A omissão inconstitucional na proteção do Pantanal e o papel das leis estaduais
29 de junho de 2024, 12h16
Em decisão do dia 06 de junho de 2024 o Supremo Tribunal Federal reconheceu a omissão inconstitucional do Congresso Nacional na regulamentação específica para a proteção do bioma Pantanal Mato-Grossense, conforme previsto no art. 225, § 4º, da Constituição Federal de 1988.
Textualmente, o §4º do art. 225 da Constituição estabelece que “A Floresta Amazônica brasileira, a Mata Atlântica, a Serra do Mar, o Pantanal Mato-Grossense e a Zona Costeira são patrimônio nacional, e sua utilização far-se-á, na forma da lei, dentro de condições que assegurem a preservação do meio ambiente, inclusive quanto ao uso dos recursos naturais” (sem grifos no original).
A decisão do STF aponta, como conclusão, que o Congresso Nacional está em atraso na criação de uma lei específica para regular a proteção do bioma do Pantanal que existe apenas nos estados do Mato-Grosso e Mato Grosso do Sul.
Segundo a decisão, a expressão “patrimônio nacional” mencionada no dispositivo constitucional acima referido requer um tratamento especial que, ao mesmo tempo, preserve a soberania nacional e garanta proteção especial ao patrimônio ambiental que tem a humanidade e as futuras gerações como detentores de direitos à proteção.
Neste contexto, o STF aponta uma omissão por parte do Congresso Nacional que após mais de 35 anos desde a promulgação da CF/1988, não promoveu a regulamentação das condições de uso do patrimônio ambiental existente no Pantanal Mato-Grossense, incluindo a exploração econômica sustentável de seus recursos naturais.
Em contraponto, entidades admitidas como partes interessadas no processo argumentaram que não há uma omissão legislativa no caso em questão. Representantes de setores econômicos defenderam, como integrantes da ação, que o bioma do Pantanal já está protegido pelo Código Florestal.
Essas entidades também destacaram a competência suplementar dos estados para legislar sobre a matéria. Na visão delas, as normas locais devem ser valorizadas, uma vez que os estados possuem conhecimento detalhado das estruturas e das complexidades específicas de seus biomas, mantendo uma cooperação contínua com os órgãos de proteção ambiental.
Por outro lado, os representantes dos setores ambientalistas, também integrantes da ação, afirmaram que o Pantanal, sendo uma das maiores áreas alagadas do planeta, possui uma biodiversidade única e características específicas que exigem uma legislação própria para sua proteção. Argumentam que há de fato uma omissão por parte do Congresso Nacional nesse sentido. Segundo eles, essa legislação deve ser de iniciativa federal e deve estabelecer as condições financeiras e o mínimo essencial ecológico que devem ser respeitados pelas legislações estaduais de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul.
Sobre o assunto é de se registrar que a Lei 12.651/2012, conhecida como Código Florestal, regulamenta os pantanais, fazendo menção ao regime aplicável a essas áreas, que receberam, no inc. XXV do art. 3º, o conceito de “áreas úmidas” para as quais é admitido o uso, observadas técnicas recomendadas por órgãos de pesquisa e autorizações dos órgãos estaduais de meio ambiente. Eis o texto do dispositivo legal comentado:
Art. 10. Nos pantanais e planícies pantaneiras, é permitida a exploração ecologicamente sustentável, devendo-se considerar as recomendações técnicas dos órgãos oficiais de pesquisa, ficando novas supressões de vegetação nativa para uso alternativo do solo condicionadas à autorização do órgão estadual do meio ambiente, com base nas recomendações mencionadas neste artigo.
Não obstante o texto regulamentador sobre os pantanais, estabelecido no Código Florestal, o STF entendeu, por maioria de votos, que ele não é suficiente para garantir uma proteção adequada e abrangente ao Pantanal Mato-Grossense.
Destaque-se o fato de que tanto o Estado do Mato Grosso quanto o Estado do Mato do Grosso do Sul possuem leis específicas regulamentado a exploração ecologicamente sustentável do Pantanal Mato-Grossense que tomaram por base estudos técnicos da EMBRAPA com recomendações específicas a serem adotadas.
