Opinião

Desoneração da folha municipal em ano eleitoral é inconstitucional

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  • é professor de Direito Administrativo da Fipecafi e Direito Eleitoral na Unisa. Doutorando em Direito Financeiro pela USP (Universidade de São Paulo).

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5 de junho de 2024, 7h05

Muito se tem falado a respeito da desoneração da folha de pagamentos, Lei 14.784/2023. A medida é complexa e deve ser dividida entre aquilo que é mera prorrogação e aquilo que é novidade. Aborda-se aqui apenas a nova desoneração da folha dos municípios menores — artigo 4º da lei.

Spacca

De se alertar que se abordará tão somente o aspecto jurídico, pois não se nega que municípios são devedores de importantes serviços públicos na vida dos cidadãos que, por tanto, cobram seus Prefeitos em intensidade que amiúde esgarça as faculdades orçamentárias. Tudo sugere alguma reorganização de nosso pacto federativo, cujo melhor ensejo é a reforma tributária que consta dos escaninhos do Congresso.

O que se critica não é a conveniência de haver alguma revisão, mas tudo mais que ocorreu na lei mencionada: o tributo escolhido — a contribuição previdenciária; a iniciativa que a deflagrou — emenda parlamentar durante a tramitação de lei urgente, com expressiva majoração de impacto e renúncia de receitas; e o afogadilho que a caracterizou — para produção de efeitos em meio a pleito eleitoral da esfera governamental orçamentariamente favorecida.

Parece claro que o dispositivo não é sustentável, não cumpriu o processo legislativo adequado, favorece indevidamente quem tenta reeleição, não aponta despesas que suprimir ou receitas que acrescentar no dever de recompor o orçamento e, enfim, não é medida que assegure o bem-estar sustentado da população, salvo no breve fôlego de um orçamento, após o que seus reflexos se farão notar, de uma forma ou de outra, na vida dos munícipes que pretendia favorecer.

Interlocução orçamentária

Mais, representa um ruído alarmante no diálogo Presidência da República — Congresso. É do jogo político presidencialista que as despesas — e renúncia de receita nada mais é que gasto tributário, como sempre relembra o professor Heleno Torres — sejam propostas pelo Executivo e autorizadas pelo Parlamento.

O Legislativo mais reage àquelas propostas orçamentárias, conformando-as ao interesse público, do que as sugere. É a essência do que consta ao art. 61, §1º, II, “b” de nossa Constituição (“são de iniciativa privativa do presidente da República as leis que … disponham sobre … matéria tributária e orçamentária …”).

Se, ao contrário, o Congresso é quem invoca nova despesa pública, surpreendendo o Executivo, experimentamos parlamentarismo clandestino, limitado ao aspecto orçamentário, sem que se tome contas dos parlamentares, sem primeiro-ministro, sem dissolução de gabinete, sem recall, sem voto de desconfiança. Aí cobraríamos o presidente pela marcha da dívida, mas este, acanhado, encolheria ombros.

Por vezes o artigo 113 do ADCT (“a proposição legislativa que crie ou altere despesa obrigatória ou renúncia de receita deverá ser acompanhada da estimativa do seu impacto orçamentário e financeiro”) é apontado como empecilho jurídico mais adequado para a conclusão de que há vício em tais normas.

O dispositivo, que é resquício do “novo regime fiscal” (EC 96/2016), em verdade, nem precisaria estar escrito por ali, pois já consta da LRF (artigo 16), que é a norma de pormenores. Até se concebe a criação mediata e indireta de gasto público, tal como a introdução de política pública que, ao eleger fins, acaba incumbindo o Executivo da escolha de créditos a cancelar (ARE 878.911 Min. Rel. Gilmar Mendes d.j. 30.09.2016).

Nada obstante, é imprescindível contemplar a extensão financeira de cada ato político gerador de despesa pública. Se o impacto for excessivo, a medida não respeita o devido processo. Tal trava constitucional confere concretude ao antigo anseio de sustentabilidade orçamentária que, se desrespeitada, impõe à sociedade um conhecido padrão de soluços espasmódicos de crescimento econômico. Em cada crise, acumula-se mais endividamento público, sem identificação clara do que a sociedade financia.

Entrevero legislativo

De fato havia projeto de lei (PL 334/2023) em tramitação no Senado para prorrogação das desonerações originalmente introduzidas pela Lei 12.546/2011. Sua tramitação, como a de qualquer matéria sensível ao tempo, acaba expondo flanco para acréscimo de matéria não pretendida originalmente, que vai arrastada na urgência que anima a principal.

O mote era prorrogar, o que era urgente, pois o benefício findava em 31/12/2023 (artigos 7º e 8º da Lei 12.546/2011), mas a emenda substitutiva na Comissão de Assuntos Econômicos do Senado introduziu outra desoneração completamente nova, desta vez da folha dos municípios, de 20% para 8%.
Sucedeu o veto (mensagem 619/2023) que, no entanto, foi derrubado (veto 38/2023) resultando na publicação da Lei 14.784/2023 incluindo o seu artigo 4º.

