Consequências da inibição progressista do processo e do recrudescimento penal
23 de junho de 2024, 6h35
A ideia de jurisdição a partir da tripartição dos poderes, sobretudo com Montesquieu em “O Espírito das Leis”, é concebida a partir da busca por autonomia e pretensão de sua limitação pela legalidade e neutralidade, de modo que esta última característica, nos dizeres de Pozzebon [1] em consideração ao racionalismo moderno, acarretaria julgadores afastados de subjetividades, cujo ofício se restringiria à mera aplicação da lei ao caso posto sob análise a fim de dar a cada um o que é devido.

Ocorre que, como mencionado por Ritter [2], esta qualidade concernente à neutralidade viria a corresponder, a posteriori, com a ideia de imparcialidade, mormente após o desvencilhamento da lógica cartesiana de objeto e método, pela qual ao ser humano seria possível a anulação das relações de conhecimento, alcançado um saber à margem de falhas, erros e imperfeições [3].
Nessa senda, explica Coutinho [4] que face aos discursos científicos, filosóficos e jurídicos modernos, propagadores de igualdade jurídica e perante a lei, a proposição de Actum Trium Personarum de Búlgaro se viu reforçada, ao passo que os discursos universalistas que outrora atribuíam as qualidades de imparcial e neutro ao julgador restaram-se ultrapassados quanto esta última.
Com efeito, passou-se a aduzir que cada sujeito teria sua própria percepção sobre cada coisa, de modo que sua acepção sobre um mesmo objeto seria sui generis em relação aos demais [5], vez que, segundo Maya [6], “a neutralidade, compreendida como ausência de valores, de ideologia, apresenta-se como uma utopia, algo inalcançável diante da essência do homem, ser humano constituído por razão e emoção […]”.
Uma vez sobrepondo-se a concepção de sujeito axiológico sobre a então insubsistente neutralidade [7], invariavelmente esta máxima produzirá efeitos no campo processual penal, porquanto o juiz, enquanto ser-no-mundo, sempre estará vinculado às circunstâncias do ambiente em que está inserido que, de acordo com Ferrajoli [8], podem ser atribuídas aos sentimentos, emoções e valores ou inclinações éticas e políticas.
Logo, estando presente nas decisões judiciais toda a carga valorativa inerente ao ser humano julgador, infere Carnelutti [9] que “a justiça humana não pode ser senão uma justiça parcial; a sua humanidade não pode senão resolver-se na sua parcialidade. Tudo aquilo que se pode fazer é buscar diminuir esta parcialidade”.
Tendo em vista ser a imparcialidade o princípio supremo do processo penal, como sustentam Aragoneses Alonso e Werner Goldschimit, a resolução proposta por Carnelutti deve ser empreendida a partir da compreensão desta máxima como sendo uma “construção técnica e artificial do direito processual, para estabelecer a existência de um terceiro, com estranhamento e em posição de alheamento em relação ao caso penal (terzietà), que estruturalmente é afastado” [10].

Reafirmação do sistema acusatório
Esses mecanismos técnicos a serem construídos, em linhas gerais, alocam-se em sintonia à (re)afirmação do sistema acusatório — único concebível à luz da Constituição —, cuja máxima consiste, a partir dos postulados de Kant sobre sistema e princípio informativo com elementos circundantes, em alocar a gestão da prova nas mãos das partes para, em tensionamento dialético, produzirem-na e encaminharem a um juiz equidistante (explica Jacinto Coutinho), mas que só é e pode ser imparcial caso blindado cognitivamente a partir da instituição do doble juez, com o juiz das garantias, e o não apensamento dos autos do inquérito ao processo.
A referida blindagem cognitiva se releva ao passo que algumas teorias da psicologia foram produzidas e, posteriormente, trazidas ao contexto processual penal, destacando-se a Teoria Da Dissonância Cognitiva, fruto dos estudos da psicologia social, o efeito primazia, advindo do fenômeno de percepção de pessoas, além do confirmation bias, de modo a confirmar, em linhas gerais, a influência dos vieses pré-constituídos às cognições que sobrevirão.
Em muito apertada síntese, os estudos a partir da Psicologia Social partiram da premissa básica de coerência entre cognições (opiniões, atitudes, pensamentos) entre os indivíduos, restando assentado que a quebra entre essa harmonia causa desconforto e efeitos (in)voluntários no sentido de retornar ao status confortável.
