Medidas provisórias e salto psicoterapêutico democrático
31 de julho de 2024, 17h17
“Os socialistas pretenderam transformar o mundo; cabe, porém, transformar os homens, isto é, motivá-los para aquela transformação. O socialismo depende de um salto psicoterapêutico para além da dominação orquestrada democraticamente na esfera pública.” Haddad, Fernando. Teses sobre Karl Marx. In: Estudos Avançados, v. 12, n. 34, p. 98-99, 1998 (Tese 8).
Marcelo Camargo/Agência Brasil
A tese de Fernando Haddad, além de esteticamente cativante, apresenta uma proposição singular, especialmente se considerarmos o contexto que a envolve. Trata-se de reflexão produzida em face das Teses sobre Feuerbarch [9] de Marx [1], que suscita que a sociedade capitalista parte de indivíduos particulares como existentes de forma independente da sociedade, e não como uma construção social.
Ou seja, Marx aponta-nos que o capitalismo edifica uma concepção ideológica, desconsiderando que o conceito de indivíduo é socialmente construído – para ilustrar, reflita sobre comunidades não-ocidentais, com estruturas distintas da nossa, a ideia de um sujeito que é separado do corpo social é inconcebível.
Haddad, por sua vez, suscita que devemos promover um salto, notadamente que os indivíduos (socialmente concebidos no capitalismo) devem se reconhecer como sujeitos que se erigem democraticamente.
Em síntese, partindo do dado que configura estarmos diante de uma sociedade capitalista, Haddad aduz que é necessário conceber os indivíduos como efetivos sujeitos, e não como meros objetos. Nesse sentido, os sujeitos devem ser agentes de ação, rejeitando decisões políticas estabelecidas por arranjos que se utilizam de mecanismos institucionais que são apenas pró-forma.
Cenário político atual
Hoje, há quase 26 anos da publicação do texto, Haddad ocupa posição de poder, prescrevendo as diretrizes econômicas de nosso país e decidindo acerca dos mecanismos políticos que serão adotados para atingir as referidas diretrizes. Considerando o cenário, é importante refletirmos sobre a postura atualmente adotada, até mesmo para pensar acerca de métodos institucionais para garantir maior efetividade democrática.
Nesse sentido, a ideia do presente texto não é promover crítica ad hominem, pelo contrário, trata-se de examinar como um professor, crítico de posturas que não efetivamente suscitam a participação democrática da população, tem atuado ao assumir o cargo de ministro da Fazenda – ou seja, inequívoca posição de poder – em um país com tradição autoritária e de sobreposição do Poder Executivo sobre as demais instituições e a população.
Há distintas formas para refletir sobre atuação democrática em um ambiente institucional, desde a linguagem adotada até os procedimentos utilizados para concretizar diretrizes políticas. Na presente análise, interessa-nos como o Ministério da Fazenda tem utilizado dos procedimentos institucionais disponíveis para que sua agenda se efetive como norma. Em outras palavras, considerando que diante de Estado de Direito, em que o poder político pressupõe que sua vontade esteja reproduzida em uma norma legal para que seja legítimo, é importante verificar como o Ministério da Fazenda tem atuado para que os seus objetivos se tornem dispositivos legais.
A Constituição prescreve distintas formas de iniciar o processo legislativo no Parlamento – local que o povo, ainda que indiretamente, encontra-se presente para decidir qual a sua vontade geral. No entanto, o constituinte estabeleceu exceção ao pressuposto democrático de criação de norma qualificada como lei, especificamente tratou que o presidente da República poderia adiar a fase de deliberação parlamentar para editar medidas provisórias com força lei em caso de situações de relevância e urgência. Sobre a natureza das medidas provisórias, são elucidativas as reflexões do ministro Celso de Mello em voto proferido na Medida Cautelar na ADI 293/DF, que impugnou o artigo 1º da Medida Provisória nº 190/1990, que tratou da possibilidade de suspensão de execuções de decisões dos Tribunais Regionais do Trabalho pelo presidente do Tribunal Superior do Trabalho:
É inquestionável que as medidas provisórias traduzem, no plano da organização do Estado e na esfera das relações institucionais entre os Poderes Executivo e Legislativo, um instrumento de uso excepcional. A emanação desses atos, pelo presidente da República, configura, em função da natureza mesma de que se revestem, momentânea derrogação ao princípio constitucional da separação dos poderes.