O governo, percebendo a emergência orçamentária que surgia, ao apagar das luzes do exercício financeiro (28 de dezembro de 2023), revogou o dispositivo por medida provisória (MP 1.202/2023).
O Congresso, contrariado, chegou a cogitar devolver a medida provisória, mas houve acordo por meio do qual o executivo enviou nova Medida Provisória (MP 1.208/2024 27/2/2024) que modulou o rigor da MP anterior e “redesonerou” alguns setores, mantendo, entretanto, a folha municipal entre aqueles “onerados”.

Com o final da vigência da MP 1.202/2023, o Congresso decidiu, por meio de ato de seu presidente (decisão de 1.4.2024), prorrogá-la em certas partes. Quanto à folha municipal, ocorreu a “redesoneração “. Não é demais assinalar que a perda da vigência da medida provisória produz, de regra, efeitos retroativos (artigo. 62, §3º CF/88).

Entrevero judicial (artigo 113 ADCT)

Ruindo as perspectivas de acordo, o executivo recorreu ao Judiciário (ADI 7.633, 23/4/2024) que prontamente deferiu a cautelar (25/4/2024) e prontamente a referendou (7/5/2024 Min. Rel. Cristiano Zanin). Mas isso não pôs fim à balbúrdia, haja vista o advento de nova liminar, de 17/5/2024, agora modulando os efeitos daquela primeira cautelar (60 dias, franqueando o diálogo institucional).

O que se tem de mais claro é a inexistência de estudo de impacto orçamentário-financeiro (artigo 16 da LRF e artigo 113 ADCT), o que foi mesmo mencionado em razões de decidir no aresto do STF. Na dicção do parecer ao substitutivo aprovado na Comissão de Assuntos Econômicos do Senado (CAE), “não há impacto fiscal ao setor público, pois se trata de um aperfeiçoamento do pacto federativo — a União deixa de arrecadar a contribuição dos municípios, tendo efeito líquido neutro ao setor público”. O impacto orçamentário que a lei reclama, entretanto, é do próprio ente.

Ainda assim, mais adiante, o mesmo parecer anota que “em números, o governo federal deixaria de arrecadar R$ 9 bilhões anualmente”. Há dois pontos a considerar: i) as prefeituras são das maiores empregadoras brasileiras o que torna o impacto excepcionalmente relevante para a Previdência Social (que apresentou déficit de R$ 1 bilhão no exercício de 2023); ii) mesmo tal estimativa significa apenas parte do cômputo total ao longo do tempo, pois é de se cogitar que municípios com RPPS deficitários cogitem a conveniência de extinguirem seus regimes com paulatina transferência de passivos atuariais ao Instituto Nacional do Seguro em um cenário em que seus encargos previdenciários seriam imediatamente reduzidos.

Inconstitucionalidades outras

A inconstitucionalidade apontada, contudo, não é única que permanece.

Se lei ordinária (Lei 14.784/2023) deixa de observar requisitos financeiros dispostos em lei complementar (LRF), mais do que mera lei “ilegal”, é lei inconstitucional. Percebe-se que a desoneração, ao tempo que cria renúncia de receita, não identifica medidas compensatórias, malferindo o artigo 14 da LRF.

Ademais, o artigo 4º não parece interessado em enquadrar a diferenciação de alíquota previdenciária nas circunstâncias autorizadas para tanto (artigo 195, §9º CF/88), nem cuida de alteração de legislação tributária anteriormente disposta na Lei de Diretrizes Orçamentárias (artigo 165, §2º CF/88).
Há ainda a perturbação das eleições municipais, com possível violação do artigo 73, §10 da Lei 9.504/1997, embora tal investigação exigisse uma análise em maior pormenor (vide aqui).

A despeito de alguma justiça de motivos determinantes, pois “se trata de um aperfeiçoamento do pacto federativo” que visa “[reforçar] os caixas dos entes federados” (parecer CAE substitutivo), a desoneração da folha municipal assim processada não representa senão breve e precária camada de verniz na profundamente engelhada estrutura de nosso pacto federativo, sem o efeito corretivo sustentável e continuado que merece ter.

Sustentabilidade previdenciária

Apenas há alguns anos a sociedade suportou uma dura mas necessária redução de direitos sociais com a reforma da previdência (EC 103/2019). Tudo se fez em nome do equilíbrio orçamentário de longo prazo. É de se anotar que a reforma, que muitos acreditaram ainda ser insuficiente, então poupou os RPPSs de Estados e Municípios, de última hora excluídos de seus efeitos mais diretos.

A reforma, por impopular e traumática que foi, acabou por abrir importantes espaços orçamentários para custear um crescimento que era sonhado por muitos. Tais economias, custosamente construídas, esvanecem com surpreendente rapidez, e a razão para tanto remonta a uma trinca que tem persistido no processo orçamentário.

Felizmente, não se faz necessário reparo na Constituição, que já se encontra abastecida de mecanismos suficientes a coibir disparadas caóticas das despesas. O projeto vencedor das urnas ocupa o Poder Executivo para formular a proposta orçamentária que, depois de conformada e aprovada pelo Legislativo, volta ao Executivo para cumprimento, sendo mais tarde fiscalizada pelo Legislativo com auxílio dos Tribunais de Contas. É a receita que consta da Constituição.

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  • é professor de Direito Administrativo da Fipecafi e Direito Eleitoral na Unisa. Doutorando em Direito Financeiro pela USP (Universidade de São Paulo).

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