prejuízos deles resultantes, salvo se tiverem alocado para si esse risco contratualmente, o que não é comum.
Contudo, afirmar que os eventos climáticos se constituem como caso fortuito e força maior não se traduz em uma aplicação imediata a todas as relações contratuais, eis que existe uma certa gama de contratos de locação em que os imóveis se mantiveram íntegros, não havendo em se falar da aplicação da excludente de responsabilidade. Em outras palavras, deverá haver, no caso concreto, a demonstração dos efeitos e dos prejuízos causados para, então, ser considerada a aplicação de caso fortuito e força maior.
De outro lado, naqueles casos em que os imóveis locados foram afetados, resultando em danos, sobretudo estruturais, pergunta-se: quem será o responsável por tais reparos? Uma vez que o artigo 22, inciso III da Lei 8.245/1991, prevê que o locador é obrigado a manter, durante a locação, a forma e o destino do imóvel, é dele a responsabilidade por arcar com tais custos, em uma situação em que o contrato não prevê uma alocação diferente de riscos, nem o locatário tenha incorrido de forma culposa para que os danos ocorressem.
A jurisprudência corrobora nesse sentido, sendo que várias decisões se valem do brocardo jurídico res perit domini ou no vernáculo, “a coisa perece para o dono”. Nesse sentido, se manifestou o STJ [1] e o TJ-SP [2], no âmbito de situações em que os imóveis foram totalmente destruídos por eventos da natureza.

Da mesma forma como ocorre nos eventos de caso fortuito e força maior, se o locador não tiver se obrigado a indenizar o locatário, isso se aplica aos bens móveis do locatário que, eventualmente, forem danificados em decorrência dos climáticos. Ou seja, terá o locatário a obrigação de recompor os bens móveis que foram levados ou danificados, exceto no caso de ter contratado seguro para tanto, não sendo o locador obrigado a indenizar eventos resultantes de caso fortuito e força maior [3].
Essa hipótese poderia comportar exceções, caso restasse comprovado que o imóvel tivesse sido entregue pelo locador ao locatário em desconformidade, de sorte a não trazer a proteção adequada em situações normais de temperatura e pressão.
Aqui, talvez resida uma das questões mais controversas dos efeitos provocados pelo evento climático nas locações, pois além de considerar cada contrato para se extrair uma solução adequada, se faz necessário termos uma ideia do quão foi afetado cada imóvel e a relação contratual em si.
Dificuldade para avaliar imóvel
Como veremos, não é possível aplicar os mesmos efeitos para imóveis que foram diferentemente danificados pela força da natureza, o que nesse ponto os eventos no RS trazem implicações bem diferentes do que aquelas produzidas pela epidemia de Covid-19, em que não se cogitava em danos à integridade física do imóvel, senão uma análise mais focada na modulação das restrições provocadas por mandamentos emitidos pelo poder público.
Ademais, entendemos que nosso ordenamento não traz soluções específicas para todas as hipóteses em que se verificam os efeitos trazidos pela calamidade sobre as locações, sendo necessário um esforço hermenêutico, bem como uma interpretação integrativa da normativa.
Nesse sentido, dois dispositivos legais nos servirão de alicerce para enfrentarmos a questão do pagamento do aluguel e a possível extinção contratual. Trata-se do artigo 26 da Lei 8.245/1991 e do artigo 567 do Código Civil, este com aplicação supletiva aos contratos de locação em caso de omissão legislativa, conforme o artigo 79 da Lei 8.245/1991.
O artigo 26 e seu § único da Lei 8.245/1991, ao nosso sentir, deveria ser o primeiro dispositivo legal a ser ventilado ao analisarmos a possível redução proporcional sobre o valor do aluguel ou mesmo para pavimentar a extinção contratual. Isso se deve, visto que os efeitos da calamidade invariavelmente trarão hipóteses em que para se resgatar as condições de uso e habitabilidade do imóvel serão necessárias as realizações de reparos urgentes.
Nesses casos, a Lei 8.245/1991 dispõe que, nos dez primeiros dias dos reparos, continuaria o locatário obrigado a pagar o aluguel, sendo de responsabilidade do locador aqueles dias que excederem os dez dias. Portanto, como leciona Sylvio Capanema de Souza [4], caso os reparos se prolonguem por 23 dias, o locatário ficaria isento de 13 dias, devendo arcar apenas com 10. De outro lado, caso os reparos levem mais de 30 dias, terá a locatária a faculdade de resilir o contrato, sem o pagamento de indenização e/ou penalidade.
