Opinião

Corte IDH: proteção ao denunciante de boa-fé no combate à corrupção

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  • é advogada do escritório Naves Fleury mestra em Famílias Políticas Públicas e Desenvolvimento Humano e Social pela Universidade Federal de Viçosa (UFV).

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8 de junho de 2024, 7h01

A Corte Interamericana de Diretos Humanos fez no último mês de março o ato de notificação [1] da sentença do Caso Viteri Ungaretti e outros vs. Equador. No julgamento, que ocorreu em novembro de 2023, o tribunal considerou o Estado equatoriano responsável por diversas violações de direitos do senhor Julio Rogelio Viteri Ungaretti, membro das Forças Armadas que denunciou um suposto caso de corrupção, tendo sofrido por isso diversas represálias [2].

Família de Viteri Ungaretti

Viteri Ungaretti era membro da Marinha, atuando na Embaixada do Equador no Reino Unido na época dos fatos. Em julho de 2001, a vítima enviou ao almirante comandante geral da Marinha uma carta, juntamente com o contrato de leasing de um imóvel utilizado pelas Forças Armadas em Londres, relatando supostas irregularidades na contratação e sugerindo a não renovação.

Em razão dessa primeira denúncia, Ungaretti recebeu como sanção três dias de prisão, a serem cumpridas quando retornasse ao seu país, por ter feito “afirmações e julgamentos de valor que ‘ofendem e violam a disciplina militares’” [3].

Outra denúncia e represálias

Em novembro de 2021, Viteri apresentou ao embaixador do Equador no Reino Unido uma nova denúncia, agora envolvendo dois possíveis atos de corrupção: a renovação de um contrato de locação cujo preço seria demasiadamente alto; e irregularidades na contratação de seguros para aeronaves das Forças Armadas equatorianas.

Em razão da segunda denúncia, amplamente divulgada pela mídia do país, foi aberto um procedimento interno, que culminou na aplicação de penalidade de 15 dias de prisão para Viteri Ungaretti. Poucas semanas depois, ele também foi removido de seu posto em Londres. De volta ao Equador, foi orientado por seus superiores a “abster-se de fazer declarações ou publicações de imprensa sem a devida autorização” [4].

A sentença assinala que Unagretti e sua família foram alvos de diversos tipos de represálias, não devidamente investigadas pelo Estado, culminando em um pedido de asilo político da família em Londres. O então presidente do Equador declarou, à época, que “o capitão [Julio Rogelio Viteri Ungaretti] é maluco, ninguém está atrás dele, só ele é assombrado por fantasmas”, acrescentado que “ele não goza da confiança de [seu] governo” [5].

Diante dos fatos narrados e comprovados pelas vítimas, a Corte IDH considerou, por unanimidade de votos, o Estado equatoriano responsável por: violações aos direitos de liberdade de pensamento e de expressão, liberdade pessoal e direitos políticos de Ungaretti; de circulação e residência, à integridade pessoal e à proteção à família, bem como pela afetação ao projeto de vida e à proteção da infância, em relação aos membros da família.

Por cinco votos a dois, a corte considerou, ainda, que houve violação ao direito ao trabalho, nas dimensões do direito à estabilidade laboral e a permanecer no cargo em igualdade de condições, de  Viteri Ungaretti e da sua esposa, Ligia Rocío Alarcón Gallegos. Votaram contra este entendimento o juiz Humberto Antonio Sierra Porto (Colômbia) e a juíza Patricia Pérez Goldberg (Chile) [6].

Proteção dos whistleblowers

A decisão deste caso amplia consideravelmente os standards da jurisprudência interamericana para a proteção dos denunciantes de boa-fé, ou whistleblowers. Na sentença, a corte reafirma que a corrupção prejudica direitos humanos de todas as pessoas, mas que, especificamente a corrupção praticada por autoridades estatais ou prestadores de serviços públicos afeta de forma mais significativa os grupos vulneráveis [7].

Assim, conclui que denúncias de possíveis casos de corrupção revestem-se de interesse público, uma vez que há legítimo interesse da sociedade em tomar conhecimento desses fatos; e que, como tal, funcionários públicos têm o direito, enquanto liberdade de expressão e de pensamento, bem como o dever de denunciar. Para viabilizar as denúncias, “o Estado deve fornecer canais internos e externos adequados para facilitar e incentivar a denúncia de atos de corrupção e proteger os denunciantes”, garantindo a confidencialidade e a proteção de sua identidade [8].

Voto de Mudrovitsch

O juiz brasileiro e atual vice-presidente da Corte Interamericana, Rodrigo Mudrovitsch, apresentou individualmente seu voto convergente, corroborando o entendimento que prevaleceu na sentença, a qual, para  o magistrado, assentou “novos e importantes contornos do direito à liberdade de expressão”  [9].