Apesar disso o STF entendeu que a existência de leis estaduais sobre o assunto não exime a União de sua responsabilidade pela definição de um marco legal nacional, já que somente ela pode estabelecer a dimensão adequada da expressão “patrimônio nacional”.
Com base nessas considerações e em outras interpretações, o Plenário, por maioria de votos, julgou parcialmente procedente a ação para reconhecer a existência de uma omissão inconstitucional, fixando um prazo de 18 meses para sua correção pelo Congresso Nacional.
A decisão do STF em comento reflete um processo mais ou menos recente na Corte Constitucional que demonstra uma tendência das decisões numa diretriz protecionista e pró meio ambiente. Chama atenção um movimento do STF na denominada “Pauta Verde” em que várias ações que tratavam da matéria ambiental foram colocadas em julgamento de forma célere. Sobre o tema vale a leitura do artigo “Supremo Tribunal Federal conclui julgamento da pauta verde” de autoria do eminente Desembargador do TJ-SP, Ricardo Cintra Torres de Carvalho, brilhante autor dessa Coluna Ambiente Jurídico que retrata o conjunto de julgados em torno da matéria ambiental no Supremo Tribunal mostrando a tendência antes mencionada[1] e também a evidente preocupação e reconhecimento da importância da proteção ambiental em nível constitucional.
No caso do julgado ora comentado chama atenção o ineditismo da decisão do STF ao impor prazo ao Congresso Nacional para legislar em matéria ambiental. Parece que é a primeira decisão que se tem notícia nessa seara e que aponta a importância da regulação do uso dos recursos naturais, em âmbito de lei formal, como instrumento real de proteção do meio ambiente.
Certamente a decisão será extremamente desafiadora ao Congresso Nacional, considerando a complexidade legislativa envolvida na matéria, ante seu caráter eminentemente técnico e os interesses divergentes que frequentemente permeiam o processo legislativo federal.
Registre-se que a pauta afeta diretamente os interesses da atividade agropecuária que conta hoje com a maior bancada temática do Congresso Nacional, a chamada Frente Parlamentar da Agropecuária.
A ver-se se a intenção manifestada pelo STF com a intenção clara de proteção do bioma Pantanal será confirmada no âmbito do Congresso Nacional.
Relevante repetir e destacar que, enquanto persiste a omissão legislativa federal, os Estados têm desempenhado um papel significativo na proteção ambiental do Bioma Pantanal, por meio de legislações estaduais específicas. No caso do Pantanal Mato-Grossense, tanto o Estado de Mato Grosso quanto o Estado de Mato Grosso do Sul promulgaram leis que visam preservar e regular o uso sustentável desse bioma. A Lei nº 6.160/2023, do Estado do Mato Grosso do Sul, e a Lei nº 8.830/2008, do Estado de Mato Grosso, são exemplos de iniciativas estaduais que preenchem a lacuna deixada pela pequena regulamentação federal sobre as áreas úmidas.
Em dezembro de 2023 foi sancionada a lei do Estado do Mato Grosso do Sul grandemente comemorada por diversas entidades em ato solene realizado com a presença de Ministros de Estado demonstrando a suficiência da legislação estadual para a proteção do bioma.
Nesse sentido, a superveniência de legislação federal, sobretudo num cenário político como o acima apontado, no âmbito do Congresso Nacional, pode criar incertezas jurídicas e operacionais, o que, de per si, leva a uma reflexão sobre a necessidade real de uma legislação federal sobre o assunto que parece pacificado quanto ao tema legal na regulação do uso e proteção dos recursos naturais no Bioma. Ao que tudo indica as legislações estaduais já são suficientes e além de pacificar a matéria geram estabilidade e segurança jurídica no território.
Esta decisão marca um precedente importante no contexto constitucional do direito ambiental brasileiro, refletindo uma postura protetora do STF em relação ao meio ambiente. No entanto, é crucial que, durante o prazo estabelecido para a ação legislativa federal, sejam considerados os impactos e contribuições das legislações estaduais existentes. A colaboração entre União e Estados é essencial para garantir uma proteção ambiental robusta e eficiente, que respeite as peculiaridades regionais sem comprometer a integridade do patrimônio nacional.
[1] https://www.conjur.com.br/2024-abr-06/supremo-tribunal-federal-conclui-julgamento-da-pauta-verde/
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