E como seria computado o dia de início da contagem do prazo? Seria o dia em que ocorreu o evento que resultou a necessidade de reparar os danos ou o dia em que as partes tiveram conhecimento da extensão do dano? Com toda a vênia, nos parece que, salvo nos casos de perdimento, em que se considera a data do evento danoso, razoável seria contar a partir da data do conhecimento da extensão do dano. Contudo, esse entendimento não autoriza o locador a agir de forma morosa, não sendo computado, por exemplo, o período para orçamentos dada a urgência nos reparos.
Trazendo ao caso concreto, em situações que houver perecimento, por exemplo, como ocorre em um desmoronamento, dúvidas não existirão acerca da possibilidade de a locatária pedir a resilição, visto que já lhe assistiria direito de pedir tal resilição unilateral em casos em que a restauração do imóvel levasse o prazo de 30 dias, quanto mais em perecimento do objeto.
Nessa linha, de perecimento do objeto, o locatário poderia invocar, em caráter supletivo [5], o artigo 567 do Código Civil, visto que, se durante a locação, se deteriorar a coisa alugada, sem culpa do locatário, a este caberá resolver o contrato, caso já não sirva a coisa para o fim a que se destinava.
Portanto, concluímos que em caso de perecimento do imóvel, vindo a cessar a sua funcionalidade, não seriam devidos aluguéis, e o locatário poderia pedir a extinção do contrato com efeitos retroativos à data do perecimento.
Inutilização de forma temporária
Os eventos climáticos trouxeram inúmeros casos, sobretudo, no que toca a residências e lojas de rua, em que as inundações não ocasionaram uma perda total do imóvel, mas que impossibilitaram ou ainda estão impossibilitando de forma temporária que os locatários utilizem o imóvel.
Nessas hipóteses, sem prejuízo de uma análise pormenorizada no contrato e no caso concreto, entendemos que seria defensável que o aluguel sofresse uma redução até o momento em que as partes possam ter uma noção de quais reparos serão necessários, sendo a modulação do percentual de redução, proporcional a impossibilidade do uso do imóvel, com base na aplicação supletiva do artigo 567 do Código Civil. E, como já mencionado, após essa data, necessitando o imóvel de reparos urgentes, as partes seguiriam o artigo 26, § único da Lei 8.245/1991.
Existem também situações em que as chuvas provocaram dissabores menores, como pequenas inundações, em que basta uma limpeza não especializada, a fim de que o imóvel esteja em condições de habitabilidade. Nestes casos, é possível que haja entendimentos diversos sobre o tema, a depender da gravidade e da extensão do que seria necessário para a concretização da referida limpeza.
Porém, como regra geral, essas hipóteses são de responsabilidade da parte locatária, nos termos do artigo 23, incisos II, III e XII, § 1º, ‘c’ da Lei 8.245/1991, visto que o locatário deve tratar a coisa como se fosse sua, devolvê-la no mesmo estado de conservação que o recebeu, salvo desgastes naturais, e ser responsável por despesas ordinárias que se referem à limpeza e conservação. Assim, limpeza e despesas com a conservação da coisa são de responsabilidade do locatário.
Com relação a contribuições condominiais, excetuando-se aqueles casos em que houve perecimento do imóvel ou imóveis, a obrigação de pagar as contribuições condominiais se mantêm na forma contratada. José Fernando Simão [6] relembra que as contribuições condominiais devem ser pagas de imediato, pois não pode atrasar salários de funcionários, deixar de pagar água e luz das áreas comuns, ficar sem segurança para evitar destruição do prédio e dos pertences ali contidos.
O estado de calamidade pública mostrou um número acentuado de roubos e saques a imóveis evacuados por questões de segurança. Reforça-se tal afirmação pelo fato de que, como regra, as despesas não deixaram de recair sobre o condomínio. Sendo assim, mesmo que determinado condômino não adimpla com a sua responsabilidade, seu débito será rateado entre os demais adimplentes, para fins de que as obrigações contraídas pelo condomínio sejam devidamente adimplidas.
Ressalta-se que, possivelmente, nessa época, os gastos condominiais sejam incrementados pela necessidade de drenagens de áreas comuns, como é o caso de subsolos, bem como de despesas para desinfecção, reparos elétricos e consertos e pinturas em áreas comuns.
Ressalta-se ainda que casos em que os imóveis e seus proprietários já tinham o costume de conviver com alagamentos, não consistindo o evento de alagamento como fato isolado. Nesse caso, sem qualquer condão ou pretensão de decretar uma solução única e estanque, entendemos que tais situações merecem uma reflexão mais profunda.
Aplica-se às relações contratuais o princípio da boa-fé objetiva, conforme preconizado nos artigos 113 e 422 do Código Civil. Boa-fé objetiva consiste, como bem disserta Judith Martins-Costa, na existência de deveres de conduta anexos (ao dever principal imposto pelo contrato) aplicáveis aos contratantes, de maneira a obrarem com honestidade, lealdade, probidade, antes, durante e após a contratação, independentemente de expressa previsão contratual.
