Opinião

Solidariedade na ação de improbidade administrativa e seus desdobramentos

Autor

  • é promotor de Justiça e coordenador da área do Patrimônio Público e Terceiro Setor do CAO do Ministério Público do Estado de Goiás mestre em Direito e Políticas Públicas pela Universidade Federal de Goiás (UFG) e especialista em "O novo Código de Processo Civil em perspectiva e as tutelas coletivas" pela Fundação Escola Superior do Ministério Público do Rio Grande do Sul (FESMP/RS) e em "Ordem Jurídica e Ministério Público" pela Fundação Escola Superior do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (FESMPDFT).

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11 de junho de 2024, 9h22

No dia 22 de maio de 2024, a 1ª Seção do Superior Tribunal de Justiça apreciou o Tema 1.213, tendo fixado, de modo unânime, a seguinte tese:

“Para fins de indisponibilidade de bens, há solidariedade entre os corréus na ação de improbidade administrativa, de modo que a constrição deve recair sobre os bens de todos eles, sem divisão em quota parte, limitando-se o somatório da medida ao quantum determinado pelo juiz, sendo defeso que o bloqueio corresponda ao débito total em relação a cada um.”

Nos casos apreciados pelo Superior Tribunal de Justiça (REsps 1.955.440/DF, 1.955.300/DF, 1.955.957/MG e 1.955.116/AM, todos provenientes do TRF da 1ª Região), havia sido determinado pela corte de origem o bloqueio mediante divisão por igual entre os corréus e até o limite do suposto dano ao erário ou enriquecimento ilícito apurado. No caso analisado pelo ministro relator Herman Benjamin, o TRF-1 havia limitado a indisponibilidade a cada um dos oito réus à razão de 1/8 do valor total da indisponibilidade determinada.

Como se observa, porém, a tese fixada pela Corte Superior de Justiça apontou para a desnecessidade de divisão equitativa do ônus entre os corréus, permitindo, assim, que a constrição atinja até mesmo a totalidade dos bens de apenas um dos réus, sem divisão proporcional, pelo menos até a conclusão da instrução processual, quando ocorrerá a delimitação da quota de responsabilidade de cada agente no ressarcimento.

Esse entendimento, mesmo após o advento da Lei nº 14.230/21, já vinha sendo firmado pelo Superior Tribunal de Justiça (cf. AgInt no REsp nº 1.985.909/MG, relator ministro Francisco Falcão, 2ª Turma, julgado em 13/5/2024, DJe de 15/5/2024; REsp nº 1.919.700/BA, relatora ministra Assusete Magalhães, 2ª Turma, julgado em 9/11/2021, DJe de 16/11/2021).

Liberação do excedente

Em outro ponto, conforme entendimento também já sedimentado no Superior Tribunal de Justiça, verifica-se que a limitação disposta no artigo 16, §5º [1], da Lei nº 8.429/92, não deve ser observada de forma individual e pro rata, mas sim de forma coletiva, considerando o somatório dos valores indicados na petição inicial.

É dizer, uma vez definida a indisponibilidade, tem-se que, em um primeiro momento, será imposto como limite o quantum definido pelo juízo em relação a cada réu, ou seja, de forma individual. No entanto, após a efetivação da indisponibilidade de bens, caso seja verificado que os valores bloqueados de todos réus excedem o valor indicado na petição inicial, o juiz deverá proceder à liberação do excedente, quando deverá proceder de forma equitativa e proporcional. Portanto, a imposição do limite se dá de forma coletiva e não pro rata.

Essa compreensão restou bem esclarecida no Informativo de Jurisprudência do STJ nº 813, de 28 de maio de 2024: “efetivado o bloqueio de bens que garanta o quantum indicado na inicial ou outro estabelecido pelo juiz, devem ser liberados os valores bloqueados que sobejarem tal quantum. A restrição legal diz respeito apenas a que o somatório não ultrapasse o montante indicado na petição inicial ou outro valor definido pelo juiz”.

