Poder público deve auxiliar abrigos de animais com verbas e pessoal
5 de junho de 2024, 17h20
1. Obrigação do poder público de garantir o meio ambiente ecologicamente equilibrado
Quando tratamos do bem-estar dos animais estamos diante de uma causa de natureza ambiental. Isso porque a vedação à crueldade contra os animais está inserida na nossa Constituição, no artigo referente ao meio ambiente, mais especificamente no artigo 225, § 1º, inciso VII, parte final. E, assim, por opção do legislador constituinte, os maus tratos a animais também causam desequilíbrio ao meio ambiente, independentemente da função ecológica dos animais vitimados (STF – ADI 4.983, voto-vista ministro Luis Roberto Barroso) [1], devendo as situações de maus-tratos a animais em território nacional serem corrigidas pelos meios legais pertinentes, haja vista ser direito de todos o meio ambiente ecologicamente equilibrado e dever do poder público assegurar a efetividade desse direito.

Conforme o já mencionado dispositivo constitucional, o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado é difuso, de interesse de todos, de natureza indivisível. E dentre as causas de desequilíbrio ambiental estão os atos de crueldade contra animais, por opção do legislador constituinte, e também está instituído, no § 1º, daquele dispositivo, que para assegurar a efetividade desse direito incumbe ao poder público proteger a fauna de atos que submetam os animais a crueldade.
E na mesma fonte constitucional está definido que a competência administrativa para realizar essa proteção é comum entre a União, estados, Distrito Federal e municípios para proteger o meio ambiente e preservar a fauna (artigo 23, incisos VI e VII), sendo que tais atribuições foram regulamentadas pela Lei Complementar 140/2011, que, em seus artigos 7º, 8º e 9º, define as atribuições da União, estados e municípios, respectivamente, estabelecendo uma espécie de subordinação de tarefas, em que os Estados são obrigados a cumprir a política nacional de proteção ambiental e os municípios devem cumprir a ambas, o que se depreende do primeiro inciso de cada um desses dispositivos.
O problema relativo a animais domésticos abandonados nas ruas também é de saúde pública (CF, artigo 196), em razão da interação entre animais humanos e não-humanos que coabitam nosso planeta, sendo que cerca de 70% das epidemias que assolaram o mundo foram zoonoses [2], ou seja, doenças que foram transmitidas aos seres humanos pelos animais, em que o mais recente exemplo foi a crise da Covid-19.
Assim, cada estado e muitos municípios já dispõem de seus códigos de proteção ambiental e dos animais e todo esse conjunto legal e normativo deve concretizar o comando constitucional de vedação à crueldade contra os animais, por integrar o conceito de meio ambiente ecologicamente equilibrado e ser caso de saúde pública, ficando nestes termos definido o arcabouço legal e administrativo para concluir-se que a proteção dos animais é incumbência do Estado, devendo ser auxiliado pela sociedade.
2. Situação dos abrigos de animais no país
A situação dos abrigos de animais é crítica. Tais estabelecimentos vivem em condições precárias, com superlotação e falta de recursos, pois sobrevivem apenas de doações, sendo raríssimos os casos em que são destinadas verbas de origem pública, geralmente em cumprimento de sursis ou acordo de não persecução penal, o que é muito pouco, nem só pelo pequeno valor como também porque a grande maioria não é beneficiada, por se constituírem informalmente.

Mas esses protetores fazem um trabalho fantástico de resgate e atendimento veterinário dos animais resgatados, que são encontrados em situações miseráveis e indignas, famintos, doentes e com ferimentos que jamais ficariam sem tratamento nos seres humanos e, portanto, estão a merecer mais atenção do poder público e da sociedade.
Evidentemente, diante dessa situação, os abrigos muitas vezes não conseguem seguir as exigências administrativas para se estabelecerem, as quais, diga-se, não costumam ser exigidas dos criadores comerciais, sendo comuns canis e gatis ditos informais. Os abrigos também não conseguem ter uma equipe de médico veterinários, mas, com muito custo, têm conseguido alimentar e prestar assistência veterinária a cães e gatos que, se não fosse pelo trabalho voluntário dessas pessoas, estariam nas ruas morrendo indignamente e transmitindo doenças aos seres humanos e a outros animais.
Porém, o que tem acontecido, em alguns municípios, é o poder público, algumas vezes por motivações políticas, passar a exigir obras e contratação de equipe técnica pelos abrigos, a um custo inacessível para aquelas entidades. Isso para conceder alvará de funcionamento aos abrigos, sob pena de interdição, sem estabelecer um plano de destinação dos animais, o que configura opressão do poder público sobre a sociedade, abuso de poder e grave violação à Constituição. Constitui também crime de maus tratos previsto no artigo 32, § 1º-A, da Lei 9.605/98, cuja autoria será da pessoa que emanou a ordem, não estando o agente público acobertado pela proteção dada pelo artigo 37, § 6º, da Constituição, visto que esta restringe-se ao âmbito da responsabilidade civil.
