Território Aduaneiro

Por uma gestão de risco madura e integrada para o comércio exterior

Autores

  • é sócia do Veirano Advogados advogada aduaneira doutora em Direito do Comércio Internacional professora de pós-graduação e ex-conselheira titular no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf).

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  • é analista sênior de facilitação do comércio do Sindasp (Sindicato dos Despachantes Aduaneiros de São Paulo). Possui graduação em Gestão do Comércio Internacional pela Unicamp mestrado em Engenharia de Produção (Unicamp) e MBA em Ciência de Dados pela USP.

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11 de junho de 2024, 11h14

Foi recentemente publicado o relatório anual da OMA de 2023, que busca trazer o panorama das aduanas mundiais. Da análise de seu conteúdo, chamam a atenção os resultados da pesquisa que a Organização realiza para obtenção de estatísticas sobre o funcionamento e movimento das fronteiras.

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A informação, em si, não é nova, mas os números ainda assim chamam a atenção do leitor. De acordo com os dados apresentados, a aduana brasileira conta com 3.717 funcionários para todas as atividades que envolvem o controle e a fiscalização de seu comércio exterior, que em 2023 envolveu o registro de cerca de 5 milhões de declarações aduaneiras — considerando importação, exportação e trânsito. [1]

Se o confronto entre o tamanho da equipe e a quantidade de declarações registradas, por si só, já denuncia a existência de gargalos no tratamento do fluxo de comércio exterior brasileiro, ao comparar a realidade brasileira com a dos demais membros do G20, por exemplo, tem-se um quadro ainda mais discrepante.

Dentre as 20 maiores economias mundiais, apenas a África do Sul e o Reino Unido possuem menos funcionários ativos na aduana do que o Brasil.  Argentina e Coreia do Sul seguem a lista com pouco mais de 5.000 funcionários, ao passo que a maior parte desses países possuem equipes de 8.000 a 16 mil. Por fim, o topo da lista é ocupado por China e Estados Unidos, que contam com 69.725 e 63.938 funcionários aduaneiros, respectivamente.

Mas afinal, o que os números do relatório da OMA demonstram?

A primeira, e mais óbvia conclusão, é de que há uma clara necessidade de investimento no capital humano das fronteiras brasileiras. As principais aduanas do mundo, apesar de se encontrarem 100% informatizadas ou muito próximas disso, continuam a empregar uma quantidade de funcionários bastante superior à realidade nacional.

Ocorre que, no Brasil, o aumento do número de agentes aduaneiros depende de uma série de questões burocráticas — e orçamentárias — que não são facilmente encaradas e resolvidas, basta ver o longo tempo sem que houvesse um concurso público para analista e auditor fiscal da Receita e a quantidade de vagas abertas quando este finalmente ocorreu.

Assim, ainda que esta constatação seja necessária e valha aqui o registro, o fato é que a melhoria do desempenho da aduana no Brasil e os ganhos de eficiência não podem ser vinculados apenas ao desejo de aumento do quadro efetivo. Sendo, portanto, necessário que se avalie e invista em outras formas de aumento da capacidade e da qualidade do controle e da fiscalização aduaneira.

Se a situação da aduana enseja preocupações, a questão do quadro efetivo dos órgãos intervenientes do comércio exterior é ainda mais alarmante. Apesar de não termos números publicados, é de conhecimento público que a quantidade de agentes de órgãos que atuam no despacho aduaneiro, como Mapa, Anvisa e Exército, é insuficiente.

Como já denunciaram os relatórios do Time Release Study sobre os tempos de importação e exportação conduzidos pela Receita Federal, a atuação dos órgãos intervenientes é um dos maiores desafios à melhora dos tempos de despacho.

No caso da importação, por exemplo, verificou-se que o tempo médio de anuência de licenças de importação em canal verde representa mais de 35% do tempo total de despacho. Em termos de horas, a depender do canal de parametrização e do tipo de produto, as médias entre o registro da licença de importação e seu deferimento variaram entre 98,54 horas para o canal verde e 166,01 horas para o canal amarelo. [2]

No caso da exportação, a Receita concluiu que, apesar de 73% das operações não dependerem de licenças para embarque. No entanto, as operações que dependem da atuação dos órgãos intervenientes vêm sofrendo com significativo impacto negativo nos tempos de despacho.