A título exemplificativo, imagine-se a hipótese em que, em um caso de dois agentes ímprobos, seja declarado indisponível o montante de R$ 1 milhão. Nesse caso, caberá ao juízo determinar o bloqueio do montante total (R$ 1 milhão e não R$ 500 mil) em relação a cada um dos imputados. Uma vez efetivado o bloqueio, caso apurado que a soma das indisponibilidades efetivadas excede o montante de R$ 1 milhão, deverá o juízo promover a liberação desse excedente de forma proporcional e equânime entre os corréus.

Solidariedade na recomposição do erário

Essa discussão estabelecida no Tema 1.213, do STJ, certamente permeia a análise da extensão da vedação estabelecida no artigo 17-C, §2º [2], da Lei de Improbidade Administrativa, que proíbe, em absoluto, a cogitação de qualquer solidariedade na sentença condenatória de improbidade administrativa quando existente litisconsórcio passivo [3].

A rigor, a norma disposta no artigo 17-C, §2º, da LIA, quando analisada sistematicamente, deve ser interpretada tão somente para alcançar as sanções dispostas no artigo 12, da LIA, de maneira que não se aplica à obrigação de ressarcimento ao erário, que não é sanção [4]. Decerto, o artigo 942 [5], do Código Civil, que disciplina a responsabilidade extracontratual, dispõe que, em caso de ofensa praticada por mais de um autor, a responsabilidade é solidária.

A propósito, cumpre destacar as precisas ponderações de Frederico Koehler e Silvano Flumignan feitas aqui na ConJur, confira-se:

“O regime sancionatório da LIA deve ser aplicado apenas para as sanções. O regime do ressarcimento do erário não é o da Lei 8.429/1992, mas o do Código Civil.

Caso essa conclusão não seja tomada, chegar-se-ia ao absurdo entendimento de que, ao se buscar o ressarcimento por ação própria de indenização, haveria solidariedade por força do artigo 942 do CC, e, ao se buscar o mesmo ressarcimento em ação de improbidade, haveria impossibilidade de decretação da solidariedade. Tal conclusão seria inadequada e levaria a uma inversão de valores, em que o direito processual determinaria o regime de direito material, o que não pode ser admitido” [6].

O regime solidário de recomposição do erário, com efeito, assegura o atendimento da consequência determinada no artigo 37, §4º, da Constituição, de modo que o seu afastamento é apto a encerrar enfraquecimento da tutela constitucional voltada ao enfrentamento à improbidade administrativa.

No mais, o regime da solidariedade não é incompatível com a definição de quotas de responsabilidade na sentença condenatória. A propósito, o professor Paulo Miranda assevera que:

“(…) embora o ressarcimento ao erário possua natureza civil, nada impede que o Juízo da ação de improbidade delimite a quota de responsabilidade de cada agente, caso tal circunstância seja materialmente possível através das provas produzidas nos autos. Isso não significa que é vedado o regime solidário de recomposição do patrimônio público, caso contrário se admitiria uma atenuação ou mitigação do integral ressarcimento ao erário que é uma imposição extraída da própria LIA e da Constituição Federal (artigo 37, §4º)” [7].

Amenização da solidariedade

Ocorre que nem sempre a solidariedade se afigura presente em matéria de responsabilidade quando identificada a existência de pluralidade de agentes.

Muito embora fixada a tese do Tema 1.213, do STJ, à unanimidade, o ministro Mauro Campbell, durante o julgamento, sustentou uma amenização da solidariedade definida, de modo a ser compatibilizada com as normas prescritas pelo artigo 16, §§5º e 12, da Lei nº 8.429/92. Ressaltou, na ocasião, que, sempre que possível a individualização da responsabilidade pelo dano, ainda que em cognição sumária caberá ao autor observar os limites dispostos pela legislação e formular o pedido de indisponibilidade mediante individualização dos danos, o que afastaria, em tese, a solidariedade apregoada.

Como se sabe, em matéria de responsabilidade civil, deve-se proceder à análise do nexo causal e não do elemento subjetivo (dolo/culpa). É dizer, a extensão da responsabilidade de um dado ofensor é definida de acordo com a causalidade imprimida por sua conduta (nexo causal) e não pela intensidade de sua culpa.

