Práxis das candidaturas eleitorais de mulheres no Brasil
1 de junho de 2024, 11h22
A Justiça Eleitoral tem se desdobrado em difundir sobre a importância da participação das mulheres nas disputas eleitorais, em verdadeira campanha institucional democrática, à qual tem se engajado diversas instituições para o mesmo propósito, sendo que nas eleições de 2024 estarão em disputa os cargos de prefeito ou prefeita, vereador ou vereadora de 5.568 municípios.

A Lei nº 1.2034/2009 alterou a lei das eleições nº 9.504/97, atribuindo aos partidos políticos cumprirem cota de gênero quando da propositura de candidaturas, de modo a estimular a participação de mulheres nas disputas eleitorais, não só como eleitoras, mas como candidatas concorrentes a mandatos eletivos.
Assim dispõe a lei das eleições em vigor:
Art. 10. Cada partido poderá registrar candidatos para a Câmara dos Deputados, a Câmara Legislativa, as Assembleias Legislativas e as Câmaras Municipais no total de até 100% (cem por cento) do número de lugares a preencher mais 1 (um). (Redação dada pela Lei nº 14.211, de 2021)
(…)
- 3º Do número de vagas resultante das regras previstas neste artigo, cada partido ou coligação preencherá o mínimo de 30% (trinta por cento) e o máximo de 70% (setenta por cento) para candidaturas de cada sexo.
A previsão das cotas de gênero alcança tão somente cargos do legislativo, aqueles providos pelo sistema proporcional, os quais, em tempo de eleições municipais, impõe-se apenas a disputa para os mandatos de vereadores.
Na prática, o que se tem é que os partidos políticos, legitimados para o requerimento de registro de candidatura, entre seus filiados escolhidos em convenção especifica, optam por preencher a cota com o menor percentual — mínimo 30% —, com candidaturas de mulheres. Vale dizer, para exemplificar, um partido que requeira o registro de dez candidaturas, destes, no mínimo, três serão de mulheres.
A despeito da finalidade do referido dispositivo legal em estimular candidaturas femininas, a observância da cota de gênero na disputa eleitoral revelou-se em verdadeiro desafio aos partidos políticos, tradicionalmente habituados a proporem candidaturas de homens.
Entre as agremiações partidárias, que não raro prescindem da arregimentação e preparação de suas filiadas para ascenderem a candidatas a mandatos eletivos, e ao mesmo tempo ávidas por lançarem seus candidatos aos mandatos eletivos, na prática, quer seja em eleições gerais ou municipais, formalizam pedidos de registro de candidatura de mulheres sim, filiadas sim, mas não verdadeiramente engajadas na participação da disputa eleitoral, estabelecendo-se, como que num simulacro, candidaturas fictícias de mulheres, tão só para o preenchimento do percentual mínimo da cota de gênero, o que culmina em verdadeira burla, da qual decorre a invalidação de todas as candidaturas propostas pela respectiva agremiação, a cassação dos mandatos dos eleitos, e recontagem de votos para redistribuição das cadeiras.
Essa alternativa “torta” à exigência de cota de gênero imposta aos partidos políticos, ficou conhecida como “candidaturas laranja”, cognome para as candidaturas fictícias de mulheres.
O descumprimento a cota de gênero nas candidaturas, vicia a integralidade da chapa proposta pelo partido, coligação ou federação. Ou seja, todos os registros de candidatura pleiteados são julgados invalidados, impõe a cassação do mandato dos seus eleitos, repercutindo em recontagem de votos, recálculo do quociente partidário, e nova distribuição de cadeiras.
Tal prática, com recorrência, deu ensejo a entendimento sedimentado pelo TSE (Tribunal Superior Eleitoral):
Ementa: ELEIÇÕES 2020. AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL ELEITORAL. AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO JUDICIAL ELEITORAL – AIJE E AÇÃO DE IMPUGNAÇÃO DE MANDATO ELETIVO – AIME. JULGAMENTO CONJUNTO. ALEGAÇÃO DE FRAUDE À COTA DE GÊNERO. § 3º DO ART. 10 DA LEI N. 9.504/1997. IMPROCEDÊNCIA NA ORIGEM.
DESCONFORMIDADE DA DECISÃO RECORRIDA COM A JURISPRUDÊNCIA DO TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL. ELEMENTOS PROBATÓRIOS SUFICIENTES PARA A CARACTERIZAÇÃO DA FRAUDE. POSSIBILIDADE DE REVALORAÇÃO. AGRAVOS E RECURSOS ESPECIAIS ELEITORAIS PROVIDOS.
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O reenquadramento jurídico do acervo fático-probatório delineado na decisão recorrida não se confunde com reexame do acervo dos autos e, por isso, não esbarra no óbice da Súmula n.24 deste Tribunal Superior.
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Pelo quadro fático delineado no acórdão e constante da decisão agravada, conclui-se que a decisão proferida pelo Tribunal de origem não se harmoniza com a orientação deste Tribunal Superior.