Chama atenção os números e tempos do canal laranja, cuja parametrização é realizada pelos intervenientes em 99,5% dos casos marítimos analisados, em 84% dos casos rodoviários e 60% dos casos aéreos. Os tempos médios consumidos em cada um desses modais pelos órgãos intervenientes foram de 227,8 horas para o modal marítimo, 71h16 horas para o aéreo e 26,41 horas para o rodoviário. [3]

Em resumo, os números demonstram claramente que os atrasos causados pelas deficiências funcionais vêm impactando não apenas nos custos do comércio exterior brasileiro, mas trazendo séria perda de competitividade. Não obstante, os esforços existentes vêm se mostrando ineficientes para tratar de problemas relacionados ao comércio desleal — tema da nossa última coluna — na medida que faltam pessoas e recursos para o combate às práticas de contrafação, contrabando, descaminho, entre outras.

É neste cenário que se torna imperativo tratar sobre a gestão de riscos do comércio exterior e não apenas da gestão de cada órgão, mas de uma gestão verdadeiramente integrada.

Gestão de risco no Brasil

Conforme mencionado no início do artigo, a despeito da existência de sistemas e processos de gestão de risco consolidados no âmbito da Receita e das iniciativas recentes da Anvisa para lançamento de seu programa, ainda se verifica no Brasil diversas lacunas sobre o tema.

Ainda que já seja possível verificar pequenos ganhos de eficiência com os projetos e processos implementados, verifica-se que o país ainda está longe de atingir os padrões considerados satisfatórios pela OMA.

Segundo os relatórios técnicos publicados pela OMA, é necessário que a gestão de risco, muito além de ser uma prática difusa entre agentes, seja absorvida enquanto uma “cultura organizacional” [4]. Ou seja, tem-se como premissa a necessidade de abordagem da questão a partir de uma visão holística, de modo que a identificação, avaliação e gestão dos riscos sobre o universo do comércio exterior sejam vistas como um todo, composto pela soma de todos os riscos identificados e combatidos pelas autoridades envolvidas e pela interdependência dessas partes.

Trata-se, portanto, de uma política que não pode ser promovida no isolamento da repartição de poderes e competências. Pelo contrário, requer uma estrutura organizacional sólida e coordenada para capacitar agentes de todos os níveis da Administração a tomarem decisões baseadas em riscos e alinhadas com diretrizes e políticas que reflitam os reais focos do Estado em termos de controle e fiscalização do comércio exterior.

Com vistas a auxiliar seus membros a atingirem a maturidade necessária em seus sistemas de gestão de risco aduaneiro, a OMA desenvolveu metodologia em que busca classificar as políticas existentes em cinco diferentes níveis, sendo o primeiro o mais inicial e rudimentar e o quinto o panorama considerado ideal, em que se observa a existência de sistema integrado e otimizado com constantes melhoramentos.

Este modelo de análise em níveis pauta-se na análise e implementação de sete atributos-chaves: (i) existência de marco legislativo; (ii) arranjos institucionais/organizacionais; (iii) implementação concreta de gestão de riscos; (iv) recursos humanos, treinamento e orçamento; (v) cooperação e intercâmbio de informações; (vi) suporte tecnológico; e (vii) existência de outros programas de apoio à gestão de riscos.

Considerando estes critérios e as definições sobre cada nível trazidos pelos documentos oficiais da OMA, é possível concluir que, embora a Receita pareça estar muito próxima do nível 3 e, portanto, na metade da escada, o Brasil, de forma geral, parece estar recém chegando ao nível 2 — cuja definição é apresentada abaixo:

“Nível 2 – A Administração tem consciência da importância da gestão de riscos e sabe quem são as partes interessadas e suas necessidades. Existe um mandato e um compromisso de alto nível com a gestão de riscos. O conceito e os benefícios são compreendidos nos níveis relevantes da Administração. As responsabilidades pelos riscos são definidas e uma infraestrutura organizacional inicial para gerenciamento de riscos está sendo desenvolvida. No entanto, a abordagem global à gestão do risco ainda se caracteriza por ser, em alguma medida, intuitiva.”

