Ambiente Jurídico

Fundo de compensação ambiental pode ajudar o Rio Grande do Sul

Autores

  • é juiz federal professor nos programas de pós-graduação e na Escola de Direito da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) pós-doutor doutor e mestre em Direito Ambiental membro do Grupo de Trabalho "Observatório do Meio Ambiente e das Mudanças Climáticas" do Conselho Nacional de Justiça visiting scholar pela Columbia Law School (Sabin Center for Climate Change Law) e pela Universität Heidelberg (Institut für deutsches und europäisches Verwaltungsrecht) autor de diversos artigos na área do Direito Ambiental no Brasil e no exterior e dos livros O desenvolvimento sustentável na era das mudanças climáticas: um direito fundamental e Litígios Climáticos: de acordo com o Direito Brasileiro Norte-Americano e Alemão e ex-presidente da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe).

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  • é doutor em Direito presidente da Associação Brasileira de Liberdade Econômica professor e advogado.

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1 de junho de 2024, 10h18

Profundamente consternados, como gaúchos e brasileiros, com o maior desastre climático ocorrido na história do país, nos sentimos no dever solidário  de pensar alternativas constitucionais e legais, dentro de uma perspectiva atenta ao princípio do desenvolvimento ecologicamente sustentável (Preâmbulo, artigo 170, inciso VI, artigo 225, caput, da CF) [1], para reconstruir o nosso estado, observando o justo equilíbrio que albergue: a) a tutela ambiental; b) a inclusão social; c) o desenvolvimento econômico; d) a boa governança. [2]

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Entre as alternativas possíveis para angariar os necessários recursos e reparar os danos ambientais sofridos decorrentes das enchentes, existe uma que merece ser mencionada e exposta para fins de debate público. Trata-se da necessidade de uma interpretação extensiva ou concretizadora da legislação, para que o Fundo de Compensação Ambiental (FCA), ante uma situação excepcional [3], possa ser utilizado para minimizar os efeitos de eventos climáticos extremos como o ocorrido no Rio Grande do Sul.

O FCA, para que o leitor possa bem se situar, foi criado pela Medida Provisória 809/2017, posteriormente convertida na Lei 13.668/2018, com a finalidade de apoiar a implantação e manutenção das Unidades de Conservação (UCs) no Brasil. A origem do FCA está enraizada na Lei nº 9.985, de 18 de julho de 2000, que regulamenta o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza (Snuc) e está alinhada, de modo simétrico, com os preceitos do art. 225, § 1o, incisos I, II, III e VII da Constituição.

A Magna Carta, em seu artigo 225, aliás, estabelece que “todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e impõe ao poder público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”.

Especificamente, o § 1o deste artigo descreve os deveres constitucionais fundamentais do poder público em relação ao meio ambiente. Entre esses deveres estão: “preservar e restaurar os processos ecológicos essenciais e prover o manejo ecológico das espécies e ecossistemas; preservar a diversidade e a integridade do patrimônio genético do país;  fiscalizar as entidades dedicadas à pesquisa e manipulação de material genético; definir, em todas as unidades da Federação, espaços territoriais e seus componentes a serem especialmente protegidos; e proteger a fauna e a flora, vedadas as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais à crueldade”.

Os objetivos do Snuc, de todo compatíveis com o sistema constitucional ambiental brasileiro, são: a) a preservação da diversidade biológica; b) a recuperação de áreas degradadas; c) a proteção dos recursos naturais; d) a promoção da educação ambiental. Este é composto por diversas categorias de UCs, cada uma com normas específicas para garantir a proteção e a gestão sustentável dos recursos naturais.

O Decreto nº 4.340, de 22 de agosto de 2002, regulamenta os artigos da Lei nº 9.985/2000, detalhando as disposições sobre o Snuc e estabelecendo normas para a criação, implementação e gestão das UCs, além de regular outras providências relacionadas.

A criação do FCA visou estabelecer um mecanismo financeiro robusto para assegurar a efetiva implementação e manutenção das UCs. Os recursos do FCA provêm de compensações ambientais pagas por empreendedores que realizam atividades com significativo impacto ambiental, conforme determinado pelos órgãos ambientais competentes.

A regulamentação do FCA está definida pela Portaria nº 1.039, de 29 de novembro de 2018, do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio). Esta portaria estabelece os critérios, políticas e diretrizes para a aplicação dos recursos do FCA, assegurando que os fundos sejam utilizados de maneira eficaz e transparente para a proteção e manutenção das UCs.