E, nesse esforço de definição da causalidade, tem-se que primeiramente pontuar que, em havendo convergência subjetiva e objetiva de dois agentes para a prática do ato que ensejou a ocorrência do dano, a configuração da solidariedade é manifesta por força do disposto no artigo 942, do Código Civil. Nesse sentido, em havendo a configuração de coautoria ou coparticipação na esfera de causalidade do dano, a obrigação será solidária entre os coautores e copartícipes.

Lado outro, se a convergência for meramente objetiva para a produção do dano, a consequência não transparece de forma evidente. A propósito, a professora Gisela Sampaio descreve com precisão o cenário ora enfrentado, senão vejamos:

“A análise do nexo causal não é tarefa fácil, porque, à semelhança do que ocorre no Direito Penal com a figura da coautoria, também no Direito Civil é possível observar que várias circunstâncias podem interferir, de diferentes formas, na produção do resultado danoso. Embora a hipótese mais corriqueira de aplicação do art. 942 do Código Civil seja a de coautoria, em que há convergência subjetiva e objetiva na produção do dano – ou seja, autor e coautor agem (ou se omitem), de forma coordenada, para a produção do dano –, há quem entenda que o suporte fático de incidência do referido dispositivo também abarca as situações de mera convergência objetiva, em que dois agentes não “combinaram” previamente a ação (ou a omissão), mas, apesar da falta de coordenação, a conduta de ambos leva à produção do mesmo resultado danoso” [8].

No universo do concurso de causas, em especial nos casos em que identificada tão apenas a convergência objetiva, é importante discriminar as situações que efetivamente atraem a regra da solidariedade disposta no artigo 942, do Código Civil.

No ponto, a professora Gisela Sampaio explica que, na hipótese de causas simultâneas impostas por diferentes agentes, tem-se que, a rigor, a ofensa é única e atrai inegavelmente a solidariedade prevista no artigo 942, do Código Civil. De outro lado, porém, a mesma regra não se estende à hipótese de causas sucessivas:

“Na ocorrência de causas sucessivas, de outro lado, é possível cogitar-se de danos autônomos ou de uma espécie de ‘causalidade parcial’ (propositalmente, entre aspas) em que cada uma das causas dá origem a uma parcela independente do dano que, justamente por ser formado por partes autônomas, será imputado a diferentes autores sem a regra da solidariedade. Neste caso, em que cada agente causa uma parcela individualizada do dano, ‘impor a solidariedade é agredir a regra da causalidade jurídica’. Cada agente deverá responder tão somente pelo dano que causou ou pela parcela do dano que causou” [9].

Desse modo, conquanto não seja hipótese corriqueira, é possível cogitar, estritamente no cenário de causas sucessivas (cumulativas ou complementares) com convergência exclusivamente objetiva, que seja estabelecida uma relação própria e parcial de cada causa com uma parcela autônoma e independente do dano. Mesmo porque nessa hipótese, a rigor, não há concurso de agentes ou simultaneidade nas causas.

Se presentes a convergência subjetiva ou mesmo o concurso de causas simultâneas, seria impossível que, em caráter sumário, fosse determinada a contribuição individual e parcial de cada agente (causa) para o dano total ocorrido. Daí que, nesses casos, a solidariedade se torna juridicamente configurada, consoante definido no Tema 1213, do STJ.

Situação hipotética

Reprodução

A título exemplificativo, a promotora de Justiça Fabiana Lemes Zamalloa [10] cogita da situação hipotética de verificação de esquema de rachadinha em diversos gabinetes em uma dada Câmara de Vereadores. Em casos tais, muito embora haja convergência objetiva no dano ao erário causado pela prática do esquema ilícito e presumindo a inexistência de convergência subjetiva, cada agente envolvido apenas responderá na extensão parcial do dano verificado em relação ao gabinete em que lotado [11]. Se um vereador A fez um esquema que custou R$ 50 mil aos cofres públicos, e um vereador B fez outro que custou R$ 100 mil, cada um responderá apenas pelo valor do seu próprio esquema.

No exemplo, não haverá que se cogitar, mesmo em fase de cognição sumária, de extensão da indisponibilidade dos bens de um dado agente imputado para além do dano parcial e referente exclusivamente ao gabinete em que labora. Em outras palavras, conforme referido no exemplo acima, não se pode bloquear R$ 150 mil (soma dos esquemas) dos bens do vereador A, já que só lhe é atribuível o desvio de R$ 50 mil.

