Consultor Jurídico

Decisão do STF e o direito penal do inimigo na Lei Maria da Penha

2 de junho de 2024, 6h01

Por Diego Alves

imprimir

Em recente decisão, datada de 23 de maio de 2024, o Supremo Tribunal Federal, à unanimidade, entendeu ser inconstitucional a prática de desqualificar a mulher vítima de violência durante a instrução e o julgamento de crimes contra a dignidade sexual e todos os crimes de violência contra a mulher, de modo que é vedada eventual menção, inquirição ou fundamentação sobre a vida sexual pregressa ou ao modo de vida da vítima em audiências e decisões judiciais (CF, artigos 1º, III; 3º, I e IV; 5º, caput e I; 226, § 5º).

Marcello Casal Jr./Agência Brasil

O entendimento firmado pelo Supremo Tribunal Federal finda por mitigar o exercício da ampla defesa, ainda que em uma visão centrada na proteção das vítimas de violência sexual e doméstica contra a mulher, o simples fato de haver a relativização, extra legis, do preceito constitucional inserto no artigo 5º, LV, ressalta um cuidado acurado sobre a matéria que deve ser alvo de análise minudente por parte dos juristas. Diante de tal cenário, e a constante mitigação dos direitos do réu em processos envolvendo a Lei nº 11.340/06 (Lei Maria da Penha), questiona-se: haveria na atual conjuntura normativa de proteção da mulher supostamente vítima de violência doméstica uma incidência da teoria do direito penal do inimigo teorizada por Günther Jakobs em desfavor do réu?

A Lei nº 11.340/2006 foi criada sob os auspícios dos direitos humanos da mulher vítima de violência doméstica e familiar. A violência de gênero tem sido temática usual e que deve ser levada a sério, posto que considera as maiores dores e flagelos que o ser humano pode suportar. Sendo assim, a Lei Maria da Penha se insurgiu contra a prática rotineira de flagrante violação de direitos humanos pertencentes a milhares de mulheres no Brasil [1].

Quando ocorre a facti species, ou seja, quando incide a norma jurídica protetiva em face de fatos criminosos contra a mulher, a vítima mulher normalmente busca amparo nas redes de proteção à mulher, comumente as Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher (Deam) [3], que terá, dentre as possibilidades, diante do atendimento, a imediata retirada do suposto agressor do lar, domicílio ou local de convivência com a vítima. U

ma vez verificada a existência de risco atual ou iminente à vida ou à integridade física ou psicológica da mulher em situação de violência doméstica e familiar, ou de seus dependentes, o agressor é imediatamente afastado do lar, domicílio ou local de convivência, seja pela autoridade judicial, delegado de polícia ou por policial, comunicando-se ao juiz posteriormente para que em 24 horas decida sobre a manutenção ou não da medida, nos termos do artigo 12-C, da Lei nº 11.340/2006.

Amplitude da proteção

Nesse conspecto, a legislação especial trouxe inúmeras inovações no que se refere à proteção da vítima mulher em contexto de violência doméstica e familiar, mas que, em contrapartida, e aparentemente, finda por mitigar os direitos e garantias fundamentais dos supostos agressores – sendo este o objeto do presente artigo.

A título de exemplo, no § 2º, da Lei nº 11.340/2006, o legislador expôs que nos casos de risco à integridade física da ofendida ou à efetividade da medida protetiva de urgência, não será concedida liberdade provisória ao preso. Portanto, a regra é que, havendo risco (conceito abstratamente captado cognitivamente) à integridade física ou à efetividade da medida protetiva de urgência, o agressor não teria sua liberdade devolvida, respondendo a todo o processo preso.

Ademais, a abertura semântica quanto à proteção das mulheres vítimas de violência doméstica e familiar tomou amplitude tão considerável que praticamente todos os delitos que possam ser praticados em detrimento da mulher em sua relação doméstica e familiar passou a prever aumento considerável da pena [4].

