Segunda Leitura

O eficiente sistema de Justiça de Portugal

Autor

  • é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná pós-doutor pela FSP/USP mestre e doutor em Direito pela UFPR desembargador federal aposentado ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Foi secretário Nacional de Justiça promotor de Justiça em SP e PR e presidente da International Association for Courts Administration (Iaca) da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

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12 de maio de 2024, 10h46

Portugal tem 10,4 milhões de habitantes que vivem em um território de 92 mil km, tendo por vizinho somente a Espanha, professa predominantemente a religião católica, tem clima ameno, nível elevado de qualidade de vida e é dos mais pacíficos do mundo.

A Constituição portuguesa é de 2005 e tem 296 artigos. O Poder Judiciário está previsto nos artigos 205º a 218º, o Ministério Público nos artigos 219 e 220, espaço bem menor do que o dedicado pela nossa Constituição às referidas instituições. O artigo 209 faz referência à advocacia dando-lhe o título de Patrocínio forense e assegurando aos advogados as imunidades necessárias ao exercício do mandato.

Os Tribunais Judiciais são: a) O Supremo Tribunal de Justiça e os tribunais  de primeira e de segunda instância; b) O Supremo Tribunal Administrativo e os demais tribunais administrativos e fiscais; c) O Tribunal de Contas. A primeira instância, que no Brasil recebe o nome de foro, em Portugal é tratada também por tribunal, tal qual nos Estados Unidos (“District Courts”).

Portugal possui um Tribunal Constitucional, fora da carreira judiciária e com previsão específica na Constituição (artigos 221º a 224º). O TC  compõem-se de 13 juízes, indicados ou cooptados pela Assembleia da República, sendo sete deles juristas e seis da magistratura de carreira, todos com mandato de nove anos, proibida a recondução. No seu site, visivelmente menos formal do que os dos tribunais judiciais, o tribunal procura mostrar uma imagem mais próxima da população [1].

Os tribunais judiciais

Portugal é um estado unitário, consequentemente, seu sistema de Justiça é único, como na Itália e na maioria dos países. Seus juízes, que têm títulos precedidos de juiz (v.g., juiz desembargador) formam um corpo único e regem-se por um só estatuto. Assim, os princípios estão na Constituição e os detalhes da carreira na Lei 21/1985 e em leis específicas.

No topo da pirâmide está o Supremo Tribunal de Justiça. Os Tribunais da Relação, nome utilizado no Brasil até a instauração da República, equivalem aos nossos Tribunais de Justiça. Na primeira instância encontram-se os Tribunais de Comarca. Tribunais militares são previstos para a hipótese de existência de estado de guerra. A Lei nº 3/1999, Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais (LOFTJ) disciplina o funcionamento de toda a magistratura judicial [2]. A especialização é permitida em todas as instâncias, havendo, por exemplo, o Tribunal da Concorrência, regulação e supervisão.

Portugal mantém os Julgados de Paz, no Brasil extintos coma Constituição de 1988. Cabe ao Conselho dos Julgados de Paz,, órgão que funciona junto da Assembleia da República, gerir a Justiça de Paz em todo o país (e.g., nomeando os juízes de paz) [3].

A Constituição admite a existência de tribunais arbitrais. Em Lisboa há o Centro de Arbitragem Comercial da Câmara de Comércio e Indústria Portuguesa (CAC) [4], de 1987, o mais antigo no país.

Spacca

Aspecto de grande interesse na organização judiciária portuguesa é a existência de mais dois tribunais superiores, ambos como instância máxima nos limites de sua jurisdição. São eles, o Supremo Tribunal Administrativo e o Tribunal de Contas regulados pela Lei nº 13/2002, Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais [5]. Registre-se, ainda, que esses dois tribunais sujeitam-se às decisões sobre constitucionalidade emitidas pelo Tribunal Constitucional. Os juízes conselheiros desses tribunais recebem vencimentos idênticos ao do STJ.

Existem, ainda, Tribunais Administrativos (como na França) e Fiscais de primeira e segunda instância. Eles se sujeitam ao Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais, criado pela Lei nº 129, de 27 de abril de 1984.

O Estatuto dos Magistrados

O ingresso na magistratura e no Ministério Público dá-se por concurso único realizado pelo Centro de Estudos Judiciários (CEJ) [6]. Os requisitos para ser Juiz de Direito estão no artigo 40º do estatuto (por exemplo, se cidadão português). O CEJ, presidido pelo conselheiro presidente do STM, é o órgão responsável pela capacitação dos juízes durante toda a carreira.

