Território Aduaneiro

Necessária modificação dos prazos para revisão e decadência aduaneira

Autores

  • é sócio do Escritório Daniel & Diniz Advocacia Tributária e Aduaneira (DDTax) doutor mestre e especialista pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) com estágio doutoral na Westfälische Wilhelms-Universität (WWU) de Münster pelo Deutscher Akademischer Austauschdienst (DAAD) é professor no Instituto Brasileiro de Direito Tributário (IBDT) onde coordena o curso "Direito Aduaneiro e Tributação do Comércio Internacional" e foi conselheiro titular no Carf entre 2015 e 2023.

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  • é membro da Comissão de Política Fiscal e Proteção aos Contribuintes da OAB-RJ especialista em Direito Tributário pela FGV/Direito-RJ professor de Direito Tributário e Aduaneiro convidado na Escola de Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (Emerj) e do Instituto Brasileiro de Direito Tributário (IBDT) e advogado especializado em Direito Aduaneiro.

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28 de maio de 2024, 15h20

O mercado de bens e serviços intangíveis e digitais, os compromissos internacionais, a tecnologia jurídica produzida depois da Constituição de 1988, e os novos paradigmas da relação entre a Administração e importadores e exportadores justificam a elaboração de um Código Aduaneiro para o Brasil, como defendemos aqui nesta coluna.

Spacca

Enquanto a nova codificação não é editada com a correção das defasagens, desatualizações e insuficiências já identificadas, é necessário que se dê operacionalidade aos textos disponíveis, o que não é tarefa simples considerando que a legislação atual: (a) perdeu muito de sua coesão após diversos remendos e edição de novas regras sobrepostas sem a devida cautela técnica e preocupação de sistematização, fazendo com que existam múltiplas normas potencialmente com vetores centrífugos de aplicação; e

(b) é lacônica em diversas questões que reclamariam maior complexidade, não produzindo comandos concretos ou soluções prévias para situações especificas e limítrofes. Um destes casos que merecem aprofundamento é aquele relativo à decadência em matéria aduaneira.

Decadência aduaneira em 1966

À época da edição do DL nº 37/66:

(a) seu artigo 54 estabelecia que “a revisão para apuração da regularidade do recolhimento de tributos e outros gravames devidos à Fazenda Nacional será realizada na forma que estabelecer o regulamento”;

(b) seu artigo 138 estabelecia regras para a “prescrição” do “direito de cobrar tributos[1], fixando prazos de 5 (cinco) anos “a contar do fato que tornar conhecido o sujeito da obrigação tributária” como regra geral e “a partir do pagamento efetuado” quando relativo à cobrança de diferenças de tributos; e

(c) seu artigo 139 fixava prazo de 5 (cinco) anos para o “direito de impor penalidade” a contar da data da infração (sendo a única das previsões acima que permanece até os dias de hoje). Não havia distinção de prazos para situações de dolo, fraude ou simulação em comparação às de divergência.

De maneira praticamente concomitante (embora o DL nº 37/66 seja posterior) foi editado o Código Tributário Nacional, com regras próprias para a revisão de atos administrativos, decadência e prescrição m matéria tributária (tanto obrigações principais quanto acessórias).

Quanto à revisão de lançamentos já efetuados, seu artigo 149 elencou as hipóteses autorizativas deste procedimento e o condicionou à ausência de extinção do direito da Fazenda Pública. Quanto ao prazo para constituição e cobrança de tributos, tornou-os decadenciais e extintivos e criou duas regras de contagem de prazo de 5 anos em seus artigos 150, §4º e 173, inciso I:

(a) para tributos sujeitos a lançamento por homologação em que o ato de autolançamento tenha ocorrido e inexista dolo, fraude ou simulação, a contar da ocorrência do fato gerador; e

(b) nos demais casos, a contar do primeiro dia do exercício seguinte àquele em que o lançamento poderia ter sido efetuado, sem norma específica para uma situação de aplicação de penalidades sem diferenças tributárias.

