2050: uma odisseia aduaneira
4 de junho de 2024, 10h27
Em 1968, Stanley Kubrick e Arthur C. Clarke dirigiram 2001: Uma Odisseia no Espaço. O filme, marcante, tem, em sua cena inicial, a emblemática passagem de gorilas descobrindo uso para ossos como instrumento de sobrevivência e defesa, sob a trilha sonora de Also sprach Zarathustra, de Richard Strauss.

Cena do filme “2001 — Uma Odisseia no Espaço”, de Stanley Kubrick
Foi indicado a quatro Oscars tendo como enredo temas como a evolução humana, o existencialismo, a tecnologia, a inteligência artificial e a vida extraterreste. [1] Assim como ele, vários outros sucessos cinematográficos ambientam-se no futuro, levando o expectador a antevê-lo e refletir sobre como ele realmente será.
Não obstante as ficções, que se comprometem com o entretenimento, a futurologia é a atividade de prever o estado do mundo em algum ponto no futuro, extrapolando o presente a partir das suas tendências atuais. [2] Nesse sentido, a ONU estima que o mundo terá, em 2050, 2 bilhões a mais de habitantes, atingindo 9,7 bilhões de pessoas. [3] Em 2050, como serão o comércio internacional e como atuarão as aduanas ?
Para refletirmos sobre possíveis respostas, recordemos dos últimos 30 anos, desde o início da década de 1990. A população, segundo dados da própria ONU, era de 5,2 bilhões de habitantes, tendo atingido em 2020, 7,8 bilhões. Nesses 30 anos, talvez a maior mudança tenha se dado a partir dos avanços tecnológicos, responsáveis por profunda transformação nos hábitos da humanidade, em suas mais diversas áreas.
Desde sua vida pessoal, no mais íntimo, até as relações profissionais e produtivas, em todo o globo, foram substancialmente moldadas pela conectividade proporcionada pela internet e por equipamentos desenvolvidos para se usufruir dela, disponibilizados para uso na palma das mãos. Com tamanha conexão, os intercâmbios aumentaram progressivamente, assim como a logística global evoluiu para atender as demandas e movimentar produtos pelo globo.
Ampliaram-se os volumes do comércio mundial [4], as cadeias globais de valor, assim como se fortaleceu a globalização, notadamente nos primeiros anos desse período. Posteriormente, ameaças globais como o terrorismo, marcado pelo atentado às Torres Gêmeas, as crises econômicas e disputas políticas, reduziram o ritmo de integração global, conduzindo o comércio internacional para tendências que transitaram do multilateralismo, ao regionalismo e ao bilateralismo. [5] Ao final desse período, a Covid-19 marcou uma nova etapa, acelerando diversos processos e transformando a economia, a produção e a logística do planeta.
Últimos 30 anos
Perpassando de 1990 a 2020, as aduanas globais, naturalmente, viram-se compelidas a muitas mudanças. Com as ameaças à segurança, além das funções tradicionais, de controle da arrecadação de tributos, seu escopo se alargou com preponderância para o foco na segurança da sociedade, visando coibir o terrorismo, a lavagem de dinheiro, o tráfico de armas e de drogas. Somaram-se aos objetivos tradicionais, esses relacionados à segurança e, ainda, outros, como de proteção à economia nacional em face do comércio ilegítimo, marcado por contrafações, fraudes e produtos que ameaçam a saúde humana.
Em paradoxo ao aumento das funções de controle aduaneiro da aduana, aumentou também a necessidade de exercê-lo com máxima eficiência, agilidade e previsibilidade. A pressão pela implementação de medidas da agenda de facilitação comercial se robusteceu. A OMA respondeu a ela com dois instrumentos normativos relevantes: a Convenção de Quioto Revisada (CQR), em 1999, com entrada em vigor em 2006, e com o Safe Framework, em 2005 [6], estabelecendo a agenda da Aduana do Século 21 calcada em dois pilares na sua origem e ampliados para um terceiro, posteriormente, quais sejam: a Aduana em relação a outras Aduanas, às Empresas e a Outros Órgãos governamentais.
