Paradoxo da Corte

Inusitada página da história do Supremo Tribunal Federal

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  • é sócio do Tucci Advogados Associados ex-presidente da Aasp professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP membro da Academia Brasileira de Letras Jurídicas e do Instituto Brasileiro de Direito Processual e conselheiro do MDA.

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21 de junho de 2024, 8h00

Ninguém acreditaria que no início da nossa República, os precedentes da Suprema Corte dos Estados Unidos poderiam ser aplicados, como direito subsidiário, pelo Supremo Tribunal Federal, na hipótese de lacuna nas leis pátrias!

No Brasil, enquanto colônia do Reino Unido de Portugal, as nossas regras jurídicas eram naturalmente ditadas pelas leis lusitanas.

Após a Independência, continuou a vigorar no território brasileiro, por força de lei, aprovada pela Assembleia Constituinte e Legislativa, em 20 de outubro de 1823, toda a legislação (ordenações, leis, regimentos, alvarás, decretos e resoluções) promulgada pelos monarcas portugueses,

e pelas quais o Brasil se governava até o dia vinte e cinco de abril de mil oitocentos e vinte e um, em que Sua Majestade Fidelíssima, atual Rei de Portugal e Algarves, se ausentou desta Corte; e todas as que foram promulgadas daquela data em diante pelo Senhor Dom Pedro de Alcântara, como Regente do Brasil, enquanto Reino; e como Imperador Constitucional dele, desde que se erigiu em Império, ficam em inteiro vigor na parte em que não tiverem sido revogadas; para por elas se regularem negócios do interior deste Império, enquanto não se organizar um novo Código, ou não forem especialmente alteradas…”.

E, sem embargo da abalizada opinião de Braga da Cruz, no sentido de que o ordenamento jurídico pátrio sofreu, de modo considerável, a influência de um acentuado condicionamento histórico, é certo que não seria possível, de um dia para o outro, a elaboração de uma codificação genuinamente brasileira (Braga da Cruz, A formação histórica do moderno direito privado português e brasileiro, Revista da Faculdade de Direito da USP, 50, 1955, pág. 65).

Assim, diante das circunstâncias, as Ordenações Filipinas e a legislação posterior, inalteradas, continuaram vigentes. Esse, na verdade, o motivo pelo qual ficamos mais apegados à tradição jurídica de Portugal do que os seus próprios juristas.

Spacca

Se, com o passar do tempo, o nosso legislador foi recolhendo subsídios da experiência jurídica estrangeira, não deixou de preocupar-se, principalmente, em consolidar, de forma mais científica, a obra do passado; expurgando preceitos já obsoletos; lenta e sabiamente foi sendo erguida uma estrutura capaz de atender aos anseios da nação nova, constituindo o produto do esforço conjugado e harmonioso dos órgãos legislativos, da doutrina e da jurisprudência.

Supremo Tribunal de Justiça

Aduza-se que, em atendimento ao artigo 163 da Constituição Política do Império do Brasil, de 1824, o Supremo Tribunal de Justiça foi organizado pela lei de 18 de setembro de 1828, então composto por 17 juízes letrados, escolhidos entre desembargadores dos Tribunais da Relação, “por suas antiguidades”.

De fato, os artigos 1º, 2º e 3º desse texto legal dispunham, no original, que:

“Art. 1º. O Supremo Tribunal de Justiça será composto de dezasete Juizes letrados, tirados das Relações por suas antiguidades, e serão condecorados com o titulo do Conselho; usarão de béca, e capa; terão o tratamento de excellencia, e o ordenado de 4:000$000 sem outro algum emolumento, ou propina. E não poderão exercitar outro algum emprego, salvo de membro do Poder Legislativo, nem accumular outro algum ordenado. Na primeira organização poderão ser empregados neste Tribunal os Ministros daquelles, que se houverem de abolir, sem que por isso deixem de continuar no exercicio desses Tribunaes, enquanto não forem extinctos.

Art. 2º. O Imperador elegerá o Presidente d’entre os membros do Tribunal, que servirá pelo tempo de tres annos. No impedimento, ou falta do Presidente, fará suas vezes o mais antigo, e na concurrencia de dous de igual antiguidade a sorte decidirá.

Art. 3º. O Presidente prestará nas mãos do Imperador, e os outros membros nas do Presidente o seguinte juramento – Juro cumprir exactamente os deveres do meu cargo”.

Código do Processo Criminal do Império

Resistindo então à ruptura abrupta dos laços políticos entre Portugal e Brasil, somente quase dez anos depois da emancipação política é que o nosso Direito sofreria inovações.

Promulgado em 1832, o Código do Processo Criminal do Império — que marcou época em razão da primorosa redação e de seu conteúdo liberal — trazia como título à parte (título único) a Disposição provisória acerca da administração da justiça civil.

