Opinião

Regulamentação da saúde e da segurança na luta

Autor

  • é advogado trabalhista e desportivo membro da Ordem do Mérito Judiciário do Trabalho do TST no Grau Oficial especialista em Direito Desportivo (Cers) pós-graduado em Direito Processual Civil (Unileya) mestrando em International Sports Law (Isde) diretor jurídico do CNB (Conselho Nacional de Boxe) diretor do Departamento Jurídico da CBKB (Confederação Brasileira de Kickboxing) diretor do Departamento Jurídico da Wako Panam (World Association of Kickboxing Comissions Región Panamericana) e da CBMMAD (Confederação Brasileira de MMA Desportivo) membro do núcleo de estudos O Trabalho além do Direito do Trabalho: Dimensões da Clandestinidade Jurídico-Laboral (NTADT) da Faculdade de Direito da USP auditor do TJDU-DF e membro da Comissão de Direito Desportivo da OAB-DF.

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2 de junho de 2024, 9h23

As normas regulamentadoras (NRs) são disposições complementares ao Capítulo V (Da segurança e da medicina do trabalho) do Título II da CLT, com redação dada pela Lei nº 6.514/1977, que estabelecem um feixe de obrigações técnicas aos empregadores e aos trabalhadores com vistas a garantir um trabalho seguro e sadio, prevenindo a ocorrência de doenças e acidentes relacionados ao trabalho. [1]

Bad intentionz

Atualmente, tais normas regulamentadoras são elaboradas e revisadas por meio de grupos e comissões compostas por representantes do governo, de empregadores e de trabalhadores, em um sistema tripartite paritário. As NRs corporificam um sistema regulatório direcionado à redução dos riscos inerentes ao trabalho a partir dos parâmetros fixados pela lei trabalhista, aberto, portanto, para integração por normas sanitárias e ambientais, todas exigíveis daqueles que têm o dever de manter o MAT (meio ambiente do trabalho) equilibrado. [2]

Considerando a ideia presente no Projeto de Lei nº 3559/2020 [3], que visa a garantir os princípios da segurança desportiva, impedindo que um atleta recentemente nocauteado possa competir sem liberação médica, existe a possibilidade de previsão, através deste PL, da edição de normas regulamentadoras que protejam a saúde dos atletas da luta, nos moldes do artigo 200 da CLT. [4]

A ideia seria que uma NR direcionada aos profissionais de luta teria o condão de implementar um MAT mais razoável aos lutadores, em que pesem os riscos inerentes à profissão, o que também é o caso de várias profissões que já possuem suas próprias NRs como tentativas de minoração de risco.

Encefalopatia traumática crônica e riscos da profissão de lutador

Sobre a questão dos riscos de lesões na luta, um dos problemas mais delicados é a da encefalopatia traumática crônica (ETC), doença degenerativa progressiva do cérebro que pode ocorrer após trauma craniano repetitivo.

Em um estudo intitulado Lack of Association of Informant-Reported Traumatic Brain Injury and Chronic Traumatic Encephalopathy (Falta de associação entre lesão cerebral traumática relatada por informantes e encefalopatia traumática crônica), os pesquisadores examinaram dados de 580 indivíduos falecidos que foram expostos a repetidos choques cerebrais causados pelo futebol.

A ETC foi encontrada em 405 desses indivíduos. Entre os participantes, 213 relataram pelo menos uma lesão cerebral traumática sem perda de consciência. Desses, 345 tinham pelo menos uma lesão cerebral com perda de consciência e, desses, 36 tinham pelo menos uma lesão cerebral moderada a grave. Ainda, 22 participantes não relataram nenhum traumatismo cranioencefálico anterior. [5]

O esporte de combate é um esporte perigoso. Uma em cada 5 mil lutas de boxe profissional termina em morte por trauma cerebral. [6]

No mês passado, o peso-pesado Ardi Ndembo morreu após sofrer uma derrota por nocaute em uma luta em 5 de abril de 2024, em Miami. Ele ficou inconsciente por vários minutos após sua derrota e foi colocado em um coma induzido. Ele permaneceu em coma até falecer. [7]

Em que pese ainda não se ter à disposição informações fidedignas sobre a questão da saúde do atleta, fato é que, havendo risco nesse tipo de profissão, o que ocorre também aqui em nosso País, o poder público deveria intervir para editar normas que garantam a segurança dos profissionais que se aventuram em tal labor, lembrando que muitos casos assim no Brasil sequer chegam a serem conhecidos pelo público.

Profissionalização do atleta da luta e regulamentação da saúde e segurança de seu MAT

Quanto à figura do lutador, se seria atleta profissional ou não para efeitos de regulamentação da profissão, convém ressaltar que a nova Lei Geral do Esporte já considera o atleta da luta como profissional, se não, vejamos:

LEI Nº 14.597, DE 14 DE JUNHO DE 2023

(…)

Subseção II

Dos Atletas

Art. 72. A profissão de atleta é reconhecida e regulada por esta Lei, sem prejuízo das disposições não colidentes contidas na legislação vigente, no respectivo contrato de trabalho ou em acordos ou convenções coletivas.