A Constituição garante aos juízes de carreira a inamovibilidade, não podendo ser transferidos, suspensos, aposentados ou demitidos senão nos casos previstos na lei. A Lei 21, de 23 de julho de 1985, Estatuto da Magistratura Judicial, regula as atividades da magistratura de carreira e aplica-se aos juízes de todas as instâncias, inclusive do Supremo Tribunal de Justiça. O Estatuto assegura-lhes a vitaliciedade (artigo 6º). Todavia, ambos não fazem referência à irredutibilidade de vencimentos, garantia existente no Brasil.

Em contrapartida, os juízes em exercício não podem desempenhar qualquer outra função pública ou privada, salvo as funções docentes ou de investigação científica de natureza jurídica, não remuneradas. Os juízes em exercício também não podem ser nomeados para comissões de serviço estranhas à atividade dos tribunais sem autorização do conselho superior competente.

A Constituição prevê no artigo 218º a existência do Conselho Superior da Magistratura, composto por 16 membros, sendo dois indicados pelo presidente da República, sete pela Assembleia e sete escolhidos entre juízes de carreira. O Conselho Superior da Magistratura é o órgão superior de gestão e disciplina da magistratura judicial, inclusive o Supremo Tribunal de Justiça. Ele é presidido pelo presidente do STM e entre as suas relevantes atribuições encontram-se as de “Nomear, colocar, transferir, promover, exonerar, apreciar o mérito profissional, exercer a acção disciplinar e, em geral, praticar todos os actos de idêntica natureza respeitantes a magistrados judiciais”. Os servidores também se sujeitam à sua atuação disciplinar. Sua importância e prestígio vem crescendo nos últimos anos, como bem relata a obra Manual Luso-Brasileiro de Gestão Judicial [7].

Os magistrados judiciais não podem fazer declarações ou comentários sobre processos, porém a lei abre exceção para caso de matéria não coberta pelo segredo de justiça ou pelo sigilo profissional, desde que haja um motivo legítimo, como o acesso à informação. Os juízes usam vestes talares nos julgamentos e, quando ameaçados em razão das funções, têm direito à segurança especial da sua pessoa, família e bens.

Todos os atos da vida do magistrado judicial regulam-se pelo conceito que lhe atribuem os órgãos de controle. Três são as espécies de conceito: bom, suficiente e medíocre. Por óbvio, o primeiro conceito é requisito para todas as posições de destaque. A avaliação como medíocre implica na suspensão do exercício de funções do magistrado e a instauração de inquérito por inaptidão para esse exercício.

Para aposentar-se os magistrados devem ter, pelo menos, 25 anos de serviço na magistratura. Todavia, registre-se que em Portugal há mais possibilidades de afastar-se temporariamente da jurisdição (por exemplo, para ser diretor e professor do CEJ, por isso exige-se que os últimos cinco anos antes da aposentadoria tenham sido no exercício das funções. Os aposentados “continuam vinculados aos deveres estatutários e ligados ao tribunal de que faziam parte, gozam dos títulos, honras, regalias e imunidades correspondentes à sua categoria e podem assistir de traje profissional às cerimónias solenes que se realizem no referido tribunal, tomando lugar à direita dos magistrados em serviço activo” (artigo 67º do Estatuto).

O provimento de vagas de juiz desembargador do Tribunal da Relação faz-se por promoção, mediante concurso curricular, com prevalência do critério do mérito entre juízes da 1.ª instância. Portanto, não é automática como no Brasil, que alterna as vagas de antiguidade e merecimento.

Lá como cá há volume excessivo de processos, fenômeno internacional decorrente do fortalecimento do Poder Judiciário. Mas em Portugal dá-se solução interessante para combater o atraso os julgamentos. O artigo 39º da Lei 3/99  prevê os Juízes além do quadro, o que consiste em proposta do Conselho Superior da Magistratura para propor no Supremo Tribunal de Justiça lugares além do quadro, os quais se extinguem no prazo de dois anos. Os lugares são criados por portaria conjunta dos Ministros das Finanças, Adjunto e da Justiça. Igual solução é dada ao excesso de processos nos Tribunais da Relação. Vê-se que não há criação de cargos, mas sim uma inteligente medida administrativa com prazo de vigência.

Merece referência, ainda o “Campus de Justiça de Lisboa”, uma área que ocupa cerca de três quadras, jardins, edifícios novos de ótima aparência, onde funcionam de forma exemplar “Tribunal. Ministério Público. Registo. Cartão de cidadão. Certificado de registo criminal. Juízo criminal e civil. Tribunal de Família e Comércio” [8].

