Inventor robô: criações da inteligência artificial merecem proteção legal?
21 de maio de 2024, 6h05
*palestra traduzida do inglês, proferida em maio de 2024, na sede do United States Patent and Trademark Office (USPTO), no Colóquio Judicial sobre Propriedade Intelectual.

Em fevereiro de 2024, foi apresentado um projeto de lei para alterar a Lei da Propriedade Industrial brasileira (Lei 9.279/96) e permitir que um sistema de inteligência artificial (IA) possa ser autor de uma invenção gerada de forma autônoma. A patente seria requerida em nome do sistema de IA, que seria o inventor e o titular dos direitos inerentes à invenção. Até onde se sabe, não há projeto de lei semelhante no mundo.
Agora voltemos no tempo cerca de 150 anos. O ano era 1879, quando Thomas Edison inventou a lâmpada elétrica e requereu sua patente. Talvez seja ele um dos inventores mais conhecidos da humanidade e um bom exemplo para ilustrar que a invenção é até hoje considerada uma criação da inteligência humana, daí o evidente grau de antropocentrismo do sistema de propriedade intelectual adotado mundialmente. As leis dos diversos países protegem o que a mente humana cria.
Os sistemas de inteligência artificial desafiam essa ideia ao produzirem trabalhos inovadores que, caso fossem originados por pessoas, poderiam preencher os requisitos de patenteabilidade. Os institutos oficiais de patentes, a exemplo do brasileiro (Instituto Nacional da Propriedade Industrial — INPI), e o Judiciário de diversos países vêm tendo que decidir se devem ou não considerar sistemas de IA como inventores, em situações em que há uma mínima participação humana no processo inventivo.
É o caso do Dabus, o primeiro sistema de IA listado como inventor em pedidos de patentes perante alguns países, ocasião em que se indicou proprietário da máquina, Stephen Thaler, como requerente e titular das patentes, e a inteligência artificial — e não uma pessoa física — como inventora. O inventor tem o direito moral de ser nomeado como o autor da invenção e o titular da patente exerce os direitos patrimoniais, como o recebimento de royalties.
Dabus é descrito pelo seu criador como uma máquina de criatividade, que teria gerado duas invenções de forma autônoma e sem participação humana. As invenções geradas por Dabus são muito simples, uma luz de emergência e um recipiente de alimentos, mas poderiam preencher os requisitos de patentabilidade (novidade, atividade inventiva e aplicação industrial). O problema é a autoria. Se o autor fosse humano, as criações seriam protegidas. Sendo geradas pelo Dabus, com uma mínima participação humana, o robô pode ser inventor? Quais as soluções jurídicas apresentadas atualmente?
Para início de conversa, é preciso lembrar que os sistemas de IA estão baseados em um programa de computador que já tem proteção pelo sistema de propriedade intelectual. Os programas de computador são protegidos por direitos autorais, a exemplo da legislação brasileira (Lei 9.609/98, artigo 2º).

A discussão fica complexa quando trata da proteção do resultado gerado por esses programas de computador que servem de base para a IA. Os sistemas de IA participam do processo inventivo em diferentes intensidades, de acordo com o nível de contribuição humana para o resultado.
As tecnologias de IA podem funcionar como ferramentas, auxiliando significativamente pessoas a obterem um resultado criativo e inovador. Nestes casos, é fácil identificar a autoria humana. Na indústria farmacêutica, por exemplo, a IA tem sido usada para acelerar o processo de descoberta de medicamentos, identificando alvos de doenças, fazendo a seleção dos compostos, prevendo a potência dos fármacos. Na pandemia, a Coréia do Sul utilizou um sistema de IA para auxiliar cientistas a desenvolverem kits de teste de coronavírus, os quais ficaram prontos em duas semanas, feito que normalmente leva vários meses por um grande grupo de cientistas. Aqui não há dúvida: de acordo com a legislação, a autoria é humana, apenas auxiliada pela IA.
No entanto, há sistemas de IA que podem gerar um resultado novo e o nexo causal entre a contribuição humana e o resultado é considerado mínimo, diante da ausência de controle humano em relação aos dados utilizados pelo sistema e/ou sobre o resultado originado. São essas as situações para as quais ainda não temos resposta.
