Opinião

Participação popular e audiência pública virtual no licenciamento ambiental

Autores

  • é advogado procurador do Estado do Rio de Janeiro e professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) doutorando e mestre em Direito Público pela Universidade de Coimbra/Portugal especialista em Direito Ambiental pela PUC/RJ e autor de A simplificação no Direito Administrativo e Ambiental (Lumen Juris 2020).

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  • é advogado doutorando em Direito e Desenvolvimento pelo PPGD da FGV-SP mestre em Direito Internacional e Sustentabilidade pelo PPGD da UFSC e especialista em Direitos e Negócios Imobiliários e em Direito Ambiental e Urbanístico pelo Ibmec-SP.

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18 de junho de 2024, 21h15

A administração pública possui dever constitucional de tornar mais eficiente sua atuação. Dentre as possibilidades de executar esse dever está a simplificação administrativa, que desencadeia medidas como a desmaterialização de atos ou procedimentos [1].

Walterson Rosa/MS

O conjunto de novas tecnologias que alteram os parâmetros de difusão, produção e comunicação de informações estatais tem sido chamado de governo digital [2]. Essas mudanças marcam uma nova fase da interação entre o poder público e os cidadãos, acelerando o acesso à informação e o tramite processual, permitindo uma maior uniformização de procedimentos e decisões [3].

É possível afirmar que as restrições sanitárias causadas pela Covid-19 aceleraram o processo de implementação do governo digital. A necessidade de manter prestações de serviço acarretou mudanças, como implementação de home office, digitalização de processos, mecanismos de atendimento e agendamento de reuniões on-line. Muitas dessas medidas não se encerraram com o fim da pandemia, sendo incorporadas.

No âmbito do licenciamento ambiental, uma das mudanças mais impactantes foi a instituição da audiência pública virtual, que não foi mantida. A adequação entre a audiência pública virtual e a participação popular é o objeto do presente artigo.

Audiência pública e efetivação da participação popular

A participação popular é consagrada como princípio pela CFRB 1988, que a divide em duas formas: a participação direta e indireta (artigo 1º, p.u). Enquanto a primeira é exercida por meio de representantes eleitos, a segunda consiste na estruturação de meios pelos quais os cidadãos contribuem de forma efetiva na tomada de decisão, no controle crítico e na produção de inputs [4].

Trata-se de uma contribuição real da construção das políticas, propostas e projetos [5], devendo ser exercida nos três poderes. Nesse contexto, a audiência pública destaca-se como um dos principais meios de efetivação desse processo de democracia administrativa [6].

Uma audiência pública pode ser definida como uma reunião organizada em que um grupo discute problemas e propostas, questionando ou apresentando sugestões, visando a efetivação da participação popular e em apoio ao interesse público. Apesar de não possuir uma natureza vinculante ou deliberativa, ela traz legitimidade e transparência ao processo, levando ao responsável diferentes posicionamentos [7].

Não basta a realização da audiência pública, mas também a garantia de uma efetiva participação, criando um ambiente saudável e acessível aos interessados. Para isso, alguns critérios precisam ser observados, como a disponibilização do escopo, infraestrutura adequada, capacidade institucional do órgão responsável de conduzir e gerir o processo, além de momento oportuno para a realização [8].

Apesar da CFRB 1988 possibilitar que o Congresso Nacional convoque audiências públicas (artigo 58, §2º, II), é no aparato infraconstitucional que o instrumento ganha maior destaque.

A Lei de Acesso à Informação prevê a audiência pública como forma de garantir a transparência dos dados públicos (artigo 9º), enquanto a Lei de Processo Administrativo Federal possibilita que o juízo de autoridade, em casos de relevância, convoque audiência pública (artigo 32). O Marco Legal do Saneamento Básico institui ainda mais importância, determinando-a como condição de validade de algumas situações (artigo 39). Já a Nova Lei de Licitações traz como inovação a previsão expressa de que realização na forma eletrônica (artigo 21).