Parágrafo único. Considera-se atleta profissional o praticante de esporte de alto nível que se dedica à atividade esportiva de forma remunerada e permanente e que tem nessa atividade sua principal fonte de renda por meio do trabalho, independentemente da forma como recebe sua remuneração.

Dessarte, se o lutador compete em alto nível, de forma remunerada (seja por bolsa ou prêmio da competição etc.) e de maneira permanente, auferindo dessa atividade sua principal fonte de renda, estar-se-á diante da figura do atleta profissional. [8]

Como a evolução histórica das normas de saúde e trabalho tem sido influenciada por fatores como a conscientização sobre a saúde e a segurança em determinados ramos profissionais, é hora de se olhar com mais cuidado para a luta.

Nesse ínterim, a própria Organização Internacional do Trabalho já enxerga o atleta da luta como alguém cuja saúde deve ser observada:

Em alguns esportes, especialmente os individuais, os atletas são considerados “contratantes independentes”, recebendo remuneração pela participação em ligas e jogos, mas não necessariamente se qualificam para negociar coletivamente ou para receber benefícios como licença remunerada e proteção social. Esse é o caso dos atletas de vários torneios de golfe e dos lutadores do UFC e da World Wrestling Entertainment.

(…) É importante distinguir entre os impactos de curto e longo prazo das lesões. Enquanto algumas lesões menores podem deixar os atletas fora de ação por apenas algumas semanas, outras podem ter impactos para toda a vida ou até mesmo ser fatais. Talvez a conversa mais importante sobre esse assunto na última década tenha sido sobre os impactos das concussões em atletas de esportes de contato. [9]

A Constituição assegura a todos, em seu artigo 225, o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se, ao Poder Público e à coletividade, o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. O artigo 7.°, inciso XXII, por sua vez, garante a todos os trabalhadores urbanos e rurais o direito à redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança. [10]

Não se olvida que os atletas da luta não são considerados empregados [11] e que a NR 1, que estabelece as disposições gerais, o campo de aplicação, os termos e as definições comuns às NRs, limita seu alcance às relações de emprego. [12] Porém, é importante lembrar que a Convenção nº 190 da OIT, adotada em 21 de junho de 2019, ainda não ratificada pelo Brasil, prevê o conceito ampliativo de meio ambiente do trabalho, o considerando para todos os setores que utilizam trabalho humano e não apenas para as relações de emprego:

1. A presente Convenção protege os trabalhadores e outras pessoas no mundo do trabalho, incluindo os trabalhadores tal como definido pela legislação e prática nacional, bem como as pessoas que trabalham independentemente do seu estatuto contratual, as pessoas em formação, incluindo os estagiários e aprendizes, os trabalhadores cujo emprego foi rescindido, os voluntários, as pessoas à procura de emprego e os candidatos a emprego, e os indivíduos que exercem autoridade, deveres ou responsabilidades de um empregador.

2. A presente Convenção aplica-se a todos os sectores, sejam públicos ou privados, na economia formal e na informal, e em áreas urbanas ou rurais. [13]

Diante deste cenário, a ratificação da Convenção nº 190 da OIT e a edição de uma norma regulamentadora capaz de garantir a segurança dos atletas profissionais da luta seria uma medida necessária.

Considerações finais

Embora o esporte da luta seja perigoso, existem controles para evitar que lutadores compitam logo após serem nocauteados em outros países. Essa política precisa chegar ao Brasil.

Uma NR (aliada ao PL 3559/2020, a “Lei do Nocaute”, como falamos [14]) capaz de apontar quais os exames necessários para que se diga se determinado atleta está apto a competir e também que diga quais os procedimentos que cada contratante deve fazer para minorar os riscos, pode ser um marco para a saúde e segurança dos atletas da luta em nosso país, não deixando de ser uma opção também para os atletas das demais modalidades.

 


[1] ZIMMERMANN, Cirlene Luiza. A INSUFICIÊNCIA DAS NORMAS REGULAMENTADORAS PARA A EFETIVIDADE DA PREVENÇÃO DE ACIDENTES E ADOECIMENTOS RELACIONADOS AO TRABALHO. In: DELGADO, Maurício Godinho et al, (org.). Normas Regulamentadoras (NR) relativas à Segurança e Medicina do Trabalho: Percursos para a Efetividade do Trabalho Decente: Coleção estudos Enamat. Brasil: ENAMAT, fev 2023. v. 2, p. 99-122.

[2] Idem.