Imagine-se a hipótese de interdição desses abrigos, muitos contando com centenas de animais, que seriam devolvidos às ruas, em evidente situação de maus tratos e causando um grave problema social em que o Estado seria o causador desse estado de coisas inconstitucional, inclusive em prejuízo da saúde pública, descumprindo mandamento constitucional e infringindo leis civis e criminais. A toda evidência não se pode aceitar essa conduta por parte do poder público, haja vista que os abrigos não exercem atividade comercial e, assim, não se lhes pode exigir alvará de funcionamento condicionado a obras e outras providências.
Com isso, deve o Estado suprir essas deficiências, destinando verbas, pessoal e materiais para os abrigos, cumprindo assim sua obrigação constitucional de forma a garantir o bem-estar dos animais, segundo protocolos internacionais internalizados no Brasil pelo Conselho Federal de Medicina Veterinária (Resolução 1236/2018), e cuidar da saúde da coletividade.
3. Origem dos abrigos: abandono de animais e falta de políticas públicas
Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), em 2013 havia no país cerca de 30 milhões de cães e gatos abandonados [3], dentre os quais atualmente cerca de 185 mil vivem em abrigos[4]. Esse número de animais em situação de rua seguramente é maior nos dias atuais, estando aqueles seres sujeitos a uma série de problemas como desnutrição, doenças, maus tratos e atropelamentos, além de serem um inconveniente para a saúde e segurança pública, pois podem transmitir zoonoses aos humanos e causar acidentes por mordeduras (ICAM, 2007).
Todos esses fatores aumentam a necessidade de resgate dos animais e, consequentemente, a superpopulação nos abrigos, evidenciando a necessidade de planejamento e execução de ações para manejo populacional desses animais não domiciliados, tendo como foco principal a educação em guarda responsável a fim de reduzir o abandono.
O combate ao abandono de animais de estimação, principal causa de animais em situação de rua, não se resume somente a políticas públicas de esterilização (Lei 13.426/2017), única forma de manejo permitida. É preciso haver um enfoque multidisciplinar, pois o abandono é crime e as autoridades devem apurar todos os casos e aplicar as punições cabíveis aos responsáveis. Além disso, nas esferas cível e administrativa, devem cobrar as despesas com resgate e tratamento do animal dos que os abandonaram e aplicar multas por meio dos seus órgãos ambientais locais.
Devem também estabelecer a obrigatoriedade de microchipagem de animais domésticos, promover a educação ambiental em todos os níveis e a conscientização pública para a preservação do meio ambiente (CF, artigo 225, § 1º, VI) e auxiliar os abrigos de animais e voluntários para que possam auxiliar o poder público nessa difícil tarefa.
4. Conclusão
Ao Estado cabe promover a defesa do meio ambiente e da saúde pública. Voluntários e abrigos de animais, por sua vez, exercem uma função pública, não podendo ser tratados como se exercessem atividade comercial, não sendo lícito exigir dos abrigos providências para conceder alvará de funcionamento, mas sim devem obrigatoriamente ser auxiliados pelo poder público para suprir eventuais deficiências, destinando verbas, pessoal e materiais para os abrigos, cumprindo assim o Estado sua obrigação constitucional.
Já em casos extremos, em que o abrigo tiver que ser interditado, como nos casos de incapacidade do seu gestor, o poder público tem a obrigação legal de apresentar um plano de manejo dos animais, com destinação específica e com garantia do bem estar daqueles seres vulneráveis.
[1] Cf. STF, Pleno, ADI 4983, Relator Min. MARCO AURÉLIO, julgado em 06/10/2016, publicado em 27/04/2017.
[2] Segundo a Organização Mundial de Saúde Animal (OMSA), 60% dos patógenos que causam doenças em humanos tiveram origem em animais; 75% das doenças infecciosas emergentes humanas tem origem animal e 80% dos patógenos com potencial para bioterrorismo são de origem animal. Nesse sentido, patógenos zoonóticos possuem papel importante no surgimento de novas epidemias e pandemias (fonte: Ministério da Saúde, link https://www.gov.br/saude/pt-br/assuntos/saude-de-a-a-z/u/uma-so-saude/doencas-zoonoticas#; acesso em 02-06-2024.
[3] Fonte: https://labnoticias.jor.br/2024/01/26/30-milhoes-de-animais-estao-nas-ruas-segundo-dados-da-organizacao-mundial-da-saude-oms/; acesso em 02-06-2024.
[4]Fonte: https://senadinhomacaiba.com.br/abandono-e-maus-tratos-a-animais-devem-superar-185-mil-casos-em-2024-no-pais; acesso em 02-06-2024.
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