Para esses casos, voltemos à minha pergunta inicial: quais as soluções jurídicas apresentadas atualmente? Diante de um pedido de patente em que se indica um sistema de IA como inventor, sob o fundamento de que haveria uma mínima participação humana no resultado inovador, a primeira solução jurídica proposta é considerar a máquina como inventora e conceder a patente.
Austrália assume um inventor
Vem da Austrália a primeira vitória judicial de um sistema de IA como inventor, proferida em julho de 2021. A discussão chegou ao Judiciário em razão de um pedido de revisão da decisão administrativa do Instituto Australiano de Patentes, que havia negado os requerimentos de duas patentes, que indicavam Dabus como o inventor e Stephen Thaler como o titular. Em suma, a decisão administrativa afirmou que, diante da legislação atual, apenas pessoa física pode ser identificada como inventora [1].
Na revisão judicial requerida por Thaler, o juiz da Corte Federal da Austrália, interpretando a legislação nacional, entendeu que um sistema de IA pode ser inventor, embora o requerente da patente tenha que ser uma pessoa física ou jurídica, e que esta é a interpretação mais “consistente com a realidade da tecnologia atual e com a promoção da inovação”. Concluiu que o conceito de inventor deveria ser interpretado de forma flexível e evolutiva, do contrário, teríamos que reconhecer que uma invenção gerada por um sistema de IA é patenteável, no entanto, como não há inventor humano, ela não poderia ser patenteada. Decidiu-se que Dabus seria o autor e Stephen Thaler o titular da patente.
O precedente judicial, que era o único no mundo, não vingou. Foi reformado logo depois pela decisão da instância recursal da Austrália [2]. No Brasil, se aprovado o projeto de lei que autoriza que a IA seja inventora, Dabus seria inventor. No entanto, o projeto vai além e determina que o robô seja também o titular da patente, ou seja, aquele que exerce os direitos patrimoniais dela decorrentes. Como implementar isso na prática? Talvez nem a IA saiba responder…
A segunda solução proposta para a invenção gerada por um sistema de IA é contrária à proteção patentária, defendendo que a criação fique em domínio público, a menos que mantida em sigilo pelos proprietários das máquinas ou programadores.
Foi essa a conclusão brasileira no caso Dabus, adotada na decisão administrativa do Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI), que não difere, em linhas gerais, das demais decisões administrativas que negaram os requerimentos de patentes, a exemplo do Escritório Europeu de Patentes [3], o Escritório de Marcas e Patentes dos Estados Unidos [4] e do Escritório de Propriedade Intelectual do Reino Unido [5].
Segundo o INPI, o artigo 6º da Lei 9.279/96 permite que apenas pessoa física pode ser identificada como inventora, e eventual mudança depende da elaboração de uma legislação específica que considere que as máquinas podem ser inventoras, de preferência antecedida pela celebração de tratados internacionais.
A doutrina acrescenta à conclusão acima outro argumento. Não se justifica tutelar a propriedade intelectual de trabalhos gerados por sistemas de IA, uma vez que os sistemas não são conscientes nem receptivos a incentivos, bem como não recebem os benefícios econômicos decorrentes da patente, como a exclusividade de exploração, razão pela qual não se justifica atribuir autoria nem titularidade as suas criações.
A terceira solução não tem como objetivo discutir se a IA pode ou não ser considerada inventora. Ela pretende, na verdade, dar foco às capacidades da IA para otimizar o processo de invenção humano e discutir o impacto para a atividade inventiva.
Para essa proposta, as invenções atuais geradas total ou parcialmente por IA sempre têm a participação de seres humanos, em maior ou menor grau, de modo que persistem justificativas para a concessão de patentes. De fato, as justificativas são menores nos casos em que a intervenção e os esforços humanos para o resultado sejam mínimos e, em razão disso, devem ser feitas alterações no exame administrativo feito pelos institutos de patentes, o que traria menos impacto para o desenvolvimento tecnológico do que simplesmente considerar como não patenteáveis as invenções geradas por IA.
