TST não legisla, mas cumpre e faz cumprir a Constituição
17 de junho de 2024, 13h20
Na sua coluna Senso Incomum, nesta ConJur, Lenio Streck publicou artigo [1] no qual afirma que o “TST legisla”. Segundo o articulista, o Tribunal Superior do Trabalho “mais uma vez decide contra a lei, substituindo-se ao legislador”, e que decide aleatoriamente, “mesmo sem fundamento”, apenas com base em seu “poder discricionário”.
Respeitosamente, não concordo. E demonstrarei.
Estrutura decisória da Justiça do Trabalho
Primeiro, cabe-nos destacar que o Tribunal Superior do Trabalho, em processos individuais, linhas gerais, tem duas instâncias decisórias: as suas Turmas, em número de oito, que julgam os recursos de revista, e a Subseção 1 Especializada em Dissídios Individuais (SDI-1), que julga os recursos de embargos (de divergência).
Com efeito, na forma do artigo 896 da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), cabe recurso de revista, a uma das Turmas do TST, de decisões proferidas em grau de recurso ordinário, em dissídio individual, por tribunal regional do trabalho (TRT), quando, entre outros, houver divergência entre a decisão recorrida e decisão de outro TRT ou da SDI do TST.
Por outro lado, na forma do artigo 894 da CLT, cabe recurso de embargos (de divergência) quando houver divergência entre a decisão recorrida, proferida por Turma do TST, em cotejo com decisão de outra Turma do próprio TST ou de decisão proferida por sua SDI.
Ou seja, ao fim e ao cabo, cabe à SDI-1 a missão de uniformizar a jurisprudência trabalhista nacional, em dissídios individuais, ressalvada a competência constitucional do Supremo Tribunal Federal (STF), na forma do artigo 102 da Constituição da República.
Inclusive, diferente do Superior Tribunal de Justiça (STJ) — o TST também tem competência para decidir em hipótese de afronta direta e literal à Constituição da República (a exemplo do artigo 896, alínea “c”, da CLT).
O caso concreto
O caso concreto, tratado por Lenio Luiz Streck em sua coluna, refere-se à decisão exarada no processo trabalhista nº 0001711-15.2017.5.06.0014.
Inicialmente, a 6ª Turma do TST havia decidido por anular os atos processuais desde a fase de instrução, salvo quanto às provas já produzidas nos autos, e determinar a reabertura da audiência, pelo Juízo de primeiro grau, para a colheita do depoimento pessoal da reclamante, nos termos seguintes [2]:
“(…) 2 – No tocante ao o indeferimento do depoimento pessoal do reclamante, cabe referir que a jurisprudência do TST tem se pronunciado no sentido de que a oitiva de depoimento pessoal das partes pode ser dispensada pelo magistrado quando, da análise das provas produzidas, observa-se a suficiência do conjunto probatório para a formação do convencimento a respeito das matérias postas à sua análise. 3 – Como consequência lógica, tem-se que, em situação inversa, em que subsiste controvérsia acerca de fatos relevantes, o indeferimento da oitiva de depoimento pessoal, mediante o qual se pode alcançar confissão ou esclarecimentos de fatos, caracteriza cerceamento de defesa. 4 – A colheita de depoimento pessoal não se revela, assim, faculdade de livre exercício pelo magistrado. De tal modo, sua dispensa, em especial quando requerido o ato pela parte, exige fundamentação jurídica pertinente. (…)”
O acórdão da SDI, que reformou a decisão acima, encontra-se até o presente momento pendente de publicação oficial, porém, nesta ConJur, encontramos luzes sobre o que foi decidido, nos seguintes termos [3]:
“O relator dos embargos, ministro Breno Medeiros, assinalou que, no Processo do Trabalho, a escuta pessoal das partes é uma faculdade do juiz, conforme o artigo 848 da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Trata-se, segundo ele, de prerrogativa exclusiva do magistrado, a quem a lei confere amplos poderes na direção do processo, autorizando-o a indeferir provas que considere inúteis para a solução da controvérsia.