Boa-fé do locador
Dessa forma, em locais em que alagamentos já ocorriam com certa periodicidade, caso o locador, ao realizar a locação do imóvel a locatário, ocultasse essa informação, estaria infringindo os referidos deveres anexos de conduta. Nesses casos, poderia o locatário, prejudicado pela omissão proposital (dolosa) da informação, ensejar judicialmente pleiteando as indenizações pelos danos materiais obtidos, justamente pela quebra da boa-fé objetiva.
Em caso interessante, o TJ-SP [7], ao analisar contrato de locação em que a parte locadora e a administradora do bem omitiram do locatário a existência de copropriedade do imóvel e de ônus, responderam pelos danos causados pelo fato de que o locatário, caso soubesse da informação omitida, poderia ter declinado da realização da locação com aquele locador.
Ou seja, em casos em que o locador tenha comprovadamente omitido informações relevantes sobre o local em que o imóvel se encontra, podem acabar sendo causadores e utilizados como fundamento para eventual indenização em prol do locatário, sem prejuízo de que é do locatário a obrigação de verificar a situação prévia do imóvel.
Ressaltamos a necessidade de cautela em comparar alagamentos ocorridos nos últimos anos com a calamidade vivenciada no RS, visto que ela não teve precedentes, senão apenas uma comparação ocorrida em 1941, quando o nível do rio Guaíba atingiu 4,76 m (a cota de inundação é de 3 m), sendo que dessa vez ele ultrapassou os 5,33 m. Nesse sentido, entendemos que os institutos do caso fortuito e força maior poderão ser aplicados em boa parte dos casos, e, nessa hipótese de o evento danoso ser isolado, não haveria obrigação do locador de indenizar o locatário.
Portanto, entendemos que cada locação deverá ser analisada no caso concreto, a fim de que se encontre uma solução equilibrada para a perpetuação do contrato de locação com ajustes em relação às condições iniciais ou mesmo para um desfazimento equitativo da relação locatícia.
A negociação de forma equilibrada e alicerçada pelos ditames da boa-fé objetiva, ainda que não seja um caminho imperativo no nosso sistema jurídico, parece ser um caminho a ser seguido pelas partes contratantes, a fim de evitar uma enxurrada de ações judiciais, franqueando a um terceiro, o que poderia, se houver bom senso e cooperação, ser alinhado pelas partes.
Não se descarta a necessidade da promulgação de regras mais específicas às relações locatícias em situação de evento de calamidade pública. Contudo, tais regras necessitam de lei federal para tanto, pois tratam de matéria de direito civil, nos termos do artigo 22, inciso I da Constituição.
Os efeitos da calamidade desafiarão os tribunais a darem soluções e caminhos para os contratos diretamente atingidos. Para isso, entendemos que o presente ensaio seja de grande valia, ao menos, para apontar caminhos para solucionar os conflitos que se avizinharão.
[1] AgInt no AREsp n. 1.838.339/SP, relator Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 13/12/2021, DJe de 15/12/2021.
[2] TJSP; Apelação Cível 1003926-53.2017.8.26.0526; Relator (a): Marcondes D’Angelo; Órgão Julgador: 25ª Câmara de Direito Privado; Foro de Salto – 2ª Vara; Data do Julgamento: 24/07/2020; Data de Registro: 24/07/2020.
[3] TJSP; Apelação Cível 1018286-05.2019.8.26.0564; Relator (a): Cesar Luiz de Almeida; Órgão Julgador: 28ª Câmara de Direito Privado; Foro de São Bernardo do Campo – 8ª Vara Cível; Data do Julgamento: 29/04/2020; Data de Registro: 29/04/2020.
[4] DE SOUZA. Sylvio Capanema. A Lei do Inquilinato comentada. 10ª edição. Rio de Janeiro: Forense, 2017, p. 152.
[5] https://www.migalhas.com.br/depeso/322241/covid-19-e-os-contratos-de-locacao-em-shopping-center. Acesso em 18.4.2020.
[6] https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-contratuais/325272/pandemia-e-locacao-algumas-reflexoes-necessarias-apos-a-concessao-de-liminares-pelo-poder-judiciario-um-dialogo-necessario-com-aline-de-miranda-valverde-terra-e-fabio-azevedo.
[7] TJSP; Apelação Cível 1130364-49.2014.8.26.0100; Relator (a): Soares Levada; Órgão Julgador: 34ª Câmara de Direito Privado; Foro Central Cível – 15ª Vara Cível; Data do Julgamento: 02/08/2018; Data de Registro: 02/08/2018.
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