Padrão do técnico no tema
Por isso, propõe-se repensar o requisito da atividade inventiva, um dos requisitos de patenteabilidade, elevando o padrão do “técnico no assunto”. A Lei da Propriedade Industrial brasileira prevê, no artigo 13, que a invenção possui atividade inventiva sempre que, para um técnico no assunto, não decorra de maneira evidente ou óbvia do estado da técnica. Um técnico no assunto, ou profissional do ramo, é uma pessoa com conhecimentos medianos sobre a matéria.

Assim, essa terceira solução propõe que, em havendo o uso generalizado de sistemas de IA para auxílio ao inventor humano em determinado setor, as habilidades do especialista aumentam e uma patente poderia ser concedida se a invenção não for óbvia para um técnico no assunto auxiliado por tecnologias de IA. É muito comum, como vimos, o uso de IA no setor farmacêutico, logo, questiona-se se o parâmetro de técnico no assunto neste caso poderia ser um profissional favorecido pela IA.
Analisadas as três propostas de solução para o inventor robô, concluo com uma observação sobre um ponto que não parece estar recebendo muita atenção: a investigação da dinâmica de mercado específica em que estão inseridos os sistemas de IA e, consequentemente, a necessidade de as empresas terem a patente como forma de incentivo econômico.
Para superar o antropocentrismo que tem, tradicionalmente, caracterizado o conceito de inventor, a solução que admite que sistemas de IA passem a ocupar essa posição se baseia, em especial, em razões econômicas ligadas ao incentivo a investimentos pelas empresas de tecnologia, o que estimularia a inovação.
Mas será que este incentivo por meio da proteção patentária é mesmo indispensável para o equilíbrio e a eficiência do mercado das invenções de IA? A propriedade intelectual é apenas uma das formas de incentivo à produção intelectual, de modo que outros métodos de incentivo podem recompensar os agentes econômicos. Para responder à pergunta, importa considerar a dinâmica de mercado específica em que estão inseridos os sistemas de IA:
- as mais importantes empresas são bilionárias
- elas e as empresas menores podem encontrar outras formas eficientes de recuperar seus custos de pesquisa e desenvolvimento
- a marca das empresas de tecnologia e as invenções de IA tendem a ser bens cada vez mais valiosos em seu estabelecimento empresarial.
Ao se optar por alguma das soluções acima, em especial pela primeira (admitir a IA como inventora) e ou a segunda (não admitir a IA como inventora), é crucial investigar se a dinâmica de mercado em que estão inseridos os sistemas de IA é suficiente para que se mantenha um fluxo de investimentos e a eficiência do setor ou se, ao revés, é necessária uma intervenção estatal nas forças livres de mercado, atribuindo direitos de exclusividade por meio de patentes.
Ademais, a IA produzirá um impacto considerável no cenário de empregos em um futuro próximo, tornando desnecessários diversos postos ocupados por humanos. Diante dessa expansão, garantir que em determinados campos, como no criativo e no inventivo, a contribuição humana significativa e seu controle sobre o trabalho inovador sejam necessários para obter proteção legal é uma opção que merece atenção.
[1] Disponível: [http://www.austlii.edu.au/cgi-bin/viewdoc/au/cases/cth/APO/2021/5.html?context=1;query=thaler;mask_path=au/cases/cth/APO].
[2] O escritório de patentes da África do Sul concedeu a primeira patente para a invenção do sistema Dabus, considerando-o inventor. O país, no entanto, não tem um sistema de exame de mérito de patentes, o que enfraquece o precedente administrativo.
[3] EPO – European Patent Office. Requerimentos EP 18 275 163 e EP 18 275 174. Disponível em: <https://www.epo.org/news-issues/news/2020/20200128.html>.
[4]USPTO – United States Patent and Trademark Office. Requerimento 16/524,350. Disponível em: < https://www.uspto.gov/sites/default/files/documents/16524350_22apr2020.pdf >.
[5] UKIPO – United Kingdom Intellectual Property Office. Requerimento GB1816909.4 and GB1818161.0. Disponível: < https://www.ipo.gov.uk/p-challenge-decision-results/o74119.pdf>.
Encontrou um erro? Avise nossa equipe!