Essa conclusão se pauta na existência de marcos legais sobre a gestão de risco aduaneiro e suas diretrizes de forma clara e pública, na falta de políticas voltadas aos recursos humanos e treinamentos nesta esfera, da falta ou precariedade de suporte tecnológico para a maior parte das autoridades envolvidas e na completa ausência de políticas para coordenação e compartilhamento de informações e análises entre os órgãos envolvidos.

Um exemplo prático que pode ilustrar com clareza a situação brasileira é o Programa OEA. Em vigor desde 2017, existia expectativa que até o final de 2019 fosse possível garantir que metade das declarações de importação e exportação brasileiras fossem originárias de empresas habilitadas. No entanto, a realidade não poderia estar mais distante disso — em pleno 2024, tem-se apenas 760 operadores certificados, os quais respondem por menos de 30% do total de declarações de importação e exportação registradas. [5]

A razão principal razão por trás da baixa aderência ao programa, a despeito dos benefícios oferecidos e da efetiva promoção da cooperação entre Aduana e operadores, parece estar no fato de que o módulo OEA-Integrado, relativo à inclusão dos demais órgãos e autoridades intervenientes do comércio exterior como certificadores e, em contrapartida, oferecendo benefícios aos operadores que demonstrarem baixo risco e confiabilidade em suas atividades, nunca saiu verdadeiramente do papel.

No final do mês de maio, anunciou-se o início do OEA-Integrado Anvisa, que foi aguardado pelo mercado com grande expectativa e que poderia representar um ponto de virada nesta história. Todavia, os rigorosos e onerosos critérios impostos, por si só, já anunciam que nada deve mudar. [6]

De acordo com dados levantados pela própria Anvisa, considerando o histórico atual, apenas 1,9% das empresas que atuam em processos de importação sujeitos à anuência do órgão seriam elegíveis para habilitação no OEA-Integrado. [7]

Ora, isso significa que apenas 1,9% do universo dos importadores sujeitos ao controle e à fiscalização da Anvisa são conformes? Dificilmente. A hipótese mais provável é que a autoridade, compelida a finalmente lançar o Programa e iniciar sua participação, buscou formas de restringir o acesso dos operadores à certificação e aos benefícios, permitindo com que a “antiga cultura organizacional” não precise ser abandonada.

É diante desse cenário que se faz necessário repisar a provocação que já lançamos em diversos momentos anteriores: o Portal Único de Comércio Exterior, apesar de muito necessário, não é a bala de prata que resolverá todo e qualquer problema relacionado à eficiência de gestão e controle do comércio exterior brasileiro.

O PUComex, ainda que seja uma ferramenta interessante e que tenha grande potencial para facilitar as operações e reduzir custos e tempo de despacho, sequer conseguirá atingir seu pleno potencial de funcionamento se as autoridades envolvidas não trabalharem para a criação e a implementação de um sistema de gestão de riscos aduaneiros integrado, automatizado e pautado em posturas colaborativas — situação crucial, mas que ainda é pouco debatida.

Em busca de uma gestão de risco integrada e madura

Do exposto, resta claro que objetivo das administrações aduaneiras deve ser a busca pela maturidade da gestão de risco, de modo a chegar o mais próximo do que seria o nível 5 — em que a gestão de riscos é parte integrante do trabalho diário e da cultura de todos os agentes envolvidos no comércio exterior e que os riscos, além de gerenciados e mitigados de forma contínua, são explorados como de criar e mapear oportunidades positivas.

Para que haja um efetivo desenvolvimento da gestão de risco enquanto uma política integrada de controle do comércio exterior, nos parece que o primeiro passo é a definição de diretrizes e prioridades gerais, compartilhadas pelas autoridades envolvidas.

Isso significa que, a despeito do grande foco na arrecadação — que ainda prevalece na gestão de riscos fomentada pela Receita — e da resistência à mudanças por parte dos demais órgãos envolvidos, faz-se necessário que o governo federal pense nos valores e prioridades que devem nortear a fiscalização e o controle de suas fronteiras.