O FCA tem como principal objetivo captar recursos para apoiar a criação, a implementação, a manutenção e a consolidação das UCs. Isso inclui: a) prover os recursos necessários para a gestão das UCs, garantindo que estas áreas cumpram suas funções ecológicas e sociais; b) utilizar os recursos provenientes de empreendimentos com impacto ambiental significativo para restaurar e conservar o meio ambiente; c) promover a sustentabilidade ambiental e a regeneração de áreas degradadas, contribuindo para a biodiversidade e a integridade dos ecossistemas.

Esse mecanismo é crucial para o fortalecimento do Snuc e não visa compensar diretamente os impactos dos empreendimentos que o originaram, mas sim compensar a sociedade e o meio ambiente pelo uso autorizado de recursos naturais, conforme determinado pelos órgãos ambientais competentes, com base em estudos de impacto ambiental e respectivos relatórios. A definição do valor a ser desembolsado pelos empreendedores e de quais são as UCs beneficiárias é procedida elo órgão licenciador, considerando o grau de impacto do empreendimento e critérios técnicos específicos.

Coerente e necessária

A utilização desse fundo para a reconstrução ambiental do Rio Grande do Sul é não apenas coerente com o texto constitucional, mas necessária. As intensas chuvas que assolaram este ente federado causaram danos significativos e extraordinários às UCs, comprometendo ecossistemas vitais, nascentes de rios e áreas adjacentes aos cursos d’água. Assim, a aplicação do FCA é uma ação de alcance macro, voltada para a sustentabilidade e a regeneração ambiental do Estado como um todo.

O Rio Grande do Sul, importante esclarecer, abriga nove UCs, entre áreas de uso sustentável e de proteção integral. Essas unidades são essenciais para a manutenção da biodiversidade, do equilíbrio ecológico e da preservação dos recursos hídricos. A recuperação dessas áreas, danificadas pelo desastre climático, como determina o texto constitucional, demanda investimentos substanciais que o FCA, acima de qualquer outro, pode proporcionar.

A proposta de utilização do fundo contempla duas vertentes fundamentais: a) a sustentabilidade [4]; b) a regeneração ambiental. A sustentabilidade refere-se à manutenção e preservação contínua das UCs, garantindo que possam cumprir suas funções ecológicas e sociais de forma duradoura. Já a regeneração ambiental enfoca a restauração das áreas degradadas, recuperando a flora e a fauna locais, restabelecendo os serviços ecossistêmicos e mitigando os impactos negativos dos alagamentos.

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A recuperação das nascentes dos rios e das áreas ao longo de seu trajeto é uma prioridade. Essas regiões são cruciais para o fornecimento de água potável, controle de erosão e suporte à biodiversidade. Além disso, a restauração das UCs afetadas contribui para a proteção contra futuros desastres, criando um ambiente mais resiliente e preparado para enfrentar as mudanças climáticas como previsto nos objetivos fixados no Acordo de Paris e no ODS 13 da Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável da Organização das Nações Unidas.

O FCA, originalmente instituído para apoiar a implantação e manutenção das UCs federais, tem desempenhado um papel crucial na proteção e conservação da biodiversidade no Brasil. No entanto, diante das recentes catástrofes, como as inundações devastadoras no Rio Grande do Sul, é imperativo expandir o escopo de utilização desses recursos para não esvaziar os princípios inclusos na Carta Política de 1988.

A atual situação de emergência climática demanda uma abordagem excepcional, mais abrangente e flexível, para a aplicação do FCA, permitindo que ele também seja utilizado, inclusive de modo mais desburocratizado, para a recuperação de áreas ambientais afetadas por catástrofes climáticas.

As chuvas que atingiram o Estado causaram danos significativos a diversos ecossistemas, não limitados apenas às UCs. As nascentes dos rios, zonas ribeirinhas e outras áreas vitais fora das UCs também sofreram com a devastação, necessitando de ações imediatas e eficazes de regeneração. Limitar o uso dos recursos do FCA exclusivamente às UCs compromete a capacidade de resposta rápida e abrangente aos desastres climáticos.

Para permitir a utilização dos recursos do FCA em situações de extrema necessidade, como os alagamentos, é essencial, como já referido, que seja conferida uma interpretação extensiva da norma para que os próprios direitos constitucionais fundamentais à vida, à saúde e ao meio ambiente saudável e equilibrado [5] das populações atingidas não sejam violados. Essa postura hermenêutica, em meio a um cenário catastrófico, deve incluir a permissão explícita para o uso dos fundos em ações de recuperação ambiental mais amplas, beneficiando ecossistemas críticos e comunidades humanas.

