Exploração das loterias pelos estados: avanços e retrocessos
28 de maio de 2024, 9h17
Inicialmente, as loterias [1] estão relacionadas com a distribuição de prêmios a partir de sorteios, sendo também a denominação dos locais onde se vendem bilhetes lotéricos. Juridicamente, as loterias são, desde longa data, entendidas como um serviço público prestado à sociedade, possuindo normas que regulamentam essa atividade.

A norma federal mais antiga a consolidar o regramento relativo às loterias é o Decreto nº 21.143, de 10 de março de 1932, assinado por Getulio Vargas, em que claramente ficou expresso que esse serviço público [2] pode ser prestado tanto pela União, quanto pelos estados.
O mencionado decreto, inclusive, traz o regulamento das loterias indicando desde regras para bilhetes e suas vendas até a fiscalização desse serviço público e a indicação dos jogos proibidos.
Em seguida, verifica-se o Decreto-Lei Federal nº 2.980, de 24 de janeiro de 1941 [3], o qual segue o decreto anterior, considerando as loterias como serviço público, mas deixando claro que a exploração desse serviço pela União e pelos estados pode ocorrer de forma direta ou de forma indireta por meio de concessionários.
Segundo esse outro decreto, a União e os estados podem delegar a exploração do serviço de loteria a concessionários de comprovada idoneidade moral e financeira [4], indicando as regras para a concessão de loterias. Esse regramento permanece adiante com o Decreto-Lei nº 6.259, de 10 de fevereiro de 1944 [5].
Interessante observar que as loterias são um serviço público prestado a partir da regulação das atividades de sorteio, afastando-se dos jogos ilegais, justamente, diante da regulação que o ordenamento jurídico pátrio dispõe, com a possibilidade de tributação sobre essa atividade, sendo o arrecadado destinado, por exemplo, para o financiamento da seguridade social conforme determina o artigo 195, III, da Constituição [6].
O sistema lotérico brasileiro, porém, sofreu um retrocesso, especificamente no que compete aos estados, com o Decreto-Lei nº 204, de 27 de fevereiro de 1967 [7], o qual determinou que a exploração das loterias seria um serviço público exclusivo da União não suscetível de concessão, situação que veio a ser corrigida, no atual ordenamento brasileiro, sob as luzes da Constituição de 1988, com o julgamento conjunto das Ações de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 492 [8] e 493 e da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 4.986.
Permissão aos estados

Por meio da atuação da Suprema Corte, foi restabelecida, em conformidade com o atual sistema constitucional brasileiro, a longa tradição de permitir que tanto a União, quanto os estados federados possam explorar as loterias. No caso, ficou claro, ainda, a distinção de que, em matéria de loterias, a União tem somente exclusividade no que tange à competência legislativa para disciplinar a matéria, artigo 22, XX, CF/88 [9], mas não tem exclusividade desse serviço público no que tange à competência material.
Ora, a regulamentação do assunto é feita no nível federal, sendo permitido que os estados explorem essa atividade, a qual não é monopólio da União, de forma direta ou indireta, respeitando sempre os tipos de loterias permitidos pela própria União.
Com isso, deve ficar claro que, na exploração indireta do serviço público das loterias, as pessoas jurídicas de direito privado podem explorar esse serviço por meio da delegação do serviço público, em que a titularidade do serviço continua com o estado, mas a execução é transferida a particulares.
Essa possibilidade está expressa no artigo 175, CF/88 [10], podendo ocorrer a exploração desse serviço público nas modalidades permitidas pela legislação federal, incluindo as autorizações.
Quanto às autorizações para o exercício do serviço de loterias, a Lei nº 14.790, de 29 de dezembro de 2023, apresenta a modalidade de apostas de quota fixa, em seu artigo 4º [11], segundo o qual sua exploração ocorre em ambiente concorrencial, mediante prévia autorização a ser expedida pelo Ministério da Fazenda.
Logo, nessa modalidade, em que se entende as quotas fixas como sendo fatores de multiplicação do valor apostado que define o montante a ser recebido pelo apostador, em caso de premiação, para cada unidade de moeda nacional apostada, é necessária a prévia autorização para os particulares que prestarem esse serviço público.
Deve-se considerar que a Lei Federal nº 14.790, de 29 de dezembro de 2023, além de regular essas apostas por quota fixa, o que serviu para regularizar a situação das apostas esportivas, notadamente as apostas eletrônicas tão comuns na atualidade, também trouxe alterações para a então Lei Federal nº 13.756, de 12 dezembro de 2018.