O problema era visível. Ambas as normas continham comandos válidos, mas distintos. A primeira (a1) fixa prazos prescricionais; (b1) estabelece como regra geral de marco inicial o “o fato que tornar conhecido o sujeito da obrigação tributária”; (c1) contém regra especial para “diferenças de tributos”, fixando o marco inicial no “pagamento”; (d1) possui regra própria para imposição de penalidades de 5 anos a contar da infração; (e1) não altera os prazos para situações de dolo, fraude ou simulação; e (f1) não possui um prazo limitante para o exercício da revisão de atos jurídicos atribuídos ao administrado ou à Administração.

A segunda (a2) fixa prazos decadenciais; (b2) estabelece como regra geral de marco inicial o 1º dia do ano seguinte à prática do fato gerador; (c2) contém regra especial para “autolançamento” (na qual seria possível identificar uma diferença de tributos, mas que não necessariamente haveria “pagamento” inicial), fixando o marco inicial no momento do fato gerador; (d2) não possui uma regra própria para imposição de penalidades; (e2) muda o prazo para situações de dolo, fraude ou simulação; e (f2) possui um prazo limitante para o exercício da revisão de atos jurídicos atribuídos ao administrado ou à Administração.

De fato, o Poder Executivo federal se esforçou para acomodar ambas as previsões de forma harmônica. Sua regulamentação do procedimento do artigo 54 do DL nº 37/66, ao qual atribuía o nome de “Revisão Aduaneira” e conceituava como “o ato pelo qual a autoridade fiscal, após o desembaraço da mercadoria, reexamina o despacho aduaneiro, com a finalidade de verificar a regularidade da importação ou exportação quanto aos aspectos fiscais, e outros, inclusive o cabimento de benefício fiscal aplicado” o equiparava explicitamente ao procedimento de revisão do lançamento previsto no artigo 149 CTN, estabelecendo ainda que ela só poderia “ser realizada enquanto não decair o direito de a Fazenda Nacional constituir o crédito tributário”, como se identifica pela leitura dos artigos 455 e 456 do Regulamento Aduaneiro de 1985 (Decreto nº 91.030/85).

Decadência aduaneira a partir de 1988

Em 1988, o DL nº 37/66 enfim teve seus arts. 54 e 138 modificados para harmonização com o CTN [2]. O escopo da revisão aduaneira foi ampliado para conter também o “benefício fiscal aplicado” e a “exatidão das informações prestadas pelo importador” e a ela foi atribuída o prazo específico de cinco anos contado do registro da Declaração de Importação.

Já o direito à cobrança de tributos passou a ser decadencial e teve seu prazo geral alterado para o primeiro dia do exercício seguinte àquele em que poderia ter sido lançado, refletindo o artigo 173, inciso I do CTN. Foi mantida a previsão especial de prazo para exigência de diferenças de tributos a contar do pagamento. Essa modificação solucionou alguns problemas passados, mas trouxe alguns novos.

Rafa Neddemeyer/Agência Brasil

A revisão do lançamento prevista no artigo 149 do CTN não se compromete com um marco inicial de prazo próprio e se limita a adotar os mesmos prazos do direito para a cobrança dos tributos precisamente para não criar uma situação de divergência entre os prazos, por ser ato prévio e necessário para a cobrança de tributos e que é inerente com a atividade de reexame do autolançamento previsto no artigo 150 do CTN.

Ao fixar um prazo autônomo para a atividade de revisão aduaneira, o legislador acabou por dar margem para uma situação deveras kafkiana, já que de nada adianta um prazo maior para cobrança de tributos aduaneiros se ele não puder mais questionar a apuração feita pelo administrado.

Tal questão não deveria ser um real problema na maioria das situações caso a harmonização tivesse sido feita de maneira completa. É que, como o registro da Declaração de Importação é um ato de autolançamento por excelência, atraindo como regra a contagem do prazo na forma do artigo 150, §4º do CTN, como fato gerador dos tributos aduaneiros, os prazos costumeiramente coincidiriam.

A atecnia seria percebida apenas nas situações de dolo, fraude ou simulação, em que o prazo aplicável seria o do artigo 173, inciso I do CTN, mas não haveria como promover a cobrança pela inviabilidade da revisão aduaneira.

Só que ela foi feita pela metade. O alinhamento aos prazos do CTN foi feito apenas quanto à regra geral do art. 138 do DL nº 37/66 (que passou a ter o mesmo comando do art. 173, inciso I). Não houve incorporação da regra do art. 150, §4º do CTN, que, por não exigir pagamento e fixar o prazo do fato gerador, sempre foi mais abrangente do que a regra do art. 138, parágrafo único do DL nº 37/66.