No campo do processo penal, cujo destaque se dá a Bernd Schünemann, há duas versões antagônicas apresentadas por acusação e defesa e uma invariável construção de pré-julgamentos por um juiz que é chamado muito cedo a conhecer (autos do inquérito) ou mesmo decidir (medidas com reserva de jurisdição), sendo que restou demonstrado, empiricamente, que a tendência é a manutenção da sintonia com aquilo que foi visto ou decidido.
Para além dos postulados sobre a dissonância cognitiva, com o efeito confirmation bias, destacando-se a pesquisa realizada por Gloeckner [11], restou demonstrado a partir de um recorte metodológico de 90 acórdãos do TJ-RS, com os devidos filtros pré-estabelecidos, que em 100% destes casos houve decretação de prisão cautelar e esta mesma segregação foi utilizada como fundamentação — ainda que parcialmente — nos decretos condenatórios, evidenciando não apenas a vinculação cognitiva, como também a inconsistência em se ter a prevenção como critério fixador da competência, posto que há o comprometimento da imparcialidade face aos pré-julgamentos e ao próprio contato com os elementos informativos de investigação [12].
No mesmo sentido, as conclusões obtidas pelos primados do efeito primazia apontaram a vinculação à primeira cognição ao ponto de ela ser a direcionadora das demais cognições, sendo plausível inclusive a desatenção às demais que se contrapõem à inicial, de modo a prevalecê-la.
Nesse contexto, alguns dispositivos do “pacote anticrime”, como a ratificação do sistema acusatório, a previsão de competência funcional do julgador por fase do processo e a preocupação com a cognição do magistrado face aos elementos informativos do inquérito produzidos mormente de maneira unilateral, despontaram como alterações plausíveis e em consonância ao processo penal democrático, todavia, a partir da deliberação do STF nas ADIs 6298, 6299, 6300 e 6305, alterou-se a redação em pontos específicos, à contramão da louvável previsão originária, o que pode acarretar o regresso à indesejada circularidade inquisitória.
Juiz das garantias até o oferecimento da denúncia
Analisando-se objetivamente a deliberação resultante da interpretação do Supremo, destaca-se desde a oportunização ao julgador para determinar, de maneira pontual, a realização de diligências suplementares sobre pontos relevantes, até a fixação do término da atuação do juiz das garantias com o oferecimento, e não mais recebimento da denúncia, cabendo ainda ao magistrado da instrução o reexame das cautelares em curso.
Para além disto, declarou-se não só a inconstitucionalidade da previsão legal de afastamento do inquérito dos autos processuais, o que possibilitará o contato do julgador com o caderno investigativo, mas também da implementação legal de impedimento de o juiz sentenciar quando conhecer de prova inadmissível.
O ponto nevrálgico da questão é: se a psicologia social, as premissas do confirmation bias e os estudos sobre o fenômeno de percepção de pessoas são harmoniosos, por suas conclusões, a conduzirem à aplicação maximizada destes institutos supracitados — visando especialmente à manutenção da originalidade cognitiva do julgador, haja vista os pré-juízos gerarem imensos prejuízos, como ensina Aury Lopes Jr. —, e em se considerando a situação contemporânea de recrudescimento penal, quão impactante e afrontadora aos direitos fundamentais dos cidadãos não é essa dupla via, de mitigação de efeitos de dispositivos de contenção do poder punitivo e ampliação legal de tipos penais e majoração de penas, que invariavelmente se condiciona?
Está-se diante de um contexto no qual o discurso populista penal irracional ganha enorme destaque nas casas legislativas do País, auxiliado pela criminologia midiática que, segundo Callegari e Fontenele [13], fere de morte o processo penal por corroborar “a construção de uma ‘opinião pública’ ou publicável, partindo do discurso do medo, relegitimando a autoridade punitiva, mantendo o status quo, manipulando narrativas e elegendo inimigos do sistema”, acarretando a formação de consciência pública pela crença suprema de expansão do poder punitivo como neutralizador dos males.
Despontam, também em consequência, a propagação do denominado processo penal do espetáculo cuja premissa comum é de uma fantasiosa luta do bem contra o mal em busca do bem-estar social, além do hiperpunitivismo que incide a um já hipertrofiado sistema punitivo, em que: seus reflexos são mais drásticos nos sistemas penais marginais, situados em contextos socioeconômicos nos quais a nova ideologia inabilitante alia-se às precariedades conjunturais e estruturais de que padece o 3º Mundo. Nessa esteira, o encarceramento em massa, somado à desídia e à falta de estrutura, permite que se diga que, no Brasil, o sistema penal consiste em um aparato genocida [14].