Publicidade de loterias
As alterações previstas pela Lei Federal nº 14.790 trouxeram duas inovações, as quais, porém, são retrocesso no sistema de loterias brasileiras, sendo alvo de impugnação por meio de ação direta de inconstitucionalidade recentemente proposta pelos estados de São Paulo, Minas Gerais, Paraná, Acre, Mato Grosso do Sul e Rio de Janeiro e do Distrito Federal (ADI 7.640).
A mencionada ADI 7.640, proposta na Suprema Corte em 03/05/2024, busca a declaração de inconstitucionalidade do § 2º, bem como da expressão “e a publicidade” constante do § 4º, ambos do artigo 35-A [12] da Lei nº 13.756, de 12 de dezembro de 2018, na redação dada pela Lei nº 14.790, de 29 de dezembro de 2023.
Com efeito, em primeiro lugar, essa nova norma, ao tratar sobre a exploração das loterias pelos estados e pelo Distrito Federal, fere o pacto federativo ao gerar uma verdadeira guerra entre os estados para atrair primeiro os particulares que atuam na prestação desse serviço, uma vez que o mencionado § 2º, artigo 35-A, da Lei nº 13.756/2023 determinou que ao mesmo grupo econômico ou pessoa jurídica será permitida apenas uma única concessão e em apenas um estado ou no Distrito Federal.
Logo, esse quadro faz com que os estados e o DF tenham que lutar para conseguir atrair os players do mercado mais bem qualificados para a prestação desse serviço público antes dos outros, já que um mesmo player não pode atuar em mais de um ente subnacional.
Ora, essa situação, além de ferir os princípios basilares do federalismo brasileiro, fere também a livre concorrência e os princípios da licitação pública, bem como os direitos dos consumidores de terem os melhores serviços de loterias disponíveis.
Essa é, portanto, a situação que se mostra inconstitucional, juntamente com a limitação de que a publicidade das loterias pelos estados e pelo DF ocorra de forma restrita às pessoas fisicamente localizadas nos limites de suas circunscrições ou àquelas domiciliadas na sua territorialidade.
É claro que a comercialização lotérica pelos entes subnacionais só pode ocorrer para aqueles que estão localizados ou domiciliados no território do estado ou do Distrito Federal ao qual corresponde aquele serviço público. Porém, restringir a publicidade é notoriamente inconstitucional por também violar a livre concorrência, impedindo a realização da publicidade desse serviço público.
Para se mostrar além da inconstitucionalidade dessa restrição, tem-se que, na prática, é complexo que, por exemplo, uma publicidade realizada por meio de redes sociais para esse tipo de serviço público prestado por particulares seja limitada a um determinado espaço geográfico, quando os algoritmos da internet são capazes de direcionar essas publicidades para pessoas localizadas nos mais diversos estados brasileiros.
Não se deve perder de vista, porém, a distinção entre a comercialização e a publicidade dessas loterias, uma vez que a comercialização deve ficar restrita para aqueles que vivem no estado do qual aquela loteria pertence, seja direta ou indiretamente.
Para além dos pontos impugnados corretamente pelos estado federados no novo artigo 35-A, da Lei Federal nº 13.756, essa norma deixou claro que a exploração de loterias pelos estados e pelo DF poderá ser efetuada mediante concessão, permissão ou autorização ou diretamente, conforme regulamentação própria, observada sempre a legislação federal.
Com isso, as formas de delegação do serviço público podem ser facilmente aplicadas para a exploração de loterias por meio de particulares, o que se mostra como uma vantagem para a sociedade ao permitir que os entes privados possam exercer essa atividade da melhor forma para os cidadãos.
Por tudo o que foi tratado, até o atual estágio do ordenamento jurídico brasileiro, as loterias no Brasil são reguladas desde longa data como serviço público prestado pela União e pelos estados, beneficiando toda a sociedade por meio de sua tributação e auxiliando no combate de prática de jogos ilegais, o que deve ser sempre prezado no equilíbrio federal utilizando-se para tanto, quando necessário, da intervenção do Poder Judiciário para dirimir os conflitos que surgirem.
[1] Loteria. Disponível em: <https://michaelis.uol.com.br/moderno-portugues/busca/portugues-brasileiro/loteria/>. Acesso em: 14 maio. 2024.
[2] Art. 20. São consideradas como serviço público as loterias concedidas pela União e pelos Estados. BRASIL. DECRETO Nº 21.143, DE 10 DE MARÇO DE 1932. Portal da Câmara dos Deputados. Disponível em: <https://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1930-1939/decreto-21143-10-marco-1932-514738-publicacaooriginal-1-pe.html>. Acesso em: 14 maio. 2024.