Ele explicou ainda que o Código de Processo Civil (CPC), ao conferir a uma das partes a prerrogativa de requerer o depoimento de outra, disciplina uma questão já tratada na CLT e, portanto, não cabe sua aplicação no Processo do Trabalho. A decisão foi tomada por maioria, vencido o ministro Augusto César.”
Opção do legislador
Veja-se que, sem muito esforço, é possível desconstruir o primeiro argumento do ilustre colunista, de que o Tribunal Superior do Trabalho “mais uma vez decide contra a lei, substituindo-se ao legislador”.
Não se diga isso. Tragam-se outros argumentos/fundamentos, mas não este. Há sim lei em sentido estrito.
Em primeiro lugar, no processo judiciário do trabalho, há previsão expressa no artigo 848 da CLT:
“Terminada a defesa, seguir-se-á a instrução do processo, podendo o presidente, ex officio ou a requerimento de qualquer juiz temporário, interrogar os litigantes”. É sim uma faculdade da magistrada ou do magistrado. A previsão do CPC não existe no processo judiciário do trabalho. Simplesmente não há previsão similar ao artigo 385 do CPC, segundo o qual “Cabe à parte requerer o depoimento pessoal da outra parte, a fim de que esta seja interrogada na audiência de instrução e julgamento.”
Em segundo lugar, o próprio legislador definiu que o CPC não se aplica ao processo judiciário do trabalho, se caso de inexistência de omissão na lei trabalhista, segundo o artigo 769 da CLT: “Nos casos omissos, o direito processual comum será fonte subsidiária do direito processual do trabalho, exceto naquilo em que for incompatível com as normas deste Título”.

Em terceiro lugar — em similaridade com o CPC — o artigo 765 da CLT é expresso em prever que as juízas e os juízes do trabalho “terão ampla liberdade na direção do processo e velarão pelo andamento rápido das causas, podendo determinar qualquer diligência necessária ao esclarecimento delas”, em comunhão com o artigo 370 do CPC, que atribui à magistrada e ao magistrado determinar as provas necessárias ao julgamento do mérito, indeferindo-se, “em decisão fundamentada, as diligências inúteis ou meramente protelatórias”.
Portanto, não há nenhuma omissão legislativa, diante da previsão expressa na CLT.
Assim, tem-se prevalecida a vontade expressa do legislador, que, neste caso, manifestou-se expressamente: (1) em conferir rito próprio ao processo judiciário do trabalho; e (2) em afastar, em caso de inexistência de omissão na legislação trabalhista, a aplicação do CPC.
Portanto, por favor, não se diga que o TST está legislando.
Quando o ilustre colunista perquire “a pergunta que a doutrina deveria formular: de onde o TST concluiu que esse dispositivo é inaplicável ao direito do trabalho?” — e este é um dos problemas de se desprezar as características próprias do processo judiciário do trabalho —, falha o articulista em sequer tratar, no seu texto, da previsão legal expressa, como dito, nos artigos 769 e 848 da CLT.
Aliás, ironicamente, há previsão similar na literalidade do artigo 15 do próprio CPC: “Na ausência de normas que regulem processos eleitorais, trabalhistas ou administrativos, as disposições deste Código lhes serão aplicadas supletiva e subsidiariamente”.
Na ausência de norma… neste caso, inexiste ausência de norma.
Convencimento motivado X discricionariedade
Por outro lado, o TST é contundente em afastar oportunismos, vontades pessoais ou julgamentos aleatórios. Não se diga que se decide como se quer. Não existe “discricionariedade”.
Trata-se de solução da controvérsia caso a caso, como se exige em um Estado democrático de Direito.
O conjunto probatório produzido no processo é suficiente para a prolação da decisão? Subsiste controvérsia acerca de fatos relevantes?