Ou seja, foi mantida a coexistência de dois prazos potencialmente aplicáveis em sobreposição (embora com escopos de aplicação singelamente diferentes), com o agravamento do problema pela criação de prazo autônomo para a realização da revisão aduaneira, que inviabiliza o prazo do artigo 173, inciso I do CTN.

Se antes mereceu aplausos, a conduta do Poder Executivo federal frente a essa situação é merecedora de críticas. No atual Regulamento (Decreto nº 6.759/09), preferiu-se suprimir no artigo 752 por completo a aplicação do artigo 150, §4º do CTN e consignar apenas os prazos coincidentes da atual redação dos artigos 138, caput do DL nº 37/66 e 173, inciso I do CTN e aquele previsto do artigo 138, parágrafo único do DL nº 37/66 para diferenças de tributos.

Na prática, cooptaram-se as situações de não homologação do autolançamento via Declaração de Importação para o prazo estendido dos artigos 138, caput do DL nº 37/66 e 173, inciso I do CTN, o que nos parece ser flagrantemente ilegal ao negar vigência à norma válida aplicável do artigo 150, §4º do CTN.

Controvérsia do correto prazo aplicável

Não há motivo para deixar de aplicar a regra do artigo 150, §4º do CTN para os autolançamentos via Declaração de Importação. De plano, qualquer tentativa de aplicar os prazos dos arts. 138, caput do DL nº 37/66 e 173, inciso I do CTN já esbarraria no prazo autônomo consignado para implementação da revisão aduaneira. Para aplicar tais prazos seria necessário ignorar o artigo 54 do DL nº 37/66 para promover uma revisão de um ato já intangível, o que é, evidentemente, ilegal.

Tampouco caberia falar em revogação tácita ou inaplicabilidade pelo simples motivo de que (a) ela estabelece uma regra especial para uma situação específica, que prevalece sobre a regra geral dos artigos 138, caput do DL nº 37/66 e 173, inciso I do CTN; e (b) a previsão do artigo 138, parágrafo único do DL nº 37/66, embora também regra especial, possui escopo de aplicação distinto, específico para as situações em que há pagamento, o que faz com que elas não conflitem. O afastamento de regras jurídicas válidas e potencialmente aplicáveis é excepcional, devendo prevalecer sempre que possível a interpretação que conduza à sua coexistência.

E menos ainda se deve reproduzir o erro conceitual e técnico de que a aplicação do artigo 150, §4º do CTN exige um pagamento em pecúnia. Trata-se de atividade de autolançamento, com declaração ao fisco por meio de obrigações acessórias sobre a ocorrência de fatos relevantes para fins de incidência/apuração de determinado tributo, eleição de tratamento jurídico para tais operações, apuração do quantum devido e, sendo o caso, liquidação antecipada que se sujeita à homologação e revisão, da qual pode surgir a cobrança tributária caso haja uma discordância por parte da autoridade fiscal.

No autolançamento, o crédito tributário pode ser (a) não constituído em razão de (i) imposição de alguma regra de imunidade ou não-incidência legal; (ii) exclusão tributária em função de uma isenção, na forma do artigo 175 a 179 do CTN; ou (iii) da apuração neutra ou negativa de tributos no período, usualmente em razão do confronto de contas próprio dos tributos (v.g. conta gráfica no PIS/Cofins não-cumulativos ou encontro de contas entre receitas e despesas no IRPJ/CSLL); ou (b) constituído pela apuração positiva do tributo no período, cenário em que o contribuinte deve extinguir a obrigação tributária mediante a adoção das formas de liquidação previstas no artigo 156 do CTN.

O lançamento tributário, como quantificação-formalização do valor devido, não necessariamente precisa culminar em valor a pagar, sendo plenamente possível a conclusão, após a “determinação da matéria tributável”, de que o montante de tributos devido é zero, o que em nada e por nada altera a capacidade de fiscalização sobre o autolançamento efetuado.

