A relação entre as fábulas, a aplicação do Direito e as profissões jurídicas
23 de junho de 2024, 8h00
As fábulas são uma forma de transmitir lições de vida, fruto de conclusões sustentadas por séculos de experiências. Poucos percebem, mas, por serem elas uma forma de narrar as relações e reações do cotidiano através das palavras e conclusões dos animais, frequentemente dão ensinamentos de grande valia na aplicação do Direito.
As fábulas têm nas pessoas de Esopo, que teria vivido na Grécia seis séculos antes de Cristo, e em Jean de La Fontaine, francês que viveu no século XVII, seus maiores autores. Os escritos destes dois gigantes são comentados pelo também gigante Monteiro Lobato, na obra Fábulas (1922). Vejamos.
A cigarra e a formiga
Certamente de todas a mais conhecida, relata a história de uma cigarra que, no rigor do inverno europeu, bate à porta da formiga pedindo abrigo. A formiga pergunta: “O que você fez durante todo o verão?” “Eu cantei”, respondeu a cigarra. A formiga, sem piedade, disse: “pois então, agora dance!”.
A cruel conclusão de Esopo foi objeto de uma versão menos áspera de Monteiro Lobato, que deu uma segunda versão, na qual a formiga dá abrigo à cigarra e reconhece que a sua música alegrava os que trabalhavam.[i] Em que pese a boa intenção de Monteiro Lobato, quem conhece a vida sabe que as portas sempre se fecham aos que não se preparam. A fábula aplica-se em duas situações.

Vladimir Passos de Freitas
A primeira, aos estudantes, que estão entrando no mundo do Direito. Se cantarem durante o verão, descuidando-se de preparar-se para a vida adulta através do estudo, do planejamento, da criação de uma rede de contatos, terão a ingrata surpresa de não se colocarem profissionalmente e terem que viver com a média salarial dos advogados, R$ 5.292 por mês, que mal dá para as necessidades básicas.[ii] A segunda, aos profissionais, principalmente aos advogados, que na fase áurea receberam bons rendimentos, mas que gastaram sem economizar e investir na previdência, não se prepararam para a velhice, o inverno da vida. E aí, quando mais necessitam, vivem em péssimas condições, por vezes recebendo benefício da OAB.[iii]
O cão e a carne
Um cão levava na boca um pedaço de carne e, tendo que atravessar um rio, viu a carne refletida na água. Porém, a visão deu-lhe a impressão de que a carne refletida era maior do que a que trazia consigo. Imediatamente soltou a que levava nos dentes para apanhar a que viu na água. A carne que levava foi-se com a correnteza e, com ela, a sua imagem refletida. E ele acabou sem nada.
As mudanças profissionais no Direito são boas, a insatisfação estimula o crescimento. Mas, por vezes, o risco é grande e não compensa. Um eterno insatisfeito nas carreiras públicas estará sempre a olhar o ocupante de outra e a comentar que ele tem isto (ex. plantão remunerado) ou aquilo (reconhecimento da sociedade). Por vezes, o dinheiro que se ganha em atividade privada é a tentação. Muitos, inclusive juízes, largam para tentar a vida como coachs, que já exercem desafiando a Corregedoria. Não percebem que a fama conquistada deveu-se mais que tudo exatamente a serem juízes e que, perdida a condição, serão um a mais entre milhares. É preciso avaliar bem o risco, evitando ficar sem uma e sem a outra.
O lobo e o cordeiro
O cordeiro estava bebendo água num riacho quando avistou um lobo bebendo mais acima. O lobo perguntou: “como é que você tem a coragem de sujar a água que eu bebo?” O cordeiro explicou que, estando embaixo, não poderia sujá-la. O lobo não desistiu, acusou-o de agitar a água e de ter falado mal dele no ano passado. O cordeiro disse ser impossível, pois ainda não tinha nascido, ao que o lobo respondeu “se não foi você foi seu irmão, o que dá no mesmo”. O cordeiro explicou que não tinha irmão. O lobo retrucou que então seria outro cordeiro, um irmão ou conhecido e, dito isto, abocanhou o cordeiro para comê-lo.
