Fábrica de Leis

Limites e possibilidades da participação de cidadãos em processos regulatórios

Autor

  • é professora do programa de pós-graduação (mestrado e doutorado) em Direito da Regulação e do curso de graduação em Direito da FGV Direito Rio doutora e mestre em Direito pela USP e master of laws (LL.M.) pela Yale Law School.

    Ver todos os posts

11 de junho de 2024, 10h17

Em trabalhos recentes, tenho feito recomendações para aprimorar a efetividade da participação em processos regulatórios. Minhas propostas partem de resultados de estudos empíricos que tenho desenvolvido no projeto Regulação em Números, envolvendo consultas e audiências públicas em agências reguladoras federais.

Spacca

A importância de se aprimorar os mecanismos de participação utilizados na construção de políticas regulatórias extrapola, no entanto, o universo das agências reguladoras federais listadas na Lei nº 13.848/19, também conhecida como Lei Geral das Agências (LGA).

A partir deste mês de junho, por força do Decreto nº 11.243/2022, que estabelece condições para implementar a agenda de melhoria regulatória nos termos do Protocolo ao Acordo de Comércio e Cooperação Econômica entre Brasil e Estados Unidos, todos os órgãos da administração pública federal deverão somar-se ao conjunto de agências reguladoras independentes na realização de consultas públicas para editar normas regulatórias.

Por força dessa exigência, o uso de mecanismos de participação pelos diferentes órgãos da Administração Pública Federal tenderá a crescer abruptamente, sendo que precisamos nos preparar para esta nova realidade.

Engajamento de cidadãos

Uma das recomendações que tenho feito para aprimorar a participação em processos regulatórios consiste em criar oportunidades efetivas para que cidadãos diretamente afetados pela regulação não só participem dos processos regulatórios, mas que o façam de maneira efetiva.

A participação de cidadãos e consumidores em processos regulatórios é notoriamente baixa por vários fatores. Certos grupos não participam porque não percebem que determinada proposta de norma regulatória lhes afeta. Este problema, que para Cynthia Farina e coautores seria de caráter motivacional, poderia ser mitigado com uma maior pró-atividade dos órgãos reguladores em definir estratégias de comunicação com grupos afetados pela regulação e, a partir disso, promover ações de engajamento, estimulando-os a participar.

Barreiras à participação

Mesmo cientes de que as normas possam lhes afetar diretamente, cidadãos podem, ainda assim, não compreender textos altamente técnicos e especializados. Esse obstáculo poderia ser mitigado com um esforço dos órgãos reguladores para traduzir textos de alta complexidade, que utilizam jargões jurídico, econômico, científico e técnico em linguagem mais acessível.

Agências sabem fazer isso e o fazem, na prática, quando lhes é conveniente. Rachel Potter revela que as agências reguladoras tornam a linguagem da proposta de ato normativo, bem como dos documentos a ele atrelados, mais acessível ao público quando almejam maior participação nos processos regulatórios.

Ainda que cidadãos estejam cientes de que determinada proposta normativa lhes afeta, e que consigam compreender seu conteúdo, sua participação pode estar comprometida por sua falta de habilidade para se comunicar com o regulador. Para participar efetivamente, não basta que o cidadão compreenda determinado assunto regulatório: ele deve dispor também de habilidades para apresentar seus comentários em formato que o órgão regulador julgue digno de apreciação.

Para que o comentário de um cidadão seja efetivamente considerado, ele não pode restringir-se a explicitar seu conjunto de preferências. Ele deve, antes de tudo, estar atrelado a fatos e razões. Do contrário, seus comentários não serão levados em consideração pelo regulador.

Baixa qualidade da participação

Isso explica a baixa efetividade da participação volumosa de cidadãos em processos regulatórios de temas altamente salientes. Nesses processos, é comum cidadãos manifestarem se estão ou não de acordo com o texto da proposta normativa, sem conectar suas experiências a fatos e evidências e sem apresentar argumentos de caráter técnico.

Na discussão de normas homologatórias de revisão tarifária de serviços de energia, centenas ou milhares de cidadãos manifestam que não terão condições de suportar aumento do custo da luz em suas vidas. Em normas que autorizam ou proíbem o uso de certos inseticidas ou agrotóxicos, milhares de consumidores de alimentos costumam clamar por mais saúde, ao mesmo tempo em que centenas de agricultores clamam pela sobrevivência de suas lavouras.

Esses comentários têm em comum o fato de que se traduzem em concordâncias ou discordâncias a determinadas propostas normativas, sem, no entanto, apresentar razões jurídicas, econômicas, científicas ou técnicas.