[3] BRASIL. Câmara dos Deputados. PL nº 3.559 de 2022. Altera a Lei nº 9.615, de 24 de março de 1998, que institui normas gerais sobre desporto e dá outras providências, para incluir medidas cautelares para preservar a saúde do atleta profissional de luta. Projeto de Lei. Brasília, DF, Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2256421. Acesso em 19 mai. 2024.

[4] COSTA, Elthon José Gusmão da. PL 3.559/20: Uma solução para a garantia da saúde de atletas da luta pós-nocaute. Migalhas, Brasil, 16 maio 2024. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/407420/pl-3-559-20-garantia-da-saude-de-atletas-da-luta-pos-nocaute. Acesso em: 19 maio 2024.

[5] MACGRAKEN, Erik. Study – CTE Linked With Repeated Brain Rattling, Not Individual Brain Injuries. Combat Sport Law, EUA, 18 abr. 2024. Disponível em: https://combatsportslaw.com/2024/04/18/study-cte-linked-with-repeated-brain-rattling-not-individual-brain-injuries/. Acesso em: 19 maio 2024.

[6] No estudo, intitulado “Mortality Resulting From Head Injury In Professional Boxing Revisited” (Mortalidade resultante de lesões na cabeça no boxe profissional revisitada), os médicos analisaram as mortalidades relatadas em todo o mundo por lesões na cabeça no boxe profissional de 2000 a 2019. Essas mortes foram retiradas da Coleção de Fatalidades de Boxe Manuel Velázquez. As entradas de qualificação foram verificadas usando o BoxRec. As fatalidades incluídas foram então analisadas com outras variáveis, incluindo idade, ano da morte, se a luta terminou em KO ou TKO, resultado da luta, número de rounds, classe de peso, local da luta e muito mais. Ver mais em: https://ringsidearp.org/wp-content/uploads/2021/10/ARP-Vol4-Iss1_Supplement.pdf.

[7] https://revistamonet.globo.com/esportes/noticia/2024/04/boxeador-de-27-anos-morre-apos-coma-causado-por-primeiro-nocaute-da-carreira-e-comocao-toma-conta-das-redes.ghtml.

[8] COSTA, Elthon José Gusmão da; COSTA, Maria Luisa Borba da. O Contrato Desportivo do Atleta de MMA à Luz do Direito Trabalhista Brasileiro. In: FELICIANO, Guilherme Guimarães et alDireito do Trabalho Desportivo: Panorama, Crítica e Porvir: estudos em homenagem aos ministros Pedro Paulo Teixeira Manus e Walmir Oliveira da Costa in memoriam. 1. ed. Campinas, SP: Lacier, 2024. p. 169-181.

[9] Decent work in the world of sport, Issues paper for discussion at the Global Dialogue Forum on Decent Work in the World of Sport. Geneva, 22 January 2020. International Labour Office, Sectoral Policies Department, Geneva, ILO, 2019. Disponível em: https://webapps.ilo.org/wcmsp5/groups/public/—ed_dialogue/—sector/documents/meetingdocument/wcms_728119.pdf. Acesso em: 2 mai. 2024.

[10] ZIMMERMANN, Op. cit., P. 101.

[11] O atleta de MMA não é reconhecido como empregado, sendo tratado como contratado independente. COSTA, Elthon José Gusmão da. Aspectos jurídicos do desporto MMA. 1ª. ed. São Paulo: Mizuno, 2023. p. 112.

[12] NR 01 – DISPOSIÇÕES GERAIS e GERENCIAMENTO DE RISCOS OCUPACIONAIS.

(…)

1.1.1 O objetivo desta Norma é estabelecer as disposições gerais, o campo de aplicação, os termos e as definições comuns às Normas Regulamentadoras – NR relativas a segurança e saúde no trabalho e as diretrizes e os requisitos para o gerenciamento de riscos ocupacionais e as medidas de prevenção em Segurança e Saúde no Trabalho – SST.

(…)

1.2.1 As NR obrigam, nos termos da lei, empregadores e empregados, urbanos e rurais.

[13] CONALGO, Lorena de Mello Rezende. O GERENCIAMENTO DOS RISCOS OCUPACIONAIS (NR1 MTE). In: DELGADO, Maurício Godinho et al, (org.). Normas Regulamentadoras (NR) relativas à Segurança e Medicina do Trabalho: Percursos para a Efetividade do Trabalho Decente: Coleção estudos Enamat. Brasil: ENAMAT, fev 2023. v. 2, p. 187-200.

[14] COSTA, Op. Cit.

Autores

  • é advogado trabalhista e desportivo e diretor jurídico do Conselho Nacional de Boxe (CNB), da Confederação Brasileira de Kickboxing (CBKB), da World Association of Kickboxing Organizations Región Panamericana (Wako Panam) e da Confederação Brasileira de MMA Desportivo (CBMMad) .

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