Na lesão corporal, o artigo 129, do Código Penal, trouxe a inovação inserida pela Lei nº 11.340/2006, a fim de acrescentar o § 9º, punindo com pena de três meses a três anos quem pratica a lesão contra ascendente, descendente, irmão, cônjuge ou companheiro, ou com quem conviva ou tenha convivido, ou, ainda, prevalecendo-se o agente das relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade.

No crime de homicídio, a alteração promovida pela Lei nº 13.104/2015, acrescentou ao Código Penal o crime de feminicídio, tendo em seu § 2º-A, considerado como feminicídio aqueles crimes praticados em razão da condição de sexo feminino e estes, por sua vez, são concretizados quando há violência doméstica e familiar contra a mulher e menosprezo ou discriminação à condição de mulher.

Figura do agressor como inimigo

Como se pode ver, as alterações legislativas aqui esposadas e tidas como meros exemplos — posto que há incontáveis outras alterações legislativas que importam na exasperação da pena por crimes praticados em contexto de violência doméstica e familiar contra a mulher — têm como sucedâneo a necessidade de se recrudescer as penas e impor uma percepção de emergencialismo penal, oriundo de um panpenalismo, em desfavor do agressor [5]. Contudo, o interesse pela perseguição se solidifica também em outros diplomas normativos, bem como na jurisprudência.

É que, no Código de Processo Penal, a inovação promovida pela Lei nº 13.964/2019 isolou o suposto agressor dos benefícios do acordo de não persecução penal, previsto no artigo 28-A, § 2º, IV, que leciona que o acordo de não persecução penal não se aplica aos crimes praticados no âmbito de violência doméstica ou familiar, ou praticados contra a mulher por razões da condição de sexo feminino.

A Lei nº 11.340/2006 já trazia em seu corpo normativo estrutura similar, consistente na impossibilidade de se ofertar a transação penal aos delitos praticados em contexto de violência doméstica e familiar. Em verdade, não se aplica o rito dos juizados aos crimes praticados nesse contexto específico, ficando a cargo dos ritos ordinários a promoção da persecução penal, conforme artigo 41, da Lei Maria da Penha.

O Código de Processo Penal prevê ainda que a prisão preventiva poderá ser decretada quando o crime for praticado no contexto de violência doméstica e familiar, negando-se a liberdade provisória pelo simples fato do contexto da prática do crime, conforme aduz o artigo 313, III.

Jurisprudência

Além de todas as especificidades legais aqui aduzidas em resumo, a jurisprudência também caminha para uma interpretação cada vez mais constante do entendimento da figura do agressor como inimigo, justificando a supressão ou mitigação de seus direitos e garantias fundamentais em homenagem a uma suposta proteção da vítima [6] — a exemplo do julgamento pelo STF em questão.

Em outra recente decisão, o Supremo entendeu que “é constitucional lei municipal que impede a nomeação a cargos públicos de condenados por violência doméstica e familiar contra a mulher”, no julgamento do Recurso Extraordinário nº 1.308.883. Por sua vez, confirmou-se a posição de que “em casos de crimes cometidos em contexto de violência doméstica contra a mulher, a palavra da vítima tem ‘especial relevância’, uma vez que, em sua maioria, são praticados de modo clandestino”, conforme julgamento do Superior Tribunal de Justiça do Agravo Regimental no Agravo em Recurso Especial nº 1.945.220.

Some-se a isso que alguns tribunais, a exemplo do Tribunal do Distrito Federal, têm o entendimento de que as medidas protetivas de urgência, dada sua autonomia com o crime investigado, podem permanecer inalteradas e em pleno vigor mesmo diante do arquivamento do inquérito policial sem indiciamento, ou mesmo sem o processo penal em trâmite [7], demonstrando, prima facie, uma possível afronta ao texto constitucional que prescreve o direito fundamental ao devido processo legal, que até então era a única forma de se mitigar a liberdade ou direito de propriedade de um cidadão habitante de um Estado democrático de Direito.