O atrai a aplicação do artigo 173, inciso I do CTN é a ausência total de declaração e autolançamento, já que, neste caso, o contribuinte não cumpriu seu dever de cooperação com a autoridade fiscal, que simplesmente não pode exercer a conferência sobre a apuração, sendo obrigada a identificar o seu descumprimento e, em seguida, promover uma varredura na contabilidade, nos contratos e nos documentos do período para identificar as operações e atividades passiveis de caracterizar fato gerador tributário e proceder à apuração.

Como essa atividade adicional consome mais tempo e esforço da Administração e a conduta ilegal do contribuinte coloca em risco o devido recolhimento dos tributos (há chance de operações deixarem de ser tributadas em decorrência da não-identificação pelo fisco em tempo hábil da ausência de autolançamento), é dilatado o prazo decadencial pela postergação do seu marco inicial para que reste similar aos tributos sujeitos a lançamento de ofício (em que esse trabalho adicional é também realizado).

Não há, no entanto, motivo para se permitir o deslocamento do dies a quo para situações em que houve prestação de informações ao fisco, mas não houve pagamento em pecúnia porque o contribuinte apurou que nada devia ser recolhido em relação às operações informadas em razão do tratamento tributário que sobre elas ele imputou (constante nas obrigações acessórias passíveis de fiscalização). Neste caso, há um autolançamento a ser verificado, fiscalizado e confirmado pelo fisco, inexistindo trabalho adicional de fiscalização a justificar a adoção do tratamento reservado aos tributos sujeitos a lançamento de ofício.

É dizer, o critério adotado no Recurso Especial Repetitivo nº 973.733/SC e na Súmula STJ nº 555, diz respeito à existência de conduta a ser homologada e, nesse caso, há particular foco na inexistência de declaração prévia dos débitos. Embora o conceito inadequado ainda seja refletido em alguns julgados no âmbito do Carf, o conceito correto está passando a prevalecer (eg. Acórdão CSRF nº 9101-006.647 da Sessão de 11.07.2023).

Conclusão

Considerando que, na Declaração de Importação, há apuração regular dos tributos e eventual ausência de saldo a pagar decorre de tratamento atribuído às operações (imunidade, não-incidência, isenção, alíquota zero etc.), que também deve ser nela consignada, não há razão para se negar vigência ao artigo 150, §4º do CTN e não contar o prazo decadencial a partir do fato gerador, até mesmo para compatibilizar a decadência tributária com o prazo autônomo da revisão aduaneira.

Nada obstante, é inegável a necessidade de modificação das normas contendo os prazos para Revisão e Decadência Aduaneira para harmonização com as previsões do CTN de modo a evitar a perpetuação de litígios decorrentes da falta de clareza e técnica de normas de base do sistema.

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[1] Previsão que se amolda à interpretação da época, antecedente ao CTN, de que a perda do prazo para cobrança não gerava a extinção do crédito da Fazenda Pública.

[2] Não abordaremos o debate sobre a validade da modificação promovida pelo DL nº 2.472/88, norma que, embora potencialmente incompatível com a EC nº 1/69, como bem apontado em artigo desta coluna, de Liziane Angelotti Meira, pode (a) não ser verdadeiramente incompatível já que previsão explícita de decadência e prescrição como normas gerais em matéria tributária adveio apenas com a CF/1988; e (b) ter sido convalidada e recepcionada na forma do art. 34, §5º dos ADCT.

Autores

  • é sócio do Escritório Daniel & Diniz Advocacia Tributária e Aduaneira (DDTax), doutor, mestre e especialista pela Faculdade de Direito da USP (Universidade de São Paulo), com estágio doutoral na Westfälische Wilhelms-Universität (WWU) de Münster pelo Deutscher Akademischer Austauschdienst (DAAD). É presidente do IPDA (Instituto de Pesquisas em Direito Aduaneiro) e da Comissão de Estudos Aduaneiros do Instituto dos Advogados de São Paulo (Iasp), professor no IBDT (Instituto Brasileiro de Direito Tributário), onde coordena o curso "Direito Aduaneiro e Tributação do Comércio Internacional", e foi conselheiro titular no Carf entre 2015 e 2023.

  • é advogado. Bacharel em Direito pelaUFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro). Professor convidado em Direito Aduaneiro e Tributário no IBDT/SP, Apet/SP, FBT/SP e PUC/PE. Diretor de Contencioso Aduaneiro do Instituto de Pesquisas em Direito Aduaneiro (IPDA).

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