Portanto, a concepção de direito penal máximo construído paulatinamente em razão dos referidos discursos — rasos, reducionistas e sem embasamento científico — que buscam legitimá-lo, contribui cada vez mais para o pânico moral e para a sensação de medo, aos quais justamente as declarações imediatistas e populistas penais despontam como sendo as (simplórias) solucionadoras.
Em decorrência lógica, mais criminalizações de condutas e maior exasperação das sanções em um sistema de justiça criminal cujo processo penal, sem embargo de ser objeto de algumas alterações pontuais progressistas para o assentamento de julgamentos imparciais, justos e equitativos (juiz das garantias, não apensamento dos autos do inquérito ao processo e ratificação legal do sistema acusatório constitucional), vê-se inibido de assim prosperar ante a atenuação de efeitos das implementações, o que leva a apenas reforçar um ciclo de mais condutas puníveis, com maior tendência de punição concreta e consequente crescimento de um já colapsado sistema penitenciário.
Essa dupla via outrora citada que, no campo da criminologia, de um lado, enquanto de outro no processo penal, caminha mutuamente no sentido da ampliação do direito penal, que reflete no processo, o qual não se mostra, contemporaneamente, como mecanismo intransponível de contenção do poder punitivo, permitindo a conclusão empírica de que a expansão das condutas puníveis (ante a ausência de reflexão sobre “o que punir” e “como punir”) e das penas, com julgamentos muitas vezes passíveis de serem decididos ex ante pela própria incompatibilidade do modelo procedimental atual, sem embargo das alterações legais e com vistas à deliberação do STF, ocasiona um abastecimento ao ciclo punitivo desarrazoado e ilegítimo que se busca combater.
[1] 2007, p. 169 apud RITTER, Ruiz. Imparcialidade no processo penal: reflexões a partir da teoria da dissonância cognitiva. 2ª ed. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2019, p. 66.
[2] Ibid., 2019, p. 66.
[3] COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Introdução aos princípios gerais do Direito
Processual Penal Brasileiro. Revista da Faculdade de Direito da UFPR. Curitiba, ano 30, n. 30, p. 163-198, 1998, p. 169.
[4] Ibid., 1998, p. 169-171.
[5] BECCARIA, Cesare Bonesana. Dos Delitos e das penas. Trad. – Torrieri Guimarães – São Paulo: Martin Claret, 2014, p. 20.
[6] 2014, p. 53 apud RITTER, Ruiz. Imparcialidade no processo penal: reflexões a partir da teoria da dissonância cognitiva. 2ª ed. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2019, p 70.
[7] COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Introdução aos princípios gerais do Direito
Processual Penal Brasileiro. Revista da Faculdade de Direito da UFPR. Curitiba, ano 30, n. 30, p. 163-198, 1998, p. 171.
[8] 2014, p. 56 apud RITTER, Ruiz. Imparcialidade no processo penal: reflexões a partir da teoria da dissonância cognitiva. 2ª ed. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2019, p. 71.
[9] CARNELUTTI, Francesco. As Misérias do Processo Penal. 3ª Ed – 2ª tiragem. Leme, SP: CL EDIJUR, 2015, p. 35.
[10] LOPES Jr., Aury. Fundamentos do Processo Penal: introdução crítica. 6. Ed. – São Paulo: Saraiva Educação, 2020, p. 255.
[11] GLOECKNER, Ricardo Jacobsen. Prisões cautelares, confirmation bias e o direito
fundamental à devida cognição no processo penal. Revista Brasileira de Ciências
Criminais. São Paulo, ano 23, v. 117, p. 263-286, jan./fev. 2015, p. 272-273.
[12] LOPES Jr., Aury. RITTER, Ruiz. A Imprescindibilidade do Juiz das Garantias pra uma
Jurisdição Penal imparcial: reflexões a partir da teoria da dissonância cognitiva. Revista Duc In Altum Cadernos de Direito, vol. 8, nº 16, set.-dez. 2016, p. 65.
[13] CALLEGARI, André Luis; FONTELENE, Marília.: Criminologia midiática e reflexos no processo penal brasileiro. Revista Consultor Jurídico, 26 de abril de 2020. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-abr-26/apontamentos-criminologia-midiatica-reflexos-processo-penal-brasileiro. Acesso em: 05 maio. 2023.
[14] SHIMIZU, Bruno. O Sistema Penal Brasileiro é um aparato genocida. Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais. v. 17, n. 208, p. 14-15, 2010.
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