O voto convergente inicia com um apanhado sobre a jurisprudência da Corte Interamericana em matéria de liberdade de expressão, para discorrer sobre como o entendimento evoluiu ao longo dos anos. Mudrovitsch lembra que o direito à liberdade de expressão, assegurado pela Convenção Americana, não é absoluto; a própria CADH estabelece a possibilidade de responsabilização posterior, em caso de exercício abusivo.

Nesse sentido, o voto convergente aponta como, no julgamento de casos anteriores, a Corte IDH demonstrou “preocupação em encontrar uma solução convencionalmente adequada para as inevitáveis ​​tensões que surgem da interação entre o exercício do direito à liberdade de expressão e o direito penal como mecanismo de proteção da honra” [10].

O magistrado recorda que, no Caso Álvarez Ramos Vs. Venezuela (2019), sobre um jornalista que havia sido condenado por ofensa à honra de um político venezuelano em razão de uma matéria em que se apontava supostas irregularidades na sua acusação,  a Corte entendeu que o artigo publicado atendia ao interesse público, sendo incompatível com a Convenção Americana a aplicação de sanção penal naquele caso. E conclui Mudrovitsch:

“Dessa forma, quando o substrato fático-probatório indica que se trata de manifestações no contexto de um debate sobre assuntos de interesse público, não há ponderação – a ser realizada pelo magistrado no caso concreto – entre a liberdade de expressão e a honra individual; a primeira prevalece antecipadamente, fechando a porta à sansão criminal. Do ponto de vista prático, é esta natureza rígida da presunção de prevalência da liberdade de expressão em casos de interesse público que garante, por exemplo, que o processo penal não possa sequer ser iniciado.”

O magistrado também cita no voto, dentre outros, o Caso Moya Chacón Vs. Costa Rica (2022), em que a corte alertou sobre o efeito inibidor (chilling effect) que a instauração de um processo penal exerce sobre os indivíduos, caracterizando, por si, mesmo sem que haja condenação, uma violação ao direito de liberdade de expressão.

Já quanto ao Caso Baraona Bray Vs. Chile (2022), ressalta o voto convergente que a corte estabeleceu que os indivíduos não podem ser submetidos a um processo penal por declarações relacionadas à atuação de funcionários públicos no exercício de suas funções, visto tratar-se de uma informação de interesse público — “salvo quando constituam uma imputação falsa de delito” [11]. A respeito, aduz o juiz brasileiro:

  1. Também é importante deixar claro, mais uma vez, que a solução de descriminalização adotada pela Corte Interamericana se limita, até o momento, a declarações insultuosas e difamatórias, deixando de fora as condutas caluniosas. A renúncia à proteção penal da honra dos agentes públicos não se refere à conduta criminosa que consista na falsa atribuição de ato criminoso a outrem – independentemente da nomenclatura adotada para se referir a tais tipos penais nos diferentes ordenamentos jurídicos que compõem o Sistema Interamericano. Obviamente, esta distinção requer especial cautela na definição do que se entende por calúnia ou falsa acusação de um crime, para que os esforços de contenção do sistema penal em termos de liberdade de expressão não sejam desperdiçados [12].

O voto convergente aborda, ainda, a relação entre o direito à liberdade de expressão e os denunciantes de boa-fé.

Rodrigo Mudrovitsch lembra que, no Caso Viteri Ungaretti, a vítima recebeu punições não em virtude do caráter potencialmente ofensivo ou difamatório das suas declarações; mas, sim, em razão de um suposto dever de confidencialidade e discrição que, segundo seus superiores, deveria ter obedecido enquanto membro das Forças Armadas equatorianas.

Sobre a figura do denunciante de boa-fé (que não se confunde, por exemplo, com a do delator), o voto esclarece:

“61. O conceito de ‘whistleblowing’ é definido por Nuno Brandão como ‘a atividade de alguém que aponta comportamentos ilegais ou irregulares ocorridos no âmbito de uma organização, pública ou privada, com a qual tenha ou tenha tido alguma ligação’. Alaor Leite introduz um elemento nesta definição, ao exigir que o denunciante, como pessoa de dentro, ‘não tenha participação direta nos acontecimentos’. É evidente que o fenômeno de ‘whistleblowing’, de origem norte-americana e atualmente objeto de discussão em todo o mundo, inclui denunciantes tanto de responsáveis ​​de empresas privadas como de instituições públicas” [13]. (grifo nosso)

Embora os atos de corrupção possam ocorrer tanto em organizações públicas quanto privadas, o magistrado aponta que, enquanto para funcionários do setor privado, em regra, têm apenas a prerrogativa de denunciá-los, para os funcionários públicos existe um verdadeiro dever de efetivar as denúncias. E, nesse contexto, surge a necessidade de criar mecanismos que protejam, de forma efetiva, os denunciantes contra represálias internas e externas.