Nesse quadro, a OMC aprovou o Acordo sobre a Facilitação do Comércio (AFC), em dezembro de 2013. O AFC espelhou medidas de simplificação e harmonização de normas aduaneiras visando conjugar controle aduaneiro e facilitação comercial, promovendo práticas relevantes para entregar soluções às prementes questões de segurança e conformidade, intrínsecas às atividades aduaneiras globais.
No Brasil, nesse período, os avanços aduaneiros foram marcantes e merecem destaque por terem revolucionado o comércio exterior brasileiro. Nesse intervalo, passamos por três regulamentos aduaneiros (o então vigente RA/85, RA/02 e o vigente RA/09), grandes inovações normativas e procedimentais que nos aproximaram do arcabouço normativo mais moderno, com incremento no controle aduaneiro inteligente e eficiente do fluxo do comércio transfronteiriço.
Avançamos na dimensão normativa com a internalização tanto da CQR/OMA, quanto do AFC/OMC, assim como com a observância dos pilares do Marco Safe da OMA na estruturação de robusto e consolidado programa OEA. [7] Além disso, desenvolveu-se a gestão de risco aduaneiro eficiente, informatizada e com uso massivo da TI [8], o portal único, a prática de consultas públicas e prévias às publicações de novas normas e, principalmente, a aproximação com o Setor Privado, permitindo diálogo e relação de parceria com ganhos para todos.
Pois bem, dito isso, volvamos nosso olhar para o futuro; de agora a 2050, o que nos espera? O crescimento populacional e o contínuo desenvolvimento tecnológico serão marcantes e veremos grandes avanços no campo das ciências da vida, do bem-estar social, certamente, com inimagináveis inovações nos equipamentos eletroeletrônicos, nos transportes, na infraestrutura e construções, no entretenimento, provocando mudanças significativas em toda sociedade.
Sustentabilidade
Um foco unânime do futuro é a proteção ao meio ambiente e na sustentabilidade, conduzindo a avanços nos meios de produção de alimentos para atender ao expressivo aumento demográfico global. Nesse sentido, conceitos como de economia circular [9], indústria 4.0 [10], Internet das coisas, impressão 3D, inteligência artificial e robótica se farão ainda mais presentes no cotidiano.
Os contínuos fluxos e contrafluxos de abertura econômica e protecionismo que já vêm marcando as décadas, desde o final da Segunda Guerra mundial, tendem a se manter. Se o ser humano evoluir, como se espera, deve buscar mais diálogo e cooperação para enfrentar os grandes desafios globais que estão anunciados nos radares.

Indiscutível, no entanto, que o mundo está, e permanecerá em constante mudança, que vêm ocorrendo de forma muito acelerada, e que às aduanas, como meio de proteção das fronteiras, instrumento da atuação estatal na busca do bem estar social e realização dos valores constitucionais e legais a que servem [11], cabem, como palavra de ordem, adequarem–se, sendo ágeis e resilientes nessas modificações. As suas funções originais, já bastante ampliadas, tendem a ser ainda mais, como já tem ocorrido.
Novas demandas como de proteção ao meio ambiente, à fauna e à flora [12], de controle de entrada de produtos provenientes do e-commerce internacional [13], atenção com os produtos cuja origem seja de intervenientes que promovem trabalho escravo ou infantil [14], tornarão sua tarefa ainda mais desafiadora.