Dentro do Direito Ambiental o princípio da participação popular ganha ainda maior relevância em decorrência do princípio 10 da ECO-92, que determina a oitiva e intervenção dos cidadãos na tomada de decisões que impactam os recursos naturais. É possível afirmar que grande parte das audiências públicas realizadas no Brasil são relativas à proteção do meio ambiente, notadamente nos processos de licenciamento ambiental.

A primeira previsão normativa decorreu da Resolução Conama 01/1986, que a tornou obrigatória para os casos de elaboração de EIA/Rima (artigo 11). Posteriormente a Resolução Conama 09/1987 regulamentou o procedimento, ampliando a sua exigência (artigo 1º). Com isso, diferentes entes federativos passaram a regulamentar a audiência pública com normas próprias.

Até a pandemia o paradigma originalmente instituído se manteve com poucas alterações, sendo a audiência pública realizada em formato presencial, com obrigação de disponibilização dos estudos de forma impressa, e, em regra, com possibilidade de intervenção apenas no momento da audiência ou por meio de envio prévio.

Audiências públicas virtuais e Covid-19

Considerando que a realização da audiência pública pode se configurar como elemento obrigatório do licenciamento, para não paralisar a análise desses projetos foi necessária uma adequação.

A Resolução Conama 494/2020 estabeleceu, em caráter excepcional, a realização de forma remota, com transmissão via internet. Destaca-se a previsão de disponibilização de pontos de acesso para os interessados (artigo 3º, inciso II), ou seja, um espaço físico com estrutura acessível para o acompanhamento.

No âmbito estadual, a Procuradoria Geral do Estado do Rio de Janeiro se manifestou em dois momentos pela possibilidade de realização da modalidade virtual “desde que não afete diretamente o interesse de populações tradicionais e sejam atendidos os requisitos de transparência e participação” [9], posicionamento administrativo semelhante ao apresentado pelo estado de São Paulo [10].

Naturalmente vieram questionamentos judiciais. No âmbito do STF, a questão foi debatida em processo que questionava a realização de audiência no Rio de Janeiro, que já havia instituído regulamento específico [11].

O voto do ministro Dias Toffoli registrou que impossibilitar a realização de qualquer audiência pública durante a pandemia traria graves lesões à ordem pública e administrativa, afirmando que não se discutia a importância do instrumento ou a necessidade de que este ocorresse com a participação de todos os interessados da forma mais ampla possível, ressaltando, porém, que “[…] não parece admissível, contudo, impedir o prosseguimento desse processo, presumindo-se que a realização dessa audiência pública, por meio virtual, de antemão, impedirá a efetiva participação dos interessados”. Segundo o voto, a audiência pública virtual precisa seguir todos os critérios e princípios da modalidade presencial, exigindo adequações. Contudo, isso não se confunde com uma simples proibição da sua realização.

Em 2022 o STJ reforçou os argumentos apresentados pelo STF [12], também sendo possível citar decisão do TRF-5 [13], além de julgamento no TJ-RJ, envolvendo audiência no âmbito de licitação de serviço de saneamento básico [14].

Tanto os precedentes administrativos com as decisões judiciais indicam que não há impedimentos legais para a realização de audiências públicas virtuais. Porém, a adequação quanto a sua compatibilidade com a efetiva participação popular decorre da forma de implementação e dos mecanismos instituídos para garantir o acesso.

Participação nas audiências públicas virtuais

Apesar das decisões judiciais mencionadas, é possível identificar críticas à realização das audiências públicas virtuais. Nesses casos, o principal argumento apresentado é no tocante à exclusão digital, que atinge justamente segmentos da sociedade já envolvidos em um histórico de segregação social [15].

Alguns dados ajudam a reforçar esse entendimento. Uma pesquisa identificou que 43% dos entrevistados com renda mensal de até um salário-mínimo não possuem acesso a computadores e internet. Na região sul do Brasil, cerca de 20% dos entrevistados afirmaram não possuir acesso à internet, sendo que metade destes informaram que não utilizam o sistema em decorrência do preço ou por conta do desconhecimento do sistema [16].

