A Hidra ministerial: pode o Parquet ter duas cabeças nos tribunais superiores?
25 de junho de 2024, 9h20
Na mitologia grega, a Hidra era um monstro que podia regenerar sua própria cabeça. Depois de muito lutar contra a Hidra, Hércules percebeu que deveria cortar o mal pela raiz: pediu ao sobrinho para cauterizar a ferida da cabeça morta, pois só assim impediria que outra nascesse em seu lugar. Talvez seja hora de se discutir a cauterização das várias cabeças de acusação que nascem nos tribunais superiores.

Sim, pois hoje temos que conviver com pelo menos dois Ministérios Públicos oficiando no Superior Tribunal de Justiça e no Supremo Tribunal Federal. E isso, sem sombra de dúvidas, provoca distorções no modelo constitucional, além de impor uma luta hercúlea, injusta e desigual à defesa.
De fato, está ocorrendo uma situação grave: o Ministério Público estadual (MPE) interpõe recursos nas cortes superiores em casos em que o Ministério Público Federal (MPF) decidiu não recorrer. Vale exemplificar: imaginemos que foi proferida uma decisão monocrática favorável à tese defensiva submetida à análise do STJ. Essa decisão é encaminhada à Subprocuradoria-Geral da República, que apenas toma ciência. Dias depois, o procurador-geral de Justiça de São Paulo interpõe agravo regimental. O mesmo exemplo pode ser aplicado em caso de acórdão: o MPF toma ciência, mas o MPE, não satisfeito, interpõe recurso extraordinário contra a decisão do STJ.
Eis aí a nova cabeça da Hidra acusatória.
Tais situações têm ocorrido com frequência e a questão que se coloca é a seguinte: existe legitimidade recursal do Ministério Público Estadual nesses casos? A resposta parece ser eloquentemente negativa.
Unidade e indivisibilidade
O ordenamento jurídico é claro sobre a atribuição do MPF para as cortes superiores. O artigo 14 da Lei Complementar 40/1993 limita a atuação do MPE às primeira e segunda instâncias, já que “incumbe ao Procurador-Geral e aos Procuradores de Justiça as funções específicas dos membros do Ministério Público estadual na segunda instância, e aos Promotores de Justiça, na primeira.”
A atribuição funcional para oficiar no Superior Tribunal de Justiça é da Subprocuradoria-geral da República, pois, segundo o RISTJ, “perante o Tribunal, funciona o Procurador-Geral da República, ou o Subprocurador-Geral, mediante delegação do Procurador-Geral” (artigo 61).
Nossa Constituição, por sua vez, determina que “o Procurador-Geral da República deverá ser previamente ouvido nas ações de inconstitucionalidade e em todos os processos de competência do Supremo Tribunal Federal” (artigo 103, §1º). O RISTF – que tem força de lei – também dispõe que, perante o Supremo, “o Procurador-Geral manifestar-se-á nas oportunidades previstas em lei e neste Regimento” (artigo 49), podendo “os Subprocuradores-Gerais poderão oficiar junto às Turmas mediante delegação do Procurador-Geral” (artigo 48, parágrafo único).

Igualmente, a LC 75/1996 atribui função ao MPF para atuar perante o STJ e STF, já que “nas causas de competência do Supremo Tribunal Federal, do Superior Tribunal de Justiça, dos Tribunais Regionais Federais e dos Juízes Federais, e dos Tribunais e Juízes Eleitorais” (artigo 37, inciso I).
Se há previsão legal e regimental para atuação específica do MPF no STJ e STF, o MPE não poderia atuar nas cortes superiores, especialmente em sentido oposto ao MPF. Até porque a Constituição assegura como “princípios institucionais do Ministério Público a unidade, a indivisibilidade” (art. 127, § 1º). A unidade e a indivisibilidade, portanto, impediriam que outro Ministério Público, para além do MPF, atuasse autonomamente no STJ e STF.
Doutrina e jurisprudência
Essa também é a posição doutrinária. Segundo o promotor de Justiça e professor da Universidade Federal da Bahia Elmir Duclerc, “o Ministério Público, conforme a já citada lição de MONTERO AROCA, é apenas uma parte artificialmente criada no processo penal, justamente para viabilizar a construção de um sistema acusatório publicizado. Exatamente por isso, a sua atuação no processo penal está condicionada aos princípios da unidade e indivisibilidade” [1].
Em que pese seja uno e indivisível, isso não significa que qualquer membro do Parquet possa atuar em qualquer procedimento. É que “a distribuição de atribuições do parquet tem sede na própria Constituição Federal e é feita, tal como ocorre em relação ao princípio do juiz natural, segundo a matéria e segundo a prerrogativa de função do agente” [2].
Daí porque, conclui Eugênio Pacelli – ex-integrante do MPF –, “somente o Ministério Público Federal tem legitimidade para oficiar nos Tribunais Superiores e, em consequência, interpor recursos das respectivas decisões” [3].
