Fórum de Lisboa

Excesso de HCs e de ações por tráfico expõe limites da Justiça

 

27 de junho de 2024, 17h22

O excesso de pedidos de Habeas Corpus impetrados no Superior Tribunal de Justiça e a quantidade imensa de ações por tráfico jogam luz sobre os limites da Justiça brasileira em especial em relação às pessoas pobres e negras.

Dados dos casos julgados no gabinete da ministra Daniela Teixeira, do STJ

Dados dos casos julgados no gabinete da ministra Daniela Teixeira, do STJ

É preciso repensar determinadas condutas como crimes, além de retirar do Judiciário responsabilidades sobre questões que não deveriam estar no escopo dos julgamentos.

Estes foram alguns dos argumentos trazidos à mesa “Sistemas de Justiça no Século XXI: Avanços e Retrocessos”, que debateu, no Fórum de Lisboa, as fissuras da Justiça e a sua própria limitação em lidar com as centenas de milhares de processos que correm no país.

A ministra Daniela Teixeira, integrante da 5ª Turma do STJ, que julga questões criminais, fez ampla explicação sobre o altíssimo número de processos que atravancam o Tribunal da Cidadania, a maioria deles sobre tráfico de drogas em pequenas quantidades.

Ela elogiou a decisão desta semana do Supremo de classificar como infração administrativa o porte de maconha para uso e adiantou à ConJur que já está se preparando para aplicar o entendimento nos casos que tramitam sob sua relatoria.

“Este conceito de estar portando droga para vender e estar portando droga para consumir é intimamente ligado à cor da pele, ao bairro onde a pessoa foi presa, e qual o tipo de advogado que ela vai ter”, disse a ministra. Segundo ela, a vigília do Estado, em termos criminais, se restringe à população pobre.

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Dados dos casos julgados no gabinete da ministra Daniela Teixeira, do STJ
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“Nós estamos vigiando somente a população pobre que, com muita franqueza, as pessoas gostariam que desaparecessem do Brasil num passe de mágica. Então vamos prendê-las, deixá-las lá no fundo por anos porque assim a gente finge que elas não existem.”

A ministra mostrou dados que reforçam as teses de que o Judiciário está abarrotado de processos sobre tráfico. Em seu gabinete, por exemplo, são mais de 4,7 mil processos sobre o tema, o que corresponde a 29% do total.

“Organização criminosa, que é o grande traficante, corresponde a 1% do meu acervo”, diz Teixeira. “O que eu quero que o Judiciário faça? Vá se meter com aqueles meninos que no nosso caminho hipotético estavam fumando maconha? Ou vá cuidar de quem estava estuprando uma criança, de um homicídio, de uma lesão corporal? Mas não, 30% do Judiciário brasileiro cuida de tráfico de drogas.”

Na mesma toada, o advogado David Metzker citou dados de 2024 do STJ para demonstrar que o desrespeito aos precedentes também fica evidente nos casos de tráfico. Entre janeiro e maio deste ano, foram quase 50 mil HCs e RHCs impetrados na Corte, com liderança para o estado de São Paulo.

“98% das concessões de HC no STJ foram monocráticas. O que é permitido pelo regimento porque se trata de temas já pacificados pela corte. Ou seja, a instância de origem não tem aplicado tema já pacificado”, disse Metzker. “52% das concessões têm relação com o tráfico”, disse o advogado.

Ele ainda traçou comparações sobre os motivos que levaram aos HCs. Nos casos de tráfico, a maior parte das decisões tem relação com revogação de preventiva ou dosimetria da pena. Ainda sobre essas decisões, maconha e cocaína dominam as infrações cometidas, e um terço dos casos versam sobre situações em que a pessoa foi pega com menos de 50 gramas de droga. “É o que a ministra Daniela falou: será que (estes casos) deveriam chegar ao STJ?”

Nos casos de desclassificação para o artigo 28, justamente o tema que foi tratado pelo Supremo, em que uma pessoa acusada de tráfico é reconhecida como usuária, na maioria das vezes o Ministério Público apoia a prisão do indivíduo, ainda que sejam casos que tratem de menos de 20 gramas de droga, diz o advogado.

“Esse é o crime que é mais levado ao Judiciário. Lesão corporal não chega ao Judiciário, e furto de shampoo chega. Alguma coisa está errada”, disse Fredie Didier, advogado e diretor-geral da Faculdade Baiana de Direito, que mediou a discussão.

Desjudicialização prejudicada

O ministro do Tribunal Superior Eleitoral Floriano de Azevedo Marques afirmou que, em paralelo ao crescimento de casos correndo na Justiça, e a despeito do crescimento das formas alternativas de resolução de conflitos, o sistema brasileiro tem “baixíssimos incentivos à desjudicialização”.

Mesa debateu os avanços e retrocessos da Justiça no século XXI

“De um lado, e isso é positivo, houve um enorme ampliação de acesso à Justiça. A ampliação dos juizados de pequenas causas, das defensorias públicas que aumentam o acesso à Justiça, das funções do Ministério Público, isso tudo ampliou a demanda pelo Judiciário. Por outro lado, o nosso sistema tem baixíssimos incentivos à desjudicialização. No âmbito civil não temos mecanismos que exigem a demonstração do esgotamento prévio de tentativas de conciliação.”

No caso penal, ele citou as possibilidades de acordo de não persecução penal (ANPP). No caso do Direito Público, Marques falou sobre a nova Lei de Licitações, que traz um incentivo claro à solução não judicial de conflitos.

Outro ponto citado foi a passividade com a qual o Judiciário lida com as demandas temerárias impetradas por advogados e pelo próprio Ministério Público.

“Nós temos um sistema de baixíssima responsabilização do advogado e do Ministério Público por lides temerárias (sem justa causa para litigar). Não são, de forma alguma, sancionadas. E mutias vezes retornam ao Judiciário sem nenhuma possibilidade de sucesso.”

O ministro também citou, como exemplo de vazão para as ações que correm, a criação de instituições de conciliação, como a SecexConsenso do TCU (Secretaria de Controle Externo de Solução Consensual e Prevenção de Conflitos), que também funcionam como válvulas de escape do Judiciário. “É algo que há dez anos seria impensável em um ambiente de controle.”

Atalá Correia, professor do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP) e juiz do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios, diz que uma das perspectivas do Direito é de que nada é absolutamente igual, e cada conflito tem suas particularidades.

“Essa forma de pensamento leva também a um sistema de Justiça específico. Obviamente ela não prescinde de que há princípios universalmente válidos, mas, a partir desses princípios, busca achar uma solução única”, diz Correia.

“Esse campo da tópica é moldado para a Justiça do caso concreto. Se ele é assim, por outro lado ele desprestigia a noção de igualdade perante à lei, ou pelo menos está menos preocupado com a igualdade.”

Assista ao segundo dia de debates do Fórum de Lisboa:

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