Nesse cenário excepcional, não se estabelece, portanto, a solidariedade entre os agentes, de maneira que cabe à parte autora discriminar, desde a origem, a individualização dos danos em relação a cada agente imputado, conforme pontuado pelo Min. Mauro Campbell na apreciação do Tema 1.213, do STJ.

Nos demais casos, porém, e na extensão da pretensão de ressarcimento de danos, a regra da solidariedade deve prevalecer, seja no âmbito da indisponibilidade de bens, conforme estabelecido no Tema 1.213, do STJ, seja na extensão da sentença condenatória por improbidade administrativa.

 


[1] § 5º. Se houver mais de um réu na ação, a somatória dos valores declarados indisponíveis não poderá superar o montante indicado na petição inicial como dano ao erário ou como enriquecimento ilícito. (Incluído pela Lei nº 14.230, de 2021)

[2] §2º. Na hipótese de litisconsórcio passivo, a condenação ocorrerá no limite da participação e dos benefícios diretos, vedada qualquer solidariedade. (Incluído pela Lei nº 14.230, de 2021)

[3] Com efeito, a aparente inexistência de solidariedade na sentença poderia produzir repercussões, em especial no âmbito da indisponibilidade de bens. Isso porque, em havendo liberação no caso de excesso de bloqueio (artigo 16, §5º, da LIA), poderia ser cogitado eventual prejuízo ao resultado útil do processo, na medida em que o bloqueio mantido em relação a dado réu poderia ficar aquém da sua responsabilidade definida em sentença.

[4] Essa inferência pode ser abstraída do novo caput do artigo 12, da Lei nº 8.429/92, que discrimina e segrega a obrigação de ressarcimento ao erário das obrigações afetas ao regime sancionatório, já que aquela obrigação tem natureza reparatória e não sancionatória.

[5] Art. 942. Os bens do responsável pela ofensa ou violação do direito de outrem ficam sujeitos à reparação do dano causado; e, se a ofensa tiver mais de um autor, todos responderão solidariamente pela reparação.

[6] KOEHLER, Frederico; FLUMIGAN, Silvano. Indisponibilidade de bens e solidariedade: o Tema 1.213/STJ em relação ao ressarcimento. Revista Consultor Jurídico. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2024-jan-19/indisponibilidade-de-bens-e-solidariedade-o-tema-1-213-stj-em-relacao-ao-ressarcimento-ao-erario/. Acesso em 2 jun 2024.

[7] MIRANDA, PAULO. O §2º do artigo 17-C da Lei 8.429 e a obrigação de ressarcimento ao erário. Revista Consultor Jurídico. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2023-set-19/paulo-miranda-lei-8429-obrigacao-ressarcimento-erario/. Acesso em 3 jun 2024.

[8] GUEDES, Gisela Sampaio da Cruz. “Atrasos concorrentes e simultâneos” em construção: um problema puramente de causalidade. In: AGIRE | Direito Privado em Ação, n.º 38, 2022. Disponível em: <https://agiredireitoprivado.substack.com/publish/post/80227361>. Acesso em 04.06.24.

[9] Ibidem.

[10] O exemplo hipotético foi trazido em palestra proferida no Congresso Nacional de Enfrentamento à Improbidade Administrativa, promovido em parceria pelo Grupo Nacional do Patrimônio Público (GNPP) em parceria com a Escola Superior do Ministério Público do Estado de Goiás.

[11] A solidariedade só poderia ser cogitada em relação aos agentes públicos que trabalham no mesmo gabinete, entre vereador e servidores.

Autores

  • é mestre em Direito e Políticas Públicas pela Universidade Federal de Goiás (UFG), especialista em “O Novo Código de Processo Civil em Perspectiva e as Tutelas Coletivas” pela Fundação Escola Superior do Ministério Público do Rio Grande do Sul e em “Ordem Jurídica e Ministério Público” pela Fundação Escola Superior do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios, promotor de Justiça e coordenador da Área do Patrimônio Público e Terceiro Setor do CAO do Ministério Público do Estado de Goiás.

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