Portanto, as medidas de repressão aos crimes praticados em desfavor das mulheres em contexto de violência doméstica e familiar muito parece com a incidência do direito penal do inimigo, uma vez que considera o inimigo um extracomunitário, cuja existência de direitos e garantias fundamentais pode ser mitigada ou até suprimida sob o argumento de repressão ao agente indesejado.

Visão de Günther Jakobs

A referida teoria foi desenvolvida pelo jurista alemão Günther Jakobs, cuja obra “Sociedad, Norma y Persona en una Teoría de un Derecho Penal Funcional” (Sociedade, Norma e Pessoa: Teoria de um Direito Penal Funcional) faz a distinção entre a aplicação de um direito penal do cidadão e um direito penal do inimigo [8].

Para o autor, o direito penal do cidadão tem como característica a aplicação comum da lei. Por outro lado, a criação do direito penal do inimigo está intrinsecamente ligada ao contexto jurídico e social da Alemanha na época em que Jakobs elaborou sua teoria — por isso da tentativa sempre manifesta de recrudescimento do aspecto penal como forma de combate à criminalidade.

Günther Jakobs, ao desenvolver sua teoria, busca propor uma abordagem mais eficaz e preventiva para lidar com criminosos considerados particularmente perigosos para a sociedade. Ele argumentava que o sistema penal convencional, que se concentra na culpabilidade do indivíduo e nas garantias processuais, não é considerado adequado para lidar com certos infratores que representam uma ameaça iminente e grave à ordem social [9].

Com isso em vista, o autor propôs a dualidade de sistemas penais, delineando o “direito penal do cidadão” e o “direito penal do inimigo” [10], como visto. Enquanto o primeiro seria aplicado a indivíduos que respeitam as normas sociais e são considerados sujeitos de direitos, o segundo seria voltado para aqueles que são percebidos como inimigos da sociedade, justificando a aplicação de medidas mais rigorosas e a restrição de certas garantias processuais [11].

Nessa intelecção, de acordo com Jakobs, a condição de cidadão é reservada exclusivamente àqueles que proporcionam segurança cognitiva. Isso implica que, através de suas ações passadas e estilo de vida, o indivíduo deve demonstrar de maneira inequívoca o reconhecimento da validade e legitimidade das leis do Estado, bem como o compromisso em orientar seu comportamento futuro pelos preceitos estabelecidos por essas leis.

Num Estado que incide o direito penal do inimigo, os não-pessoas abdicam livremente de suas posições de cidadãos quando praticam ato reprovável pelo Estado legislador, passando a sofrer o poder do Estado na repressão da contranorma — ou seja, do ilícito penal praticado [12]. O Estado, nessa posição, passaria a criar mecanismos necessários a inviabilizar a perpetuação da prática ilícita contra o Estado, para tanto passa a prever (I) a antecipação da punibilidade, que avança dos atos de execução para os meramente preparatórios; (II) o incremento e desproporção das penas, que passam a ter um nítido caráter de neutralização do agente; e (III) a supressão e/ou relativização de garantias processuais.

Supressão dos inimigos

Considerando a forma pela qual o Estado age visando a supressão dos extracomunitários, ou seja, dos inimigos, parece que a Lei nº 11.340/2006 e toda a sistemática de proteção às mulheres da violência doméstica e familiar, trabalha com tal teoria de Günther Jakobs visando unicamente a expulsão do cidadão agressor da posição de cidadão, colocando-o na posição de inimigo do Estado, pois, além de antecipar a punibilidade com a prisão preventiva e a mera iminência como sendo suficiente para fundamentar uma expulsão do indivíduo do lar, domicílio e local de convívio com a vítima, também exaspera em demasia a punibilidade para os crimes praticados pelo único motivo de ter sido praticado em contexto de violência doméstica e familiar contra a mulher, bem como suprime e/ou relativiza garantias processuais, tais como o acordo de não persecução penal, a transação penal, a preponderância da palavra da vítima em face da do acusado, a manutenção isolada da medida protetiva de urgência — mitigando direitos fundamentais —, bem como o impedimento à nomeação em cargos públicos,  dentre inúmeras outras que por razões de limitação técnica não serão abrangidas neste presente projeto.