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Pela jurisprudência do Tribunal Superior Eleitoral, a comprovação da concomitância de a) votação zerada ou inexpressiva, b) não realização de atos de campanha em benefício próprio, c) realização de campanha para terceiros concorrentes ao mesmo cargo e d) ausência de movimentação financeira relevante ou prestação de contas zerada é suficiente para a caracterização da fraude à cota de gênero. 4. Agravo e recurso especial providos para julgar procedente os pedidos na AIJE e na AIME pela prática de fraude à cota de gênero, determinando-se: a) a cassação dos mandatos dos candidatos vinculados ao DRAP do Diretório Municipal do Republicanos de Biritiba Mirim/SP nas Eleições 2020; b) a nulidade dos votos obtidos pelo partido Republicanos na eleição proporcional, com o recálculo dos quocientes eleitoral e partidário, como estabelece o art. 222 do Código Eleitoral; c) a aplicação da inelegibilidade pelo período de oito anos a Neide Aparecida Geronymo Frias; d) o cumprimento imediato da decisão, independente de publicação do acórdão. Acordam os ministros do Tribunal Superior Eleitoral, por unanimidade, em dar provimento aos agravos e aos recursos especiais para reformar o acórdão e julgar procedente a Ação de Investigação Judicial Eleitoral e a Ação de Impugnação de Mandato Eletivo, determinando, como consequência: a) a cassação do mandato dos candidatos vinculados ao Demonstrativo de Regularidade de Atos Partidários do Diretório Municipal do Republicanos de Biritiba Mirim/SP nas eleições de 2020; b) a anulação da votação obtida pelo partido Republicanos na eleição proporcional, com a retotalização dos quocientes eleitoral e partidário; c) a inelegibilidade pelo período de oito anos a Neide Aparecida Geronymo Frias; d) o cumprimento imediato da decisão, independente de publicação do acórdão, nos termos do voto da relatora. Brasília, 14 de março de 2024. MINISTRA CÁRMEN LÚCIA – RELATORA (TSE, Agravo em Recurso Especial Eleitoral n. 060105872, relatora Ministra Carmen Lucia, julgado em 14/03/2024, publicado em 22/03/2024).
Outrossim, oportuno colacionar mais um aresto da corte superior sobre o tema, do qual se extrai a irresignação da agremiação partidária recorrente em relação a cassação dos mandatos dos seus candidatos eleitos, secundarizada a remissão da elegibilidade de suas filiadas concorrentes, então “candidatas laranja”:
Ementa: ELEIÇÕES 2020. AGRAVOS EM RECURSOS ESPECIAIS. AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO JUDICIAL ELEITORAL. AÇÃO DE IMPUGNAÇÃO DE MANDATO ELETIVO. VEREADOR. FRAUDE À COTA DE GÊNERO. ART. 10, § 3º, DA LEI Nº 9.504/97. PROCEDÊNCIA NA INSTÂNCIA ORDINÁRIA. CONSEQUÊNCIAS JURÍDICAS DA CARACTERIZAÇÃO DA FRAUDE. PREVISÃO EM LEI E NA JURISPRUDÊNCIA. SÚMULAS Nº 26 E Nº 30/TSE. INCIDÊNCIA. DESPROVIMENTO.
1. O Tribunal Regional Eleitoral do Rio de Janeiro (TRE/RJ), em julgamento conjunto, nos autos da AIJE nº 0601227–24.2020.6.19.0135 e da AIME nº 0600001–47.2021.6.19.0135, manteve a procedência dos pedidos formulados nas respectivas ações calcadas na prática de fraude à cota de gênero (art. 10, § 3º, da Lei nº 9.504/97) no Demonstrativo de Regularidade de Atos Partidários (DRAP) do Partido Social Cristão (PSC) de São Gonçalo/RJ, nas eleições municipais de 2020.
2. (…)
3. (…)
4. No caso, os recorrentes não se insurgem contra a caracterização da fraude à cota de gênero prevista no art. 10, § 3º, da Lei nº 9.504/97. O pedido é exclusivamente para que os efeitos da fraude recaiam apenas para as candidatas fictícias, mantendo os demais candidatos da mesma chapa.
5. O TRE/RJ confirmou os consectários da fraude à cota de gênero que foram indicados na sentença, quais sejam: “determinação de anulação de todos os registros apresentados pelo PSC do Município de São Gonçalo, nas eleições proporcionais de 2020; de cassação dos diplomas dos candidatos eleitos e dos suplentes; de recálculo dos quocientes eleitoral e partidário e nova totalização dos votos, nos termos do art. 109 do Código Eleitoral; e de imposição de sanção de inelegibilidade para as candidatas Sheila Mara Alves Varela e Jacira Valério de Souza”. E, ainda: “[d]eterminação do recálculo dos quocientes eleitoral e partidário, a partir dos votos remanescentes, excluindo–se do universo dos votos originariamente válidos os ora anulados, nos termos do art. 109 do Código Eleitoral. Produção de efeitos imediatamente após o esgotamento da competência desta Corte, com o afastamento de ARMANDO MARINS DE CARVALHO FILHO de seu cargo” (ID nº 159894168).