A interpretação proposta, de acordo com o princípio da dignidade da pessoa humana(artigo 1, inciso III, da CF/1988), um dos sustentáculos do Estado Socioambiental de Direito, consiste em ampliar os direcionamentos de utilização do FCA para incluir ações de regeneração do meio ambiente em geral, incorporando a possibilidade de destinar recursos para:

  • Recuperação de Nascentes e Corpos Hídricos
  • Regeneração de Zonas Ribeirinhas.
  • Reparação de Áreas Degradadas por Desastres Climáticos
  • Apoio a Comunidades Afetadas e Vulneráveis

Expandir o escopo de utilização do FCA trará inúmeros benefícios, incluindo:

  • Resposta Rápida e Eficiente: Permitir que os recursos sejam usados imediatamente após desastres climáticos para mitigar danos e iniciar processos de recuperação.
  • Proteção Ampla do Meio Ambiente: Garantir que não apenas as UCs, mas todas as áreas ambientais necessitadas possam receber suporte financeiro e técnico para regeneração.
  • Fortalecimento da Resiliência Comunitária: Apoiar diretamente as comunidades afetadas, promovendo práticas sustentáveis e melhorando a capacidade de lidar com futuros desastres.
  • Conservação de Recursos Hídricos: Focar na recuperação de nascentes e corpos hídricos, essenciais para a vida e a biodiversidade.

A proposta de ampliar o uso dos recursos do FCA para incluir ações de regeneração do meio ambiente em um contexto mais amplo é uma resposta necessária às crescentes emergências ambientais e climáticas, como as enchentes no Rio Grande do Sul. Essa flexibilização permitirá uma abordagem mais eficaz na proteção e recuperação dos ecossistemas, beneficiando o meio ambiente e as presentes e futuras gerações de seres humanos e não humanos.

Para isso, é crucial que esta virada hermenêutica ou, simplesmente, uma interpretação constitucional para a concretização de direitos fundamentais e para vedação de evidentes retrocessos socioambientais, seja realizada prontamente e garanta que o dinheiro do FCA possa ser finalmente direcionado, de maneira ágil, para a natureza e para os seres humanos vítimas de desastres como o que ainda está assolando o povo gaúcho.

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[1] “O princípio do desenvolvimento sustentável, além de impregnado de caráter eminentemente constitucional, encontra suporte legitimador em compromissos internacionais assumidos pelo Estado brasileiro e representa fator de obtenção do justo equilíbrio entre as exigências da economia e as da ecologia, subordinada, no entanto, a invocação desse postulado, quando ocorrente situação de conflito entre valores constitucionais relevantes, a uma condição inafastável, cuja observância não comprometa nem esvazie o conteúdo essencial de um dos mais significativos direitos fundamentais: o direito à preservação do meio ambiente, que traduz bem de uso comum da generalidade das pessoas, a ser resguardado em favor das presentes e futuras gerações” (STF, ADI-MC 3540, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 05.05.2009).

[2] Sobre as quatro dimensões do desenvolvimento sustentável, vide: WEDY, Gabriel. Desenvolvimento Sustentável na Era das Mudanças Climáticas: um direito fundamental. São Paulo: Saraiva, 2018; No mesmo sentido, ver: SACHS, Jeffrey. The Age of Sustainable Development. New York: Columbia University Press, 2015.

[3] Em relação a situações excepcionais que atingem O Estado de Direito, ver: NABAIS, José Casalta. Sustentabilidade do estado fiscal. In: NABAIS, José Casalta (Org.). Sustentabilidade Ambiental em Tempos de Crise. Coimbra: Almedina, 2011. p. 47-92.

[4] Em relação ao princípio da sustentabilidade, ver: BOSSELMANN, Klaus. The Principle of Sustainability: Transforming Law and Governance. Farnham: Ashgate, 2008.

[5] O ministro Celso de Mello asseverou que o direito ao meio ambiente constitui a representação objetiva da necessidade de se proteger valores associados ao princípio da solidariedade. Como consta no voto, é um direito fundamental de terceira geração:

[…] que assiste de modo subjetivamente indeterminado a todo o gênero humano, circunstância essa que justifica a especial obrigação que incumbe ao Estado e à própria coletividade de defendê-lo e preservá-lo em benefício das presentes e futuras gerações, evitando-se, desse modo, que irrompam no seio da comunhão social os graves conflitos intergeracionais marcados pelo desrespeito ao dever de solidariedade na proteção desse bem essencial de uso comum de todos quantos compõe o grupo social.  BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário 22.164/SP. Relator: ministro Celso de Mello.

Autores

  • é juiz federal, professor do PPG e Escola de Direito da Universidade do Vale do Rio dos Sinos e da Escola Superior da Magistratura Federal. Pós-doutor, doutor e mestre em Direito, visiting scholar pela Columbia Law School e pela Universität Heidelberg, integrante da IUCN World Comission on Environmental Law (WCEL), vice-presidente do Instituto O Direito Por um Planeta Verde e ex-presidente da Ajufe (Associação dos Juízes Federais do Brasil).

  • é advogado, professor da FGV e doutor em Direito.

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