A fábula põe em discussão a razão do mais forte, o conflito entre a força e o direito. A força prevalece nas ditaduras, quando o estado de direito está enfraquecido e o Poder Judiciário não tem independência. No regime militar, alguém cassado pelo AI 5 não era previamente ouvido nem poderia discutir o ato do Executivo. A força prevalecia. É comum que diante de atos arbitrários muitos se posicionem favoravelmente. É erro flagrante, porque amanhã poderão ser as vítimas, pois o arbítrio não tem lado. Portanto, a defesa do estado de direito independe da situação do momento, é algo permanente e, por isso, todos devem lutar contra os excessos, mesmo que deles tirem vantagem.
A fábula envolve justiça e ética. Deve sempre ser lembrada a máxima “Ubi non est justitia, ibi non potest esse jus” (Onde não existe justiça não pode haver direito). Do ponto de vista ético, o Código do CNJ destinado aos juízes dispõe no art. 22 que: “Art. 22. O magistrado tem o dever de cortesia para com os colegas, os membros do Ministério Público, os advogados, os servidores, as partes, as testemunhas e todos quantos se relacionem com a administração da Justiça”. Por óbvio, este dever é recíproco, sendo também dever de todos os demais atores do sistema judiciário.
O leão e o rato
O leão dormia, quando um ratinho começou a correr por cima dele. O leão acordou, pôs-lhe a pata em cima e preparou-se para comê-lo. O ratinho pediu clemência e disse que se um dia o leão dele precisasse não o esqueceria. Achando engraçada a oferta, o leão deixou-o partir. Dias depois, o leão caiu em uma armadilha de caçadores. Debateu-se desesperadamente na rede em que foi envolvido, sem sucesso. À noite, o ratinho aproximou-se e roeu as cordas que o prendiam, assim salvando o Rei dos Animais.
A fábula lembra a importância de tratar os outros com respeito e educação. No mundo jurídico, à medida que se sobe nas posições hierárquicas, aumenta-se o risco do orgulho e da arrogância, desprezando-se os que ocupam posições com menos poder. Aos arrogantes, depois de aposentados, só restará a solidão, abandonados pelos que dele se aproximavam por interesse.
O urso e as abelhas
O urso, picado por uma abelha, enfureceu-se e atacou a colmeia, destruindo-a parcialmente. Ocorre que as abelhas saíram enfurecidas e atacaram-no sem piedade, fazendo-o fugir para local distante.
A lição se aplica ao mundo jurídico. Dias atrás, em Santos, um motorista reagiu a um idoso (77 anos) que atravessava a rua com o neto e, face à velocidade excessiva e a brusca freada do motorista, apoiou as mãos em seu carro. O motorista saiu e deu um golpe chamado de “voadora” no pedestre, matando-o. Agora, preso, durante a reconstituição dos fatos o homicida se jogou ao chão e chorou arrependido.[iv] Como o urso, furioso, reagiu de forma excessiva. E agora sofre a reação da sociedade, tal qual a das abelhas. O julgamento definirá o seu destino.
As fábulas expostas e outras tantas existentes, traduzem conclusões da observação humana por séculos. É importante que sejam conhecidas pelos estudantes e pelos profissionais do Direito, pois podem ser aproveitadas na aplicação da lei e na condução das atividades profissionais.
[i] PRIETO, BENITA (Org.). Fabulosas fábulas. Ações & Conexões – Associação Cultural. Disponível em: https://cantic.org.pt/wp-content/uploads/2021/12/ebook-Fabulosas-Fabulas-Monteir-Monteiro-Lobato.pdf, pp. 8-10. Acesso em 21 jun. 2024.
[ii] Glassdoor. Salários de Advogado. Disponível em: https://www.glassdoor.com.br/Sal%C3%A1rios/advogado-sal%C3%A1rio-SRCH_KO0,8.htm. . Acesso em 21 jun. 2024.
[iii] OAB Paraíba. Disponível em: https://portal.oabpb.org.br/2020/04/coronavirus-caa-concedera-auxilio-alimentacao-para-advogados-carentes-da-paraiba/. Acesso em 22 jun. 2024.
[iv] BENTO, Brenda. G1 Santos e Região. Preso por matar idoso com ‘voadora’ chora e pede desculpas de joelhos em reconstituição do crime; VÍDEO. Disponível em: https://g1.globo.com/sp/santos-regiao/noticia/2024/06/14/preso-por-matar-idoso-com-voadora-chora-e-pede-desculpas-de-joelhos-em-reconstituicao-do-crime-video.ghtml. Acesso em 21 jun. 2024.
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