6. O acórdão recorrido está em consonância com a compreensão deste Tribunal, reafirmada em sucessivos precedentes, no sentido de que, “caracterizada a fraude, a consequência é a cassação de toda a chapa beneficiada, sob pena de se perpetuar a burla ao art. 10, § 3º, da Lei 9.504/97” (AgR–REspEl nº 0600859–95/SC, Rel. Min. Benedito Gonçalves, DJe de 25.5.2022), o que faz incidir o óbice da Súmula 30/TSE.
7. Ademais, o Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ADI nº 6.338/DF, assentou que essa interpretação do art. 10, § 3º, da Lei 9.504/1997 c/c art. 22, XIV, da Lei Complementar 64/1990, adotada por esta Corte, é: “(i) adequada, porquanto apta punir todos os envolvidos nas práticas fraudulentas, bem como extirpar do ordenamento jurídico os efeitos decorrentes dos atos abusivos, mediante a cassação do registro ou do diploma de todos que deles se beneficiaram; (ii) necessária para evitar a contumaz recalcitrância das agremiações partidárias no adimplemento da ação afirmativa (cota de gênero) instituída pelo legislador, de modo a transformar as condutas eleitorais, incentivando, efetivamente, a participação feminina na política; (iii) proporcional em sentido estrito, tendo em vista que, ao contrário do sustentado, não acarreta desestímulo para participação do pleito e incentiva os partidos a fomentarem, a desenvolverem e a integrarem a participação feminina na política” (Rel. Min. Rosa Weber, Tribunal Pleno, DJe de 7.6.2023).
8. Agravos em recurso especial desprovidos. (TSE, Agravos em Recurso Especial Eleitoral n. 060122724 e n. 060000147, Relator Ministro André Ramos Tavares, julgado em 21/03/224, publicado em 08/04/2024).
Em 16 de maio do corrente ano, a propositura de candidaturas fictícias de mulheres, para atendimento da política de cotas de gênero, mereceu tratamento uniformizador e vinculativo pelo TSE, o qual, no Processo Administrativo 0000323-45.2013.6.00.0000, editou a Sumula 73, com o seguinte enunciado:
“A fraude à cota de gênero, consistente no que diz respeito ao percentual mínimo de 30% de candidaturas femininas, nos termos do art. 10, § 3º, da Lei 9.504/1997, configura-se com a presença de um ou alguns dos seguintes elementos, quando os fatos e as circunstâncias do caso concreto assim permitirem concluir: votação zerada ou inexpressiva; prestação de contas zerada, padronizada ou ausência de movimentação financeira relevante; ausência de atos efetivos de campanha, divulgação ou promoção da candidatura de terceiros.
O reconhecimento do ilícito acarretará nas seguintes penas: cassação do Demonstrativo de Regularidadeal de Atos Partidários (DRAP) da legenda e dos diplomas dos candidatos a ele vinculados, independentemente de prova de participação, ciência ou anuência deles; inelegibilidade daqueles que praticaram ou anuíram com a conduta, nas hipóteses de Ação de Investigação Judicial Eleitoral (AIJE); nulidade dos votos obtidos pelo partido, com a recontagem dos quocientes eleitoral e partidário (artigo 222 do Código Eleitoral), inclusive para fins de aplicação do artigo 224 do Código Eleitoral, se for o caso.”
Na prática pouco se muda
A despeito da previsão expressa para cota de gênero na lei das eleições, assim compreendida como uma política pública de incentivo a participação de mulheres na política, é certo que objetiva a efetiva investidura no mandato eletivo. Contudo, persiste o déficit de representatividade das mulheres no cenário político nas esferas municipal, estadual e federal.
Segundo números informados pelo TSE (aqui), na última disputa municipal, mesmo sendo maioria do eleitorado brasileiro, foram eleitas 651 prefeitas (12,1%), e 4.750 prefeitos (87,9%) e, para as Câmaras Nunicipais, 9.196 vereadoras eleitas (16%), e 48.265 vereadores (84%).
A baixa representatividade das mulheres como detentoras de mandatos eletivos é fato, sendo de relevância mapear suas causas. Num contexto de mera presunção, resultaria da nossa cultura partidária, historicamente voltada a construção de candidaturas masculinas? Ou da omissão e desinteresse das próprias, seja como candidatas, seja como eleitoras, em verem mulheres como detentoras de mandatos eletivos? Ou, ainda, da convergência de ambas?
Tanto perguntas quanto respostas não se exauriram, mas é que a representatividade democrática brasileira, pluripartidária, aspira pela equanimidade de gênero na política nacional, aspira por candidaturas femininas legítimas e reais, por mais mulheres eleitas.
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