Opinião

Aspectos regulatórios em incorporações do setor farmacêutico

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  • é advogado empresarial pós-graduado em Direito Societário e Contratos Empresariais pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC/PR) especialização executiva em Direito Contratual e Direito Imobiliário pela Fundação Getúlio Vargas (FGV).

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20 de junho de 2024, 15h14

Muito se sabe sobre os efeitos decorrentes da incorporação de empresas, notadamente a sucessão de direitos e obrigações assumidos pela incorporadora no ato de compra de suas cotas e registro em Junta Comercial. Costuma-se dizer que tais compromissos são transmitidos em razão de mandamento legal, independentemente de qualquer declaração estatal ou particular (ex lege). O artigo 1.116 do Código Civil estabelece essa premissa:

“Art. 1.116. Na incorporação, uma ou várias sociedades são absorvidas por outra, que lhes sucede em todos os diretos e obrigações, devendo todas aprová-la, na forma estabelecida para os respectivos tipos.”

A redação traz, portanto, um efeito inafastável que nenhum outro instrumento particular pode contradizer, não apenas expressando uma preocupação do legislador com os credores da sociedade adquirida como também reconhecendo um desdobramento natural lógico da operação de incorporação.

Um exemplo comum desta consequência é a sucessão tributária operada em face da incorporadora, quando esta assume todo o passivo tributário da empresa incorporada, respondendo em nome próprio pelos fatos e débitos validamente constituídos contra a contribuinte anterior (artigo 132, CTN).

A esse respeito, o STJ acertadamente aduziu em seu acórdão que “a empresa sucessora poderá ser acionada independentemente de qualquer outra diligência por parte da Fazenda credora, não havendo necessidade de substituição ou emenda da CDA para que ocorra o imediato redirecionamento da execução fiscal” [1]. Claro, se os efeitos da incorporação e fusão operam-se automaticamente por lei, não podem os mesmos servirem de obstáculo ao ressarcimento do erário.

Apesar de tanto, a sucessão operada por meio da aquisição societária não produz efeitos imediatos em todas as esferas, demandando um conjunto de precauções voltadas a quais medidas devem ser tomadas com a efetivação do ato incorporatório, sendo necessárias uma série de diligências até que todo o patrimônio tangível e intangível possa efetivamente ser transferido para o novo titular.

Empreendedorismo farmacêutico

Nesta oportunidade, nos deteremos com maior ênfase à forma com que os registros farmacêuticos de medicamentos e cosméticos podem ser transferidos à sociedade incorporadora, protegendo a integralidade do patrimônio de ativos adquirido. Esse cenário ganha campo, pois tais registros costumam ter valores de registro e renovação altíssimos, que muitas vezes comprometem o próprio empreendedorismo farmacêutico.

Assim, caso haja uma leitura isolada do artigo supracitado do Código Civil, haverá a conclusão precipitada de que esses registros que viabilizam a produção, industrialização e comércio de medicamentos/cosméticos poderiam ser automaticamente transferidos sem maiores preocupações. Infelizmente, não é o que ocorre.

Isso não significa, contudo, que a nova farmacêutica perderá esses ativos na sua inércia, ao menos a curto ou médio prazo, mas a ausência de precauções dificulta em grande medida a prova deste direito a terceiros, principalmente fornecedores, vigilância sanitária e até autoridades licitantes que demandam este tipo de documentação para o prosseguimento da contratação pública.

RDC 102

Prevenindo-se esses eventos, a RDC nº 102/2016 [2] veio unicamente para regular todo o processo de transferência de titularidades registrais, que antes dependiam de regramentos esparsos, com normas que nem sempre guardavam coerência entre si[3].

A RDC atual disciplina não só a incorporação e fusão de empresas em território nacional, mas também as operações realizadas internacionalmente, avançando em vários aspectos que tornaram mais seguro e célere o processo de transferência de registros.

A transferência neste procedimento é iniciada com o peticionamento formal à agência, informando todas as particularidades de cada empresa, apresentando seus atos societários, comprovantes da operação efetivada perante a Junta Comercial e autorizações obtidas da empresa adquirida (ou de ambas, no caso de fusão), de forma que não faltem elementos à autoridade regulamentar para o deferimento da transferência de registros.

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Da mesma forma, deve a incorporadora perquirir, através de due dilligence, quais são os registros de medicamentos que estão perto de sua renovação sob pena de ter sua suspensão e consequente extinção decretada pela agência reguladora, se constatada a ausência de pagamento. Portanto, natural que seja mantido o necessário compliance farmacêutico, preferencialmente sob um sistema de controladoria interna, sem depender de intimações estatais.

Quanto à conformidade administrativa estadual, são necessários também avisos de incorporação farmacêutica às vigilâncias sanitárias nas quais a empresa adquirida teve suas operações autorizadas e cadastros modificados, especialmente no tocante à importância de renovação dos alvarás de funcionamento de tais estabelecimentos (estabelecimentos industriais, estabelecimentos comerciais de atendimento, depósito, manipulação de medicamentos e etc.).

Logo, o trabalho do profissional de M&A não se exaure com a efetiva incorporação. Ao contrário, é o ponto de partida para uma série de outros atos que deverão ser implementados para a garantia de que o negócio celebrado foi adquirido em sua totalidade, prevenindo-se todos os riscos que possam ocorrer com o início do novo controle societário.


[1] REsp 1.848.993/SP, 1ª Seção, rel. min. Gurgel de Faria. DJe 09/09/2020.

[2] https://antigo.anvisa.gov.br/documents/10181/2953481/%282%29RDC_102_2016_COMP.pdf/0be5ad8f-9f0c-474d-b91f-78c1d4094afa> Acesso em jun.2024.

[3] Anteriormente, a Consulta Pública nº 04/15 da Anvisa era o diploma que mais se aproximava da regulação, fruto de uma sucessão de outras consultas sobre o mesmo tema, sem, contudo, disciplinar todas as espécies de operações societárias, o que levava a um estado de insegurança jurídica na matéria.

Autores

  • é advogado empresarial, pós-graduado em Direito Societário e Contratos Empresariais pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC/PR), especialização executiva em Direito Contratual e Direito Imobiliário pela Fundação Getúlio Vargas (FGV).

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