Veja-se, em outra decisão da própria SDI-1, relatada pelo querido, saudoso e brilhante ministro João Oreste Dalazen, tomada há quase vinte anos, o TST igualmente registrou idêntico posicionamento — o que demonstra, inclusive, a estabilidade na sua jurisprudência, tanto exigida pelo ilustre colunista [4]:
“DEPOIMENTO PESSOAL. INDEFERIMENTO. CERCEAMENTO DE DEFESA. 1. Se há controvérsia acerca de fato relevante e controvertido da lide, configura cerceamento de defesa o indeferimento da tomada do depoimento pessoal da parte, uma vez que tal meio de prova constitui peça fundamental na instrução, na medida em que se busca a confissão do outro litigante, contribuindo, assim, para a apuração da verdade real e, em última análise, para a simplificação e celeridade do processo na medida em que fatos confessados prescindem da produção de outras provas (CPC, art. 400, inc. I). 2. A prerrogativa conferida ao Juiz de dispensar o depoimento da parte há de ser apenas nas situações em que não mais subsista controvérsia sobre os fatos, à luz dos limites balizados pela petição inicial e contestação, não advindo, assim, prejuízo algum ao litigante. 3. Viola, pois, o art. 896, da CLT, acórdão de Turma que não conhece de recurso de revista do Reclamado, fundado em ofensa ao art. 343, do CPC, ante o inegável cerceamento de defesa, em virtude do indeferimento sumário e injustificado do depoimento do Reclamante, com a consequente condenação ao pagamento de horas extras. 4. Embargos conhecidos e providos.”
Aliás, o querido, saudoso e brilhante ministro João Oreste Dalazen trouxe, em sua fundamentação, um clássico exemplo da aplicação prática do convencimento motivado constitucional, na aplicação, pela Justiça do Trabalho, do artigo 848 da CLT: “fatos confessados prescindem da produção de outras provas”. Se confessados os fatos (inclusive por meio da confissão ficta, que pode resultar do descumprimento normativo, a exemplo do artigo 74, § 2º, da CLT), não há porque a produção de depoimento pessoal para esclarecimento de fato factualmente, tecnicamente, juridicamente já provado.
A fundamentação está vinculada ao caso concreto. E o próprio TST exige fundamentação idônea, cumprindo e fazendo cumprir o artigo 93, inciso IX, da Constituição da República.
Valor da Justiça do Trabalho
A encerrar, vejo com pesar o injusto julgamento que tem rotineiramente sofrido, em tempos sombrios, a Justiça do Trabalho, o seu órgão máximo — TST — e suas juízas e juízes.
Em tempos de “uberização”, “pejotização” e em meio a um mar de “colaboradores”, a importância a ser dada à Justiça Constitucional do Trabalho deve ser urgente e imperiosa. Sob pena de voltarmos, guardadas as proporções, ao primeiro ciclo da Revolução Industrial.
______________________________
[1] STRECK, Lenio Luiz. TST legisla e TJ-SP explica prisão de 170 anos por livre convencimento. Revista Consultor Jurídico, São Paulo, SP, 23 maio 2024. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2024-mai-23/tst-legisla-e-tj-sp-explica-prisao-de-170-anos-por-livre-convencimento/. Acesso em: 14 jun. 2024.
[2] TST-RRAg-1711-15.2017.5.06.0014, 6ª Turma, Relatora Ministra Katia Magalhaes Arruda, DEJT 11/03/2022. (grifo nosso)
[3] CONJUR. Juiz pode dispensar depoimento de autor de ação trabalhista, decide TST. Revista Consultor Jurídico, São Paulo, SP, 23 maio 2024. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2024-mai-23/tst-legisla-e-tj-sp-explica-prisao-de-170-anos-por-livre-convencimento/. Acesso em: 14 jun. 2024. (grifo nosso)
[4] TST-E-RR-418634-90.1998.5.02.5555, Redator Ministro: João Oreste Dalazen, Data de Julgamento: 11/10/2004, Subseção I Especializada em Dissídios Individuais, Data de Publicação: DJ 10/12/2004. (grifo nosso)
Encontrou um erro? Avise nossa equipe!