O desafio é propor meios em que os segmentos sociais segregados possam participar, contribuindo de forma efetiva com a tomada de decisão.

No cenário social atual, uma audiência pública transmitida totalmente pela internet e com mecanismos de intervenção exclusivamente on-line não parece compatível com todos os públicos afetados pela implantação dos projetos. A preocupação de que interessados deixem de participar em decorrência da falta de acesso ou desconhecimento da utilização da rede é real, e não pode ser ignorada.

A alternativa para superar essa primeira barreira já foi apresentada, sendo a instituição de espaços com transmissão simultânea da audiência. Acontece que não basta a transmissão, mas também a oportunização de que quem as acompanhe nesses espaços possa intervir, tanto por meio do envio de perguntas por escrito, como por meio da solicitação de fala. Isso exige, para além da estrutura, o acompanhamento de profissionais habilitados, que instruam os interessados.

Nos casos em que o empreendimento afete comunidades tradicionais, os cuidados devem ser ainda maiores, principalmente na indicação dos locais e no acompanhamento e habilitação dos profissionais, sendo recomentado a presença de representantes dos órgãos públicos responsáveis pela tutela dessas comunidades.

Sendo virtual, a audiência pode permanecer disponível para a comunidade por tempo indeterminado, sendo possível instituir cronogramas para que os interessados a acompanhem e enviem questionamentos e dúvidas posteriormente a sua realização. Para ampliar ainda mais o acesso, a manutenção pós audiência de espaços com transmissão permitiria um acompanhamento ainda maior.

Em relação ao meio de exibição, o ideal é que a audiência seja transmitia em formatos conhecidos do público em geral. Nada impede que se utilizem softwares e aplicativos específicos para gerenciar a execução dos trabalhos, mas permitir a visualização por meio de redes sociais ou sites de compartilhamento de vídeos, como o youtube, permitiria uma maior adesão.

O trabalho prévio de divulgação de informações é essencial para garantir a melhor compreensão dos interessados. Além da data, horário, escopo do projeto, localização das salas e links da transmissão, é crucial que esteja evidente o formato de participação, principalmente no tocante ao envio de comentários e perguntas, pois as plataformas de transmissão podem gerar confusões quanto ao mecanismo adequado.

Caso esses elementos sejam incorporados de forma efetiva, não nos parece que a audiência pública virtual irá enfraquecer o princípio da participação popular, permitindo, inclusive, um acréscimo em termos de acessibilidade.

A transmissão em diferentes meios trará como um dos benefícios a ampliação geográfica da participação, permitindo que interessados antes impossibilitados de acompanhar devido a questões de horário ou distância, enviem suas contribuições. De imediato se imagina uma maior intervenção de natureza técnica, principalmente de profissionais e grupos ligados a pesquisa, tanto no âmbito do mercado como do ambiente acadêmico.

Considerações finais

As restrições causadas pela Covid-19 forçaram a administração pública a instituir, temporariamente, um modelo diferente de audiência pública, introduzindo a modalidade virtual. Com o fim das restrições, parte dos estados mantiveram algumas das mudanças trazidas, tornando-se comum a realização de audiências híbridas, em que é facultada a participação presencial, mas também on-line.

Essa modalidade híbrida precisa servir de laboratório e instrumento de análise para que a Administração Pública estude, pesquise e incorpore elementos de eficiência em seus processos. O entendimento das demandas e das necessidades dos administrados, principalmente dos que se encontram em situação de segregação ou fragilidade social, permitirá que novos modelos de participação popular sejam implementados.

No tocante à audiência pública virtual exigida no licenciamento ambiental, não se vislumbra um impedimento da sua realização, porém, novos procedimentos e sistemáticas precisam ser incorporados. Com as evoluções apresentadas nos últimos anos, se espera um amadurecimento desse debate, permitindo um encaminhamento ainda mais rápido para a instituição de um governo digital, com a realização de audiências públicas híbridas como regra, na medida em que pode ampliar ainda mais a participação popular.