Nesse contexto, um parâmetro é o exame da quantidade de medidas provisórias editadas. Houve 31 medidas provisórias editadas no primeiro semestre do segundo ano de governo, das quais 12 tiveram aposição do Ministério da Fazenda (seja pelo ministro, seja pelo secretário executivo). Ou seja, uma primeira reflexão poderia envolver a quantidade em si considerada, isto é, o que significa o referido número de medidas provisórias no ambiente democrático. Contudo, o questionamento quantitativo não aparece o melhor caminho, pois, considerando se tratar de atos normativos editados em resposta a ambiente de urgência e relevância, o número de medidas pode ser resultado apenas de um cenário extremo que exigiu respostas rápidas do chefe do Executivo [2].
Outrossim, dados não afastam a necessidade de uma explicação substantiva anterior. Nesse sentido, elucidativa a reflexão apresentada pelo professor Matthews [3], da Aston University, a partir da demonstração de que a população de cegonhas e a quantidade de nascimentos crescem de forma correlacionada estatisticamente, no sentido que mesmo pesquisas que lançam de dados estatísticos dependem de uma interpretação anterior cujas premissas e conclusões devem ser racionalmente fundamentadas.
Noutro plano, um parâmetro interessante de reflexão é verificar se haveria medidas provisórias editadas que desconsideram o debate parlamentar, o que envolve uma análise substantiva de medidas propostas pelo governo e, mais especificamente, pelo Ministério da Fazenda.
Medidas Provisórias nº 1.202/2023 e 1.227/2024
Dentre as medidas editadas pela equipe econômica, duas chamam a atenção, uma vez que apontam para postura que desconsidera que os indivíduos são efetivos sujeitos, capazes de participar do processo político-decisório. Inclusive, o exame de ambas suscita se, na realidade, a premissa ao serem elaboradas seria no sentido de que compete ao governo, por meio do Ministério da Fazenda, editar medidas provisórias orquestrando as regras que circunscrevem a sociedade, devendo ser desconsiderada a população representada no parlamento.
Na MP nº 1.227, de 04 de junho de 2024, o governo, sem consultar a sociedade, simplesmente esvaziou diversos regimes tributários específicos, em que contribuintes tiveram que observar regras e condições para fazer jus a créditos presumidos no âmbito da contribuição ao PIS/Pasep e da Cofins. Ilustrativo, nesse sentido, o Programa Mais Leite Saudável estabelecido pela Lei nº 13.137/2015, em que adquirentes de leite in natura e que o utilizam como insumo para produção de mercadorias destinadas à alimentação humana ou animal fazem jus à crédito presumido da contribuição ao PIS/Pasep e da Cofins quando habilitam programa para realizar investimentos destinados a auxiliar produtores rurais de leite (capacitação, melhoramento genético, educação sanitária na pecuária etc.).
Já a MP nº 1.202, de 28 de dezembro de 2023 objetivou alterar a decisão do Legislativo que rejeitou veto presidencial e publicou a Lei nº 14.784, de 27 de dezembro de 2023, para prorrogar até 31 de dezembro de 2027 a contribuição previdenciária incidente sobre a receita bruta de natureza (CPRB), substitutiva às contribuições previdenciárias patronais previstas nos incisos I e III do artigo 22 da Lei nº 8.212/1991. Em específico, a MP nº 1.202/2023 desconsiderou que o Parlamento havia rejeitado a posição do governo (presentificada no veto presidencial) e prescreveu regime distinto à CPRB, limitando os setores econômicos e prescrevendo regime escalonado de revogação da contribuição substitutiva.
Ministério da Fazenda como tutor das decisões políticas
Em ambas medidas provisórias (1.202/2023 e 1.227/2024), observa-se que o Ministério da Fazenda adotou a posição de tutor das decisões políticas do Parlamento e, por