No que tange ao e-commerce internacional (B2C), nítida a ruptura desse modelo de negócios em relação ao modelo tradicional (B2B), em cuja cadeia eram encontrados exportadores, importadores, distribuidores, comerciantes e consumidores finais. No e-commerce tem-se o exportador e o importador, sendo que pouco, ou quase nada, a aduana conhece de ambos, com todos os riscos que isso revela e a necessidade de se adequar o modelo de controle aduaneiro a essa realidade. [15]
As preocupações globais atuais com o meio ambiente já promoveram normas, em relação às quais as aduanas têm que se adequar, como o Green Customs Action Plan da OMA [16] e as medidas adotadas pela União Europeia, com o seu plano CBAM (Carbon Border Adjustment Mechanism), que prevê controle das fontes produtivas em relação à emissão de carbono e a tributação na entrada dos produtos a partir de tais resultados, incluindo-se, com isso, mais um tema na pauta aduaneira.
Para projetar o futuro e se preparar para ele, a União Europeia elaborou o estudo: “The Future of Customs in the EU 2040” [17], no qual apresenta quatro possíveis cenários para sua realidade em 2040:
- Customs for Society: marcado por superação de crises sociais e climáticas, com retorno a elevada qualidade de vida; grandes avanços tecnológicos, com aproximação e maior harmonia entre as nações favorecendo e fortalecendo o multilateralismo;
- Protected Union: mundo conflituoso devido a mudanças climáticas e carência de recursos, com grandes investimentos em pesquisas e desenvolvimento conseguindo atingir bons resultados, em uma economia baseada em 4R: reduce, reuse, recycle, repair. As relevantes ameaças do crime organizado, espionagem e turbulências internacionais levam os cidadãos a estarem mais dispostos a aceitarem medidas de vigilância e segurança. As instituições internacionais estarão mais enfraquecidas do que atualmente;
- Customs under Strain: grande competição entre as nações mais poderosas espalham conflitos pelo mundo. Carência de recursos leva a economia da UE a encolher e ser mais circular. Desemprego e criminalidade crescentes. Instabilidade e pressão internas e externas são presentes, aumentando tensão entre os membros. Polarização entre protecionismo e cooperação. Corrida tecnológica entre as nações e abandono das instituições multilaterais;
- No-Stop-Shop : fustigada pelas mudanças climáticas, com a economia estagnada, a UE adota uma postura colaborativa no ambiente internacional. População envelheceu, sua influência global reduziu. Necessidade dos imigrantes para trabalho conduz ao desenvolvimento de planos ativos de integração. Taxação elevada por questões ambientais pressionam para a adoção de uma economia circular, com olhar atento para energia, consumo de recursos e desenvolvimento tecnológico. Cooperação internacional para salvar ecossistemas, garantir alimentos e gestão de imigração aumentam fortemente em todo o globo, que é relativamente amigável para o livre comércio.
Para cada um dos cenários, a pesquisa distingue seis áreas e como a aduana iria atuar em cada uma delas. As seis áreas são: Customs Policy and Governance, International Exchanges, Business Support, Data Management and IT, Customs Capacity, Operational Support. Frank Heijmann e John Peters, autores de Customs — Inside Anywhere, Insights Everywhere [18], apresentam no último capítulo do seu livro sua visão de futuro para as aduanas.
Analisam os resultados da pesquisa da Aduana da UE para 2040, destacando a necessidade da aduana ser capaz de se adaptar e repensar seu modelo de atuação, em bases estruturais e significativas para que possa cumprir sua missão nos cenários hodiernos e futuros. Para isso os autores preconizam uma abordagem diversa para as operações B2C e B2B, por serem modelos de operação e negócios distintos. Reforçam a ideia de que nas fronteiras as únicas atenções da aduana devem estar centradas em se confirmar que o que foi declarado é o que está sendo importado, e que esse produto não ameaça a saúde e a sociedade, de forma geral, em relação às questões de segurança.
Todas as outras questões, como de valoração aduaneira e arrecadação, origem, classificação tarifária, medidas de defesa comercial, em sua visão, deveriam ser analisadas em auditoria pós – despacho. Sugerem a criação de uma SLP (Single Liable Person), que seria uma pessoa situada no território da UE que seria responsável por todas as informações relacionadas ao produto que transita pela fronteira, bem como responderia pelas obrigações decorrentes da operação, com isso se evitaria a multiplicidades de atores prestando informações para a aduana e a fuga às responsabilidades quanto à mesma. Preconizam o amplo uso das informações disponíveis para a gestão de risco e a aplicação das tecnologias não-invasivas nas fronteiras.