O Tribunal da Relação do Porto

Portugal possui cinco Tribunais da Relação, instalados em Évora, Guimarães, Porto, Coimbra e Lisboa. A Relação do Porto é a mais antiga (1582). Compete-lhe julgar os recursos oriundos das comarcas do Porto, Porto Este e Aveiro, para tanto valendo-se de 94 desembargadores, número proporcionalmente maior do que o existente nos TJs do Brasil.

O prédio é um edifício neoclássico do início dos anos 1950, espaçoso e bem cuidado. O ingresso e atendimento assemelha-se ao dos tribunais brasileiros, com acesso sujeito a fiscalização e orientação feita com delicada atenção. A presidência, localizada no 8º andar, o mais alto, é exercida pelo juiz desembargador José Igreja Matos, que conta com a experiência de 34 anos de magistratura e o fato de ter presidido a União Internacional de Magistrados, entidade que congrega 94 associações de juízes de todos os continentes. Essa experiência dá-lhe, com certeza, conhecimento de boas iniciativas ao redor do mundo que podem ser implantadas no seu tribunal.

Os desembargadores julgam em câmaras especializadas. Os recursos cíveis, tal qual no Uruguai, não tem sustentação oral, são discutidos e decididos em uma sala preparada para acomodar os integrantes do órgão. Evidentemente isto acelera a tramitação. O auditório e as salas de julgamento têm pinturas maravilhosas, sempre ligadas à história do Porto e de Portugal, fato perceptível no site da corte [9]. O tribunal mantém interlocução direta com a sociedade, cedendo espaço para exposições e eventos culturais. A rica história do tribunal é retratada no Museu do Conflito, recentemente criado e dotado de todos os requisitos técnicos. Nele, por exemplo, há menções aos cinco julgamentos mais polêmicos de sua sua história, entre eles o do escritor Camilo Castelo Branco. O tribunal é um bom exemplo de elegante simplicidade e eficiência.

Esse, em breve síntese, é o eficiente sistema de Justiça de Portugal, que merece ser melhor conhecido pelos brasileiros.


[1] PORTUGAL. Tribunal Constitucional. Disponível em: https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/home.html. Acesso  11  mai. 2024.

[2] PORTUGAL. Lei nº 3, de janeiro de 1999. Disponível em:  https://www.pgdlisboa.pt/leis/lei_mostra_articulado.php?nid=1&tabela=leis&so_miolo=.  Acesso  11  mai. 2024.

[3] CONSELHO DOS JULGADOS DE PAZ. Disponível em: https://www.conselhodosjulgadosdepaz.com.pt/contactos.asp. Acesso  11  mai. 2024.

[4] Centro de Arbitragem Comercial. Disponível em: https://www.centrodearbitragem.pt/pt/sobre-o-cac/sobre-nos/.  Acesso  11  mai. 2024.

[5]  PORTUGAL. Lei nº 13, de 19 de fevereiro de 2002. Disponível em: https://www.pgdlisboa.pt/leis/lei_mostra_articulado.php?nid=418&tabela=leis. Acesso 11 mai. 2024.

[6] PORTUGAL. Centro de Estudos Judiciários. Disponível em: https://cej.justica.gov.pt/Ingresso/Ingresso-nas-magistraturas. Acesso  11  mai. 2024.

[7]  BOCHENEK A. C., MOURAZ , José Lopes,  MATOS, José, Igreja,  MENDES, Luis Azevedo, COELHO, Nuno e FREITAS, Vladimir Passos de. Manual Luso-Brasileiro de Gestão Judicial. São Paulo: Almedina Brasil, 2018, p. 172-176.

[8]  Campus de Justiça de Lisboa. Disponível em: https://www.facebook.com/campusdajustica/?locale=pt_BR. Acesso  11  mai. 2024.

[9] PORTUGAL. Tribunal da Relação do Porto. Disponível em: https://www.trp.pt/. Acesso  11  mai. 2024.

Autores

  • é presidente da ALJP (Academia de Letras Jurídicas do Paraná); professor de Direito Ambiental e Sustentabilidade; pós-doutor pela FSP/USP, mestre e doutor em Direito pela UFPR; desembargador federal aposentado, ex-presidente do TRF-4. Foi Secretário Nacional de Justiça, Promotor de Justiça em SP e PR, presidente da International Association for Courts Administration (Iaca), da Ajufe (Associação dos Juízes Federais do Brasil) e do Ibrajus ( Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário).

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