 


[1] DAUDT D’OLIVEIRA, Rafael Lima. A simplificação no direito administrativo e Ambiental. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2020.

[2] ARAGÃO, Alexandra. Desmaterialização: uma mudança de paradigma?. RevCEDOUA, nº 29, Almedina, Coimbra, 2012, p. 161-172.

[3] OTERO, Paulo. Manual de Direito Administrativo, vol. I. Coimbra: Almedina,2014, p. 487-488.

[4] CANOTILHO, J. J. G. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7ª ed. Coimbra: Almedina, 2003, p.288.

[5] DAUDT D’OLIVEIRA, Rafael Lima. A simplificação no direito administrativo e Ambiental. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2020, p. 61.

[6] OLIVEIRA, Gustavo Henrique Justino de. As audiências públicas e o processo administrativo brasileiro. Revista de Informação Legislativa. Brasília, a. 34 n. 135, jul./set. 1997, p. 271-281.

[7] SOARES, Evana. Audiência pública no processo administrativo. Revista De Direito Administrativo, 229, 2002, pp. 259–284. https://doi.org/10.12660/rda.v229.2002.46444. Acesso em 4 de maio de 2022.

[8] FONSECA, Igor Ferraz et al. Audiências públicas: fatores que influenciam seu potencial de efetividade no âmbito do Poder Executivo federal. In: Revista do Serviço Público Brasília 64 (1): 7-29 jan/mar 2013, p. 56.

[9] Parecer nº 11/2020 – LDQO – ASJUR/SEAS. Processo nº SEI-07/026/000609/2020, 08 de maio de 2020; e Parecer nº 08/2021 – LDQO – ASSJUR/SEAS. Processo SEI-070002/000173/2021, 02 de mar. de 2021.

[10] Parecer CJ/SIMA 158 de 2020, exarado no âmbito do Processo Administrativo SIMA.014048/2020-79

[11] STF. STP-MC 469. Relator: Ministro Presidente Dias Toffoli. Julgado em: 16/7/2020, DJe: 21/7/2020)

[12] STJ. SLS 3089, Relator: Ministro Presidente Humberto Martins. Julgado em 6/4/2022, DJe: 8/4/2022.

[13] Agravo de Instrumento nº: 0810752-84.2021.4.05.0000 – TRF-5 – Relator: Desembargador Federal Convocado Bruno Carrá. Julgado em: 14/9/2021, DJe: 15/9/2021

[14] Agravo de Instrumento nº 0041362-79.2020.8.19.0000 – TJRJ/9ª Câmara Cível- Rel.  Des(a). Daniela Brandão Ferreira – Julgamento: 27/07/2020

[15] VILELA, Ruan Didier Bruzaca Almeida et al. Audiências públicas virtuais, Plano Diretor e participação democrática na pandemia de covid-19: considerações a partir da atuação do Ministério Público no caso da Revisão do Plano Diretor de Natal/RN. In: Revista Brasileira de Direito Urbanístico – RBDU. Belo Horizonte, ano 7, n. 13, pp. 81-103, jul./dez. 2021.

[16] Ibidem

 

 

 

Autores

  • é doutorando em Direito Público, mestre em Direito Ambiental e Urbanístico pela Universidade de Coimbra (Portugal), especialista em Direito Ambiental, cacharel em direito pela PUC-Rio, professor de Direito Administrativo e Ambiental da Esap, ex-conselheiro do Conama e do Conema-RJ, ex-procurador-chefe do Instituto Estadual do Ambiente-RJ, procurador do estado do Rio de Janeiro, sócio do Departamento de Ambiental e Sustentabilidade do BCVL Advogados e autor do livro A Simplificação no Direito Administrativo e Ambiental.

  • é advogado associado no Sion Advogados, doutorando em Direito e Desenvolvimento pela FGV-SP, mestre em Direito Internacional e Sustentabilidade pela UFSC, especialista em Direitos e Negócios Imobiliários pelo Ibmec-SP e especialista em Direito Ambiental e Urbanístico pelo Ibmec-SP.

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