[3] BRASIL. DECRETO-LEI Nº 2.980, DE 24 DE JANEIRO DE 1941. Portal da Câmara dos Deputados. Disponível em: <https://www2.camara.leg.br/legin/fed/declei/1940-1949/decreto-lei-2980-24-janeiro-1941-412917-publicacaooriginal-1-pe.html>. Acesso em: 15 maio. 2024.
[4] Art. 2º Os governos da União e dos Estados poderão atribuir a exploração do serviço de loteria a concessionários de comprovada idoneidade moral e financeira. BRASIL. DECRETO-LEI Nº 2.980, DE 24 DE JANEIRO DE 1941. Portal da Câmara dos Deputados. Disponível em: <https://www2.camara.leg.br/legin/fed/declei/1940-1949/decreto-lei-2980-24-janeiro-1941-412917-publicacaooriginal-1-pe.html>. Acesso em: 14 maio. 2024.
[5] BRASIL. DEL 6259-44. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Decreto-Lei/1937-1946/Del6259.htm>. Acesso em: 14 maio. 2024.
[6] Art. 195. A seguridade social será financiada por toda a sociedade, de forma direta e indireta, nos termos da lei, mediante recursos provenientes dos orçamentos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, e das seguintes contribuições sociais: (…) III – sobre a receita de concursos de prognósticos. BRASIL. CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL DE 1988. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/ConstituicaoCompilado.htm>. Acesso em: 14 maio. 2024.
[7] BRASIL. DECRETO-LEI Nº 204, DE 27 DE FEVEREIRO DE 1967. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Decreto-Lei/1965-1988/Del0204.htm>. Acesso em: 15 maio. 2024.
[8] Arguições de Descumprimento de Preceito Fundamental. Ação Direta de Inconstitucionalidade. 2. Artigos 1º, caput, e 32, caput, e § 1º do Decreto-Lei 204/1967. Exploração de loterias por Estados-membros. Legislação estadual. 3. Competência legislativa da União e competência material dos Estados. Distinção. 4. Exploração por outros entes federados. Possibilidade. 5. Arguições de Descumprimento de Preceito Fundamental conhecidas e julgadas procedentes. Ação Direta de Inconstitucionalidade conhecida e julgada improcedente. (ADPF 492, Relator(a): GILMAR MENDES, Tribunal Pleno, julgado em 30-09-2020, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-292 DIVULG 14-12-2020 PUBLIC 15-12-2020)
[9] Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre: (…) XX – sistemas de consórcios e sorteios; BRASIL. CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL DE 1988. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/ConstituicaoCompilado.htm>. Acesso em: 14 maio. 2024.
[10] Art. 175. Incumbe ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos. BRASIL. CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL DE 1988. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/ConstituicaoCompilado.htm>. Acesso em: 14 maio. 2024.
[11] Art. 4º As apostas de quota fixa serão exploradas em ambiente concorrencial, mediante prévia autorização a ser expedida pelo Ministério da Fazenda, nos termos desta Lei e da regulamentação de que trata o § 3º do art. 29 da Lei nº 13.756, de 12 de dezembro de 2018. BRASIL. LEI Nº 14.790, DE 29 DE DEZEMBRO DE 2023. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2023-2026/2023/Lei/L14790.htm>. Acesso em: 15 maio. 2024.
[12] DA EXPLORAÇÃO DAS LOTERIAS PELOS ESTADOS E PELO DISTRITO FEDERAL Art. 35-A. Os Estados e o Distrito Federal são autorizados a explorar, no âmbito de seus territórios, apenas as modalidades lotéricas previstas na legislação federal. (Incluído pela Lei nº 14.790, de 2023) (…) § 2º Ao mesmo grupo econômico ou pessoa jurídica será permitida apenas 1 (uma) única concessão e em apenas 1 (um) Estado ou no Distrito Federal. (Incluído pela Lei nº 14.790, de 2023) (…) § 4º A comercialização e a publicidade de loteria pelos Estados ou pelo Distrito Federal realizadas em meio físico, eletrônico ou virtual serão restritas às pessoas fisicamente localizadas nos limites de suas circunscrições ou àquelas domiciliadas na sua territorialidade. (Incluído pela Lei nº 14.790, de 2023) BRASIL. LEI Nº 13.756, DE 12 DE DEZEMBRO DE 2018. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2018/Lei/L13756.htm>. Acesso em: 15 maio. 2024.
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