Baixa responsividade dos órgãos reguladores

Nos Estados Unidos, estudos empíricos revelam que as agências são menos responsivas à participação de cidadãos estimulada por campanhas de entidades representativas de grupos de interesse. Esses comentários de massa tendem a expressar preferências de forma desarticulada de razões jurídicas, econômicas, científicas ou técnicas.

No Brasil, estudo de caso desenvolvido por Flávio Saab sobre o processo de banimento do agrotóxico carbofurano pela Anvisa, apresenta conclusão semelhante. O estudo de Baird e Fernandes, sobre mecanismos de participação da Anac, revelou que comentários de caráter “técnico” importam mais, para influenciar o processo regulatório, do que a caracterização do grupo de interesse do participante.

Já o trabalho de Lucas Thevenard identificou que a Anatel tende a ser mais responsiva a comentários cuja estrutura linguística e semântica assemelha-se à linguagem utilizada pela agência.

Tentativas de solucionar o problema

Cynthia Farina, professora estadunidense da Faculdade de Direito de Cornell, é uma das idealizadoras do projeto Regulation Room, que durante alguns anos desenvolveu projeto piloto, com apoio do governo Obama, para incentivar, informar e instruir cidadãos para participar do processo de construção de certas normas regulatórias.

ConJur

Parte fundamental do processo de instrução do projeto de Farina consistia em treinar cidadãos a comunicar-se pela “língua da participação”. Esse projeto tinha a explícita intenção de democratizar o processo regulatório, já que apenas grupos de interesse altamente organizados, normalmente pertencentes a certos grupos econômicos regulados pelas agências reguladoras, dispõe de condições de apresentar argumentos da forma esperada por elas.

O projeto teve resultados interessantes, porém revelou a necessidade de planejamento e vultosos investimentos de recursos para ensinar os grupos afetados a utilizar “a língua da participação”.

Limites da participação

Embora seja perfeitamente possível, apesar de custoso, engajar e treinar cidadãos para participar de forma efetiva, a participação leiga enfrenta mais alguns obstáculos.

O primeiro deles é jurídico. A consulta pública, prevista na LGA em seu artigo 9º, deve ser realizada para discutir minutas de atos normativos já elaborados pela agência. A consulta pública ocorre, portanto, em estágio avançado do processo regulatório, em que a agência já definiu a opção regulatória que pretende adotar e, portanto, não estará predisposta a mudar substancialmente de opinião.

Nesse caso, a agência só levará em consideração comentários que dialoguem com os termos jurídicos, econômicos, científicos e técnicos previstos em sua proposta normativa. Não há espaço, aqui, para discutir valores e preferências, já tomadas.

Nina Medelson argumenta que as agências deveriam prestar mais atenção aos comentários numerosos que ocasionalmente recebem em consultas públicas. Esses comentários são fonte de informação para as agências e deveriam, portanto, instruir efetivamente seu processo decisório.

Uma possibilidade seria canalizar a participação de cidadãos leigos para estágios mais iniciais do processo regulatório, quando essa participação é mais efetiva. Estudos desenvolvidos pelo projeto Regulação em Números revelam que isso ocorre em poucos casos. A realidade não é diferente nos Estados Unidos.

O momento em que a participação ocorre é ainda mais importante quando a regulação se utiliza de argumentos científicos robustos, como ocorre, por exemplo, em normas regulatórias que oferecem tratamento para riscos ambientais e de saúde.

Péricles Gonçalves, em artigo recente, alertou para o fato de que o novo marco legal de produtos agrotóxicos erroneamente excluiu a participação social da fase de avaliação de riscos, que estaria restrita a experts, deixando-a apenas para a fase de gestão de risco.

Concordo integralmente com o autor que se trata de um grande equívoco, pois é justamente na fase de avaliação de risco que os cidadãos têm mais a contribuir. Suas vivências e experiências têm muito a dizer sobre “o que é” e “o que deveria ser considerado” risco. Uma vez que essa decisão já foi tomada, cidadãos terão pouco ou nada a contribuir com as escolhas regulatórias, já que, pelos motivos expostos, não serão ouvidos.

Autores

  • é professora do programa de pós-graduação (mestrado e doutorado) em Direito da Regulação e do curso de graduação em Direito da FGV Direito Rio, doutora e mestre em Direito pela USP e Master of Laws (LL.M.) pela Yale Law School. Coordenadora científica do projeto Regulação em Números da FGV Direito Rio.

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!