O desenho das instituições políticas, em particular, da organização do Poder Judiciário, iria perdurar praticamente sem modificações durante todo o período do Brasil independente.

Justiça Federal e STF

Após a proclamação da República, como consequência do regime federalista desenhado pela primeira Constituição republicana de 1891, foi instituída pelo governo provisório a Justiça Federal nos moldes do Direito argentino e do Direito dos Estados Unidos.

Os registros históricos da época revelam a presença marcante de Ruy Barbosa, que foi o grande protagonista da implantação do modelo federalista no Brasil.

Não podemos nos esquecer que Ruy Barbosa, por meio de seu papel – oriundo de sua formação liberal – como jurisconsulto de enorme prestígio no início da nossa República, exerceu enorme influência para a instalação do Supremo Tribunal Federal, tendo sido um entusiasta dos direitos fundamentais, além de mentor intelectual da Carta de 1891. Ademais, foi notável a sua contribuição para a doutrina brasileira sobre a Jurisdição Constitucional.

Em atendimento aos artigos 55 e 56 da Lei Maior, o Decreto 848, de autoria de Campos Salles, editado em 11 de novembro de 1890, organiza a Justiça Federal, regulamenta o processo civil e o processo criminal, e cria, no Rio de Janeiro, o Supremo Tribunal Federal, a ser então composto por 15 ministros.

É muito provável que os juristas do governo provisório tenham se inspirado para a implantação do nosso Supremo Tribunal Federal no formato constitucional da Suprema Corte norte-americana, como uma instituição visando a preservar um regime político democrático e, ainda, o controle dos atos legislativos.

A instalação do Supremo Tribunal Federal ocorreu em 28 de fevereiro de 1891, ao ensejo de sua primeira sessão plenária, sob a presidência interina do ministro Sayão Lobato (Visconde de Sabará), que, até então, presidira o Supremo Tribunal de Justiça. Em tal ocasião foi eleito o primeiro presidente da corte, ministro Freitas Henriques (natural da Bahia).

Recurso extraordinário e precedentes

Foi o mesmo Decreto 848 que, no artigo 9º, parágrafo único, instituiu um recurso contra as sentenças definitivas proferidas pelos tribunais estaduais, a exemplo do writ of certiorari do direito dos Estados Unidos. Mais tarde, no Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal, de 8 de agosto de 1891, é que esse meio de impugnação foi denominado recurso extraordinário.

É de ter-se presente que, no âmbito do common law, como é sabido, os precedentes judiciais exercem um papel fundamental em prol da uniformização da interpretação e da aplicação do direito. É evidente, outrossim, que os julgados da Suprema Corte norte-americana projetam enorme eficácia (vertical) sobre todos os tribunais estaduais e federais do país, inclusive, por certo, no estado de Louisiana, no qual, por razões históricas, o sistema legal se norteia pelo Direito codificado.

O inusitado artigo 386 do Decreto 848

Pois bem, diante desse cenário evolutivo, que certamente também influenciou o nosso legislador, no início da era republicana, enseja enorme perplexidade uma inusitada e curiosíssima disposição constante do referido Decreto 848. Com efeito, dispunha o artigo 386, inserido entre as “Disposições Geraes”, que, na hipótese de “omissão” da lei, os nossos tribunais e, em particular, o Supremo Tribunal Federal, deverão se valer:

Dos estatutos dos povos cultos e especialmente os que regem as relações jurídicas na República dos Estados Unidos da América do Norte, os casos de common law e equity, serão também subsidiários da jurisprudência e processo federal”.

A despeito de ser muito pouco conhecida, essa regra bem demonstra a ideia que os nossos legisladores tinham do prestígio da Suprema Corte americana, a qual já àquela época, em 1803, no famosíssimo julgamento do caso Marbury v. Madison, considerado o marco inicial do controle de constitucionalidade (judicial review), o Justice John Marshall, como relator, havia mostrado ao mundo a reverência que os magistrados devem ter ao texto constitucional.

Aduza-se, por fim, que apesar de a referida regra ter vigorado no Brasil por um século, até quando expressamente revogada pelo Decreto 11, de 18 de janeiro de 1991, nas pesquisas por mim realizadas em antigos repertórios da jurisprudência do nosso Supremo Tribunal Federal, não encontrei um único acórdão que tivesse como paradigma/fundamento um precedente da Suprema Corte dos Estados Unidos.

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  • é sócio do Tucci Advogados Associados, ex-presidente da Aasp, professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Brasileira de Letras Jurídicas e do Instituto Brasileiro de Direito Processual, conselheiro do MDA e vice-presidente do Conselho Superior de Assuntos Jurídicos da Fiesp.

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