Somente haverá espaço para discussão e amadurecimento de uma política de gestão de riscos integrada no Brasil quando os interesses “extrafiscais” e forem devidamente explorados, mapeados e efetivamente perseguidos e as “manias” de cada departamento forem abandonadas.

Outro ponto diz respeito à tecnologia. O que se verifica é que, apesar do Portal Único ser uma iniciativa que visa conectar todos os órgãos intervenientes, as iniciativas de integração e ajuste de sistemas é realizado de forma individualizada por cada autoridade e ministério.

Com efeito, tem-se a necessidade de comprometimento de diversos orçamentos e, principalmente, diferentes graus de evolução, a depender a expertise e do quão preparadas as equipes de TI de cada órgão está para tratar do tema.

A lição que fica é de que, na ausência de uma equipe robusta de agentes aduaneiros, como no caso de China e dos EUA, cabe ao Brasil otimizar os recursos que possui, sendo que o primeiro passo está no rompimento de sua cultura organizacional.

Já passou da hora de substituirmos a visão e atuação segmentada de que cada departamento e passarmos a encarar os órgãos intervenientes pelo que são: partes interdependentes de um todo, cujo objetivo comum é garantir que o comércio exterior brasileiro possa florescer, conjugando os interesses de controle e facilitação por meio de uma atuação orgânica, fluida e cooperativa.

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[1] WCO. Annual Report 2022-2023. Disponível em <https://www.wcoomd.org/-/media/wco/public/global/pdf/about-us/annual-reports/annual-report-2022_2023.pdf>. Acesso em 9 jun 2024.

[2] RFB. Time Release Study – Importação. 2020. Disponível em < https://www.gov.br/receitafederal/pt-br/assuntos/aduana-e-comercio-exterior/time-release-study-trs/trs-importacao> Acesso em 10 jun 2024.

[3] RFB. Time Release Study – Exportação. 2023. Disponível em < https://www.gov.br/receitafederal/pt-br/assuntos/aduana-e-comercio-exterior/time-release-study-trs/trs-exportacao>. Acesso em 10 jun 2024.

[4] WCO. Risk Management Compedium. Disponível em <https://www.wcoomd.org/-/media/wco/public/global/pdf/topics/enforcement-and-compliance/activities-and-programmes/risk-management-and-intelligence/risk-management-compendium-volume-1.pdf?db=web>. Acesso em 10 jun 2024.

[5] RFB. Portal do Operador Econômico Autorizado. Disponível em <https://www.gov.br/receitafederal/pt-br/assuntos/aduana-e-comercio-exterior/importacao-e-exportacao/oea/estatisticas-do-programa-oea >. Acesso em 10 jun 2024.

[6] Conforme disposto na RDC n. 845/2024, exige-se para fins de habilitação no OEA-Integrado ANVISA, além da necessidade de certificação simultânea no OEA-Segurança e no OEA-Conformidade, mesmo para empresas que só pretendem realizar atividades de exportação ou importação ao amparado da certificação, um histórico de processos de importação com percentual acima de 90% de deferimentos para os últimos 12 meses.

[7] ANVISA. Regulamentação do OEA-Integrado. Disponível em <https://www.gov.br/anvisa/pt-br/composicao/diretoria-colegiada/reunioes-da-diretoria/arquivos/apresentacoes-tecnicas/2024/apresentacao-gcpaf-programa-oea.pdf/@@download/file>. Acesso em 10 jun 2024.

Autores

  • é sócia do Veirano Advogados, doutora em Direito do Comércio Internacional, advogada e consultora especializada em Comércio Internacional e Direito Aduaneiro, professora de pós-graduação e ex-conselheira titular do Carf.

  • é analista sênior de facilitação do comércio do Sindasp (Sindicato dos Despachantes Aduaneiros de São Paulo). Possui graduação em Gestão do Comércio Internacional pela Unicamp, mestrado em Engenharia de Produção (Unicamp) e MBA em Ciência de Dados pela USP.

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