Não obstante as medidas em si, o cenário futuro em que as aduanas terão um escopo ainda mais amplo e relevante para toda a sociedade, eis que portas de entrada e saída dos produtos nos países, sendo lhe confiada a fiscalização do cumprimento de medidas essenciais relativas ao meio ambiente e à sustentabilidade, parece certo. Adicionando perspectivas de pressões políticas, em razão de crises climáticas e riscos de escassez de recursos, acreditamos que as aduanas estarão no epicentro da concretização de objetivos superiores e presentes nos sistemas jurídicos.
A sua adaptação a todas essas mudanças, rápidas e profundas, em tantos aspectos essenciais, dentro do tempo adequado, é um grande desafio e ao mesmo tempo um nobre objetivo a ser alcançado. Quem viver, verá.
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[4] As importações no mundo, em 1990, eram de US$ 3.53 trilhões, atingindo US$ 25.75 trilhões em 2022. Dados do Banco Mundial, disponível em link, acesso em 31/05/24.
[5] Recomenda-se o artigo publicado na Coluna, por Rosaldo Trevisan e Diogo Fazolo, sobre a obra de Ricardo Xavier Barsaldúa, “Derecho de la Integración”: link
[6] “In June 2005 the WCO Council adopted the SAFE Framework of Standards to Secure and Facilitate Global Trade (SAFE Framework) that would act as a deterrent to international terrorism, to secure revenue collections and to promote trade facilitation worldwide.” Disponível em: link, acesso em: 31/05/24.
[7] LEONARDO, Fernando Pieri. Programa Brasileiro de Operador Econômico Autorizado e o desenvolvimento do Pilar Aduana – Empresa do Marco Safe da OMA. in TREVISAN, Rosaldo, coord. Temas Atuais de Direito Aduaneiro III. São Paulo: Aduaneiras, 2022, 1ª ed. p. 381-429
[8] Recomendamos a recém publicada obra da Diretora da ABEAD, Raquel Segalla Reis, “Gestão de Risco no Despacho Aduaneira de Importação – Inteligência Artificial como instrumento e agente de controle”, publicado pela Caput Libris Editora
[9] Disponível em link Acesso em 31/05/24
[10] Disponível em link Acesso em 31/05/24
[11] FLORIANO, Daniela e BATISTA JUNIOR, Onofre Alves. “Reflexões sobre autonomia do Direito Aduaneiro e seus princípios informadores”. In: BATISTA JUNIOR, Onofre Alves e SILVA, Paulo Roberto Coimbra. Direito Aduaneiro e Direito Tributário Aduaneiro. Belo Horizonte: Casa do Direito, 2022, p. 17-58
[12] Recomenda-se o artigo “Aduanas Verdes e ‘uma verdade incoveniente’”, publicado na Coluna por Rosaldo Trevisan e Dihego Antônio de Oliveira. link
[13] Sobre o tema, remetemos ao artigo: Cross-border, e-commerce, descaminho digital e o e-commerce. link
[14] Desastre em Bangladesh, em 2013, trouxe à tona o tema do trabalho escravo e infantil em fábricas de roupas, que são, depois de produzidas sob tais condições, comercializadas internacionalmente. Disponível em: link
[15] Sobre o tema:“Remessas, globalização democratizada e benefícios com a conformidade”. Disponível em: link
[16] WCO. Green Customs Action Plan. Disponível em: link. Acesso em: 01/06/24.
[17] Disponível em: link Acesso em 01/06/24.
[18] HEIJMANN, Frank, PETERS, John. Customs – Inside Anywhere, Insights Everywhere. Rotterdam: ed. Trichis Publishing BV, 2022, p. 333-375.
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