No voto convergente, Mudrovitsch afirma que a proteção do denunciante de boa-fé foi desenvolvida especialmente pelo Tribunal Europeu de Direitos Humanos, que firmou os seguintes parâmetros: a) interesse público na revelação da informação; b) divulgação pelo canal adequado (princípio da subsidiariedade); c) autenticidade das informações; d) boa-fé [14]. Partindo dessas premissas, conclui que, no caso concreto ora analisado, Viteri Ungaretti teve violada pelo Estado a sua liberdade de expressão.

O magistrado finaliza apontando a importância das medidas de não repetição indicadas na sentença pela Corte, determinando a adequação do ordenamento jurídico do Equador à Convenção Americana e o “treinamento dos membros das Forças Armadas, incluindo autoridades encarregadas de aplicar sanções disciplinares, no que diz respeito à proteção de denunciantes que expõem atos de corrupção ou violações de direitos humanos ” [15].

Normas locais

O Brasil, signatário Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção [16] e da Convenção Interamericana contra a Corrupção [17], já possui legislações [18] que preveem mecanismos de proteção aos denunciantes de boa-fé. A Lei nº 13.608/2018, por exemplo, garante que “o informante terá direito à preservação de sua identidade”, assim como “proteção integral contra retaliações e isenção de responsabilização civil ou penal em relação ao relato, exceto se o informante tiver apresentado, de modo consciente, informações ou provas falsas”.

A princípio, portanto, o ordenamento nacional está em consonância com a Convenção Americana. Resta saber se, na prática, os mecanismos de denúncia têm sido implementados de modo a assegurar aos denunciantes de boa-fé a confidencialidade necessária, resguardando-os de represálias, notadamente em instituições com rígida hierarquia e controle interno, como as Forças Armadas — sob pena de graves casos de corrupção não virem à tona, não porque não existem, mas porque as pessoas que dele tomam conhecimento não se sentem seguras para denunciar. A proteção dos denunciantes de boa-fé, portanto, é de interesse de toda a sociedade brasileira.

 


[1] Acto de Notificación de Sentencia en el Caso Viteri Ungaretti y otros Vs. Ecuador. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=_CDHUP3hOZg . Acesso em: 20 abr. 2024.

[2] CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Viteri Ungaretti y Otros Vs. Ecuador. Sentencia de 27 de Noviembre de 2023 (Excepciones Preliminares, Fondo, Reparaciones y Costas). Disponível em: http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_510_esp.pdf. Acesso em: 20 abr. 2024. Tradução livre.

[3] SENTENCIA, p. 13.

[4] SENTENCIA, p. 15.

[5] SENTENCIA, p. 19.

[6] SENTENCIA, p. 69.

[7] RESUMEN OFICIAL EMITIDO POR LA CORTE INTERAMERICANA. Disponível em: http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/resumen_510_esp.pdf. Acesso em: 20 abr. 2024. Tradução livre.

[8] Idem, p. 04.

[9] VOTO CONCURRENTE DEL JUEZ RODRIGO MUDROVITSCH. CASO VITERI UNGARETTI Y OTROS VS. ECUADOR. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/votos/vsc_mudrovitsch_510_esp.docx. Acesso em: 20 abr. 2024. Tradução livre. P. 01.

[10] Idem, p. 02.

[11] Idem, p. 10.

[12] Idem, p. 16.

[13] Idem, p. 17.

[14] Idem, p. 18-19.

[15] SENTENCIA, p. 70.

[16] Aprovada no Brasil pelo  Decreto Legislativo nº 348/2005 e promulgada por meio do Decreto nº 5.687/2006.

[17] Aprovada no Brasil pelo Decreto Legislativo n° 152/2002 e promulgada pelo Decreto n° 4.410/2002.

[18] LEI Nº 13.608, DE 10 DE JANEIRO DE 2018: Dispõe sobre o serviço telefônico de recebimento de denúncias e sobre recompensa por informações que auxiliem nas investigações policiais; e altera o art. 4º da Lei nº 10.201, de 14 de fevereiro de 2001, para prover recursos do Fundo Nacional de Segurança Pública para esses fins. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/lei/l13608.htm . Acesso em: 21 abr. 2024.

No âmbito da Administração Pública Federal, destacamos o Decreto nº 10.153/2019, com alterações pelo Decreto 10.890/2021.

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  • é advogada do escritório Naves Fleury, mestra em Famílias, Políticas Públicas e Desenvolvimento Humano e Social pela Universidade Federal de Viçosa (UFV).

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