Essa, inclusive, era a posição pacífica da jurisprudência entre 2003 e 2017 – portanto, por pelo menos 15 anos. Ocorre que, ainda em 2017, o Supremo julgou o Tema 946-RG e fixou a seguinte tese: “os Ministérios Públicos dos Estados e do Distrito Federal têm legitimidade para propor e atuar em recursos e meios de impugnação de decisões judiciais em trâmite no STF e no STJ, oriundos de processos de sua atribuição, sem prejuízo da atuação do Ministério Público Federal” Todavia, essa possibilidade não deveria ser ampla, incondicionada e irrestrita, como, infelizmente, a praxe forense tem mostrado e parece que os órgãos do Parquet entenderam.
Diante das Hidras ministeriais nas cortes superiores, é certo que passou da hora dos limites do Tema 946-RG serem rediscutidos e essa matéria já começou a ser revista no próprio Supremo.
No AgRg em HC 202.522-DF, relatoria do ministro Toffoli, DJe de 4/12/2023, ficou decidido que a legitimidade do MPE “se limita às ações em que for um dos sujeitos do processo ou às causas por ele promovidas originalmente, por exemplo, em reclamações constitucionais em que são impetradas contra decisões de órgãos jurisdicionais nos quais ele atua”, motivo pelo qual “não há legitimidade ativa do ministério público estadual para recorrer, em habeas corpus, a fim de atender às pretensões do interesse da acusação, sob pena de invasão das atribuições exclusivas da procuradoria-geral da república, para atuar na corte suprema”.
Mais uma vez, agora em março de 2024, nos autos da PET 12.260-DF, o ministro Toffoli reafirmou a ilegitimidade recursal do MPE porque “as funções do Ministério Público junto ao Supremo Tribunal Federal competem privativamente ao Procurador-Geral da República”.
Ponto sensível
É inconteste que legislação e as decisões mais recentes do STF sobre a matéria convergem no sentido de que dois Ministério Públicos não podem atuar no mesmo processo, perante a mesma instância.
Até porque, se houvesse dois Parquets funcionando nos mesmos autos, a paridade estaria totalmente comprometida. Não haveria o mínimo equilíbrio entre uma defesa e duas acusações. E esse é um ponto sensível, pois não basta que a defesa convença a cabeça do MPF, já que ainda restará lutar contra a cabeça do MPE!
Se o MPF concordou com a concessão de um habeas e não recorreu, como sustentar que ainda existiria algum “interesse recursal” pelo MPE em sobreposição aos interesses da PGR ou Subprocuradoria-geral? Não dá.
Soma-se, ainda, uma pitada de casuísmo. O MPE só atua no STF e/ou STJ quando quer, de modo extraordinário, aleatório. Não há qualquer critério legal, objetivo ou expresso para o MPE “aparecer” em Brasília. E isso, em si, já seria um problema do ponto de vista dos limites à discricionariedade ministerial para decidir sobre sua atuação nesse ou naquele caso que vai ao STF ou STJ.
Necessidade de overruling
Por tudo isso, há que se fazer um necessário overruling com relação ao tanto quanto decidido no Tema 946-RG. O caso julgado naquela assentada dizia respeito sobre a (im)possibilidade de o MPE opor embargos de declaração contra decisão do STJ que havia concedido habeas. Entretanto, os precedentes citados no voto vencedor tratavam de outro assunto: falavam sobre a capacidade postulatória dos Parquets estaduais para ajuizar em Brasília reclamações ou mandados de segurança que tinham como objeto decisões de suas bases de origem (v.g., RCL 7.358/SP e MS 28.827/SP).
Afirmar a capacidade postulatória do MPE perante o STJ e STF em caso de reclamação ou MS parece um acerto porque só o promotor de primeiro grau saberá que o juiz da origem descumpriu um acórdão do Supremo ou do STJ, ou sou um procurador de justiça saberá que precisa impetrar um MS contra decisão de Tribunal. Mas daí a se concluir que todo MPE teria legitimidade para propor e atuar em todo e qualquer recurso ou meio de impugnação diretamente no STF e STJ, segundo sua conveniência, inclusive ao arrepio da posição do MPF, nos parece um salto hermenêutico escorado em falácia do tipo non sequitur.
Como vencer a Hidra
A posição do Supremo no AgRg em HC 202.522/DF nos parece a mais acertada. Tal acórdão, porém, ainda não conforma precedente qualificado. Assim, se quisermos vencer a Hidra e superar de vez as múltiplas cabeças ministeriais que atuam desigualmente (e sem previsão legal) contra a defesa nas Cortes Superiores, urge cortar o mal pela raiz, assim como fez o herói grego: há que se cauterizar o Tema 946-RG por meio do necessário overruling, de modo a se garantir o desenho constitucional que assegura a paridade de armas por meio da atuação do MPF nas cortes superiores.
Restará ao MPE, de toda forma, aquilo que a jurisprudência do STF já lhe garantia: a capacidade postulatória para ajuizar e acompanhar reclamações ou mandados de segurança para impugnar diretamente no STJ e/ou STF decisões em processos cuja atribuição na origem já era sua.
[1] DUCLERC, Elmir. Direito processual penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 171.
[2] PACELLI, Eugênio. Curso de processo penal. São Paulo: Gen/Forense, 2020, p. 159.
[3] PACELLI, Eugênio. Curso de processo penal. São Paulo: Gen/Forense, 2020, p. 159
Encontrou um erro? Avise nossa equipe!