Assim, considerando esse núcleo rígido da Lei nº 11.340/2006 e de toda a sistemática desenvolvida no sistema jurídico brasileiro de proteção à mulher vítima de violência doméstica e familiar, parece haver uma incursão de aspectos centrais do direito penal do inimigo mitigando direitos e garantias fundamentais do cidadão chamado de agressor.

 


[1] AMARAL, L. B. M.; MACENA, R. H. M.; VASCONCELOS, T. B.; SÁ F.E; SILVA A.S.R. Violência doméstica e a Lei Maria da Penha: perfil das agressões sofridas por mulheres abrigadas em unidade social de proteção. REVISTA ESTUDOS FEMINISTAS, v. 24, p. 521-540, 2016.

[2] ÁVILA, T. P. de, & Mesquita, C. R. de P. (2020). O conceito jurídico de “violência baseada no gênero”: um estudo da aplicabilidade da Lei Maria da Penha à violência fraterna. REVISTA QUAESTIO IURIS, 13(01), 174–208.

[3] OLIVEIRA, R. C.; LIMA, J. de C. P.; ARANA, A. M. F. da R. Da criação das DEAM’s à Lei Maria da Penha: uma reflexão sobre a questão da violência contra as mulheres. Revista Ártemis, [S. l.], v. 24, n. 1, p. 201–213, 2018.

[4] BARSTED, Leila Linhares. Lei Maria da Penha: uma experiência bem-sucedida de advocacy feminista. In: CAMPOS, Carmen (org.). Lei Maria da Penha: comentada em uma perspectiva jurídico-feminista. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. p. 13-38.

[5] FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 3. ed. rev. Tradução de Ana Paula Zomer Sica, Fauzi Hassan Choukr, Juarez Tavarez e Luiz Flávio Gomez. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010.

[6] BIANCHINI, Alice; BAZZO, Mariana; CHAKIAN, Silvia. Crimes contra mulheres. 3. ed. rev. e atual. Salvador: JusPodivm, 2021.

[7] Disponível em: https://www.tjdft.jus.br/institucional/imprensa/noticias/2019/junho/tjdft-decide-medida-protetiva-pode-ser-mantida-mesmo-apos-arquivamento-do-inquerito-policial. Acesso em: 23 maio. 2024.

[8] JAKOBS, Günther. Sociedade, norma e pessoa: teoria de um direito penal funcional. Barueri: Manole, 2003. p. 40-65.

[9] ROSA, G. F., & Queiroz, T. V. (2023). A definição legal de terrorismo e o direito penal do inimigo: uma análise crítica à luz dos direitos fundamentais. Revista De Constitucionalização Do Direito Brasileiro, 3(1), e035.

[10] JAKOBS, Günther; MELIÁ, Manuel Cancio. Direito Penal do inimigo: noções e críticas. 6ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012.Cap. 1, p. 20-28.

[11] JAKOBS, Günther. Direito Penal do inimigo e Direito Penal do cidadão. In: JAKOBS, Günther; MELIÁ, Manuel Cancio. Direito Penal do inimigo: noções e críticas. 6ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012.Cap. 1, p. 19-48.

[12] PÜSCHEL, F. P.; MACHADO, Marta Rodriguez de Assis (Org.). Teoria da Responsabilidade no Estado Democrático de Direito: textos de Klaus Günther. 1. ed. São Paulo: Saraiva, 2009. v. 1. 121p.