Público & Pragmático

O futuro das ações diretas de inconstitucionalidade por omissão

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23 de junho de 2024, 8h00

Prevista expressamente no § 2º do artigo 103 da Constituição, a ação direta de inconstitucionalidade por omissão sempre foi vista por doutrina e jurisprudência como um instrumento de limitada serventia para constranger o Poder Legislativo a exercer o seu mister constitucional de legislar. [1]

Até muito pouco tempo atrás, eram comuns decisões do Supremo Tribunal Federal que reconheciam a mora legislativa, mas que deixavam de estabelecer qualquer providência adicional contra o Congresso Nacional em virtude do princípio da separação dos Poderes. É o que explica o ministro Alexandre de Moraes na 39ª edição de sua doutrina sobre Direito Constitucional (2023):

[Quando a omissão advier do] Poder Legislativo: ciência para adoção das providências necessárias, sem prazo preestabelecido. Nessa hipótese, o Poder Legislativo tem a oportunidade e a conveniência de legislar, no exercício constitucional de sua função precípua, não podendo ser forçado pelo Poder Judiciário a exercer seu munus, sob pena de afronta a separação dos Poderes, fixada pelo art. 2º da Carta Constitucional. Como não há fixação de prazo para a adoção das providências cabíveis, igualmente, não haverá possibilidade de responsabilização dos órgãos legislativos. Declarada, porém, a inconstitucionalidade e dada ciência ao Poder Legislativo, fixa-se judicialmente a ocorrência da omissão, com efeitos retroativos ex tunc e erga omnes, permitindo-se sua responsabilização por perdas e danos, na qualidade de pessoa de direito público da União Federal, se da omissão ocorrer qualquer prejuízo. [2]

No ano de 2023, mudando um pouco esse cenário, o Supremo exarou decisão de procedência na ADO 27, com duas consequências distintas: “a) declarar a mora do Congresso Nacional em editar a lei pela qual se institui o Fundo de Garantia das Execuções Trabalhistas, nos termos determinados pelo art. 3º da Emenda Constitucional n. 45/2004; e b) fixar o prazo de vinte e quatro meses, a contar da data da publicação do acórdão, para que a omissão inconstitucional seja sanada”.

Na ocasião, o ministro Marco Aurélio ponderou que a segunda providência sugerida pela relatora, ministra Cármen Lúcia, seria indevida, pois “Constatada a inação do Poder Legislativo, cumpre tão somente declará-la, sendo impróprio, sob pena de desgaste maior, determinar prazo para vir a observar a obrigação de fazer. É perigoso, em termos de legitimidade institucional, uma vez que, não atuando o Congresso Nacional, a decisão se torna inócua”.

Mesmo assim, o voto da ministra relatora prevaleceu, sem que o STF tivesse esclarecido que tipo de medida poderia ser adotada no caso de inércia do Congresso, isto é, caso a omissão inconstitucional não fosse sanada no prazo de vinte e quatro meses.

É certo que essa decisão provocou certo alvoroço nos especialistas em controle de constitucionalidade, em parte empolgados com a possibilidade de uma nova disciplina para a matéria, com maior efetividade desse instrumento de controle de constitucionalidade criado pela Constituição de 1988, e em parte preocupados com a eventual inércia do Congresso e a inexistência de mecanismos efetivos para a garantia do cumprimento da decisão paradigmática em questão, o que culminaria nessa fragilidade institucional da qual falou o ministro Marco Aurélio.

Como a decisão foi proferida em julho de 2023, criou-se àquela altura a expectativa de que, em no máximo dois anos, a questão fosse revisitada pelo Supremo, para fins de constatar a eficácia ou não do decisum.

Ocorre que, antes disso, logo na sequência, o STF proferiu decisão na ADO 38, de relatoria do ministro Luiz Fux, reconhecendo a mora legislativa do Congresso em disciplinar a representação proporcional à população dos entes federados na Câmara dos Deputados, fixando prazo até 30 de junho de 2025 para que a omissão fosse sanada, sendo que, na persistência da omissão:

caberá ao Tribunal Superior Eleitoral determinar, até 1º de outubro de 2025, o número de deputados federais de cada Estado e do Distrito Federal para a legislatura que se iniciará em 2027, bem como o consequente número de deputados estaduais e distritais (CF, arts. 27, caput, e 32, § 3º), observado o piso e o teto constitucional por circunscrição e o número total de parlamentares previsto na LC nº 78/1993, valendo-se, para tanto, dos dados demográficos coletados pelo IBGE no Censo 2022 e da metodologia utilizada por ocasião da edição da Resolução-TSE 23.389/2013. Tudo nos termos do voto do Relator.

Tal providência, por si só, representou grande avanço prático na disciplina das omissões constitucionais por meio de ação direta de inconstitucionalidade por omissão, mas ainda não havia representado propriamente uma ingerência do Poder Judiciário na atividade fim do Poder Legislativo.

Agora, no início deste mês, mais especificamente no dia 06 de junho de 2024, o STF tomou uma decisão ainda mais ousada no âmbito do controle de constitucionalidade por omissão, não apenas fixando prazo para o Congresso editar lei regulamentadora, mas também esclarecendo sobre a possibilidade de “providências adicionais” no caso de descumprimento da decisão. Eis a tese fixada no bojo da ADO 63, tal como veiculada no Informativo nº 1140/2024, de 18 de junho de 2024:

  1. Existe omissão inconstitucional relativamente à edição de lei regulamentadora da especial proteção do bioma Pantanal Mato-Grossense, prevista no art. 225, § 4º, in fine, da Constituição. 2. Fica estabelecido o prazo de 18 (dezoito) meses para o Congresso Nacional sanar a omissão apontada, contados da publicação da ata de julgamento. 3. Revela-se inadequada, neste momento processual, a adoção de provimento normativo de caráter temporário atinente à aplicação extensivo-analógica da Lei da Mata Atlântica (Lei nº 11.428, de 2006) ao Pantanal Mato-Grossense. 4. Não sobrevindo a lei regulamentadora no prazo acima estabelecido, caberá a este Tribunal determinar providências adicionais, substitutivas e/ou supletivas, a título de execução da presente decisão. 5. Nos termos do art. 24, §§ 1º a 4º, da CF/88, enquanto não suprida a omissão inconstitucional ora reconhecida, aplicam-se a Lei nº 6.160/2023, editada pelo Estado do Mato Grosso do Sul, e a Lei nº 8.830/2008, editada pelo Estado do Mato Grosso.

Interessante perceber que, além de deixar em aberto a possibilidade de “providências adicionais, substitutivas e/ou supletivas, a título de execução da presente decisão”, o Supremo supriu, ele mesmo, ainda que temporariamente, a omissão legislativa, determinando a plena aplicação de legislações estaduais sobre o tema.

Agora, a expectativa é que a omissão seja suprida pelo Congresso nos 18 meses concedidos pelo Supremo ou, caso não seja, sobre qual tipo de providência a Corte irá tomar para garantir a efetividade da sua decisão.

Certamente, o futuro das ações diretas de inconstitucionalidade por omissão está no deslinde da ADO 63, possivelmente no final de 2025. Mas, independentemente de qualquer coisa, o que se constata, desde já, é que estamos diante de mais um episódio relevante no atual contexto de conflito entre o órgão de cúpula do Poder Judiciário e o Congresso.

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[1] A rigor, o Supremo Tribunal Federal sempre se sentiu mais à vontade para promover avanços para a solução das chamadas omissões legislativas por meio do mandado de injunção, que é remédio constitucional destinado a solucionar casos concretos. Grandes exemplos disso são os MIs 670, 708 e 712, sobre o direito de greve no serviço público, e o MI 758, sobre aposentadoria especial do servidor público. Em ambas as situações, o STF supriu a omissão legislativa por meio do uso analógico de leis já existentes.

[2] MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 39. ed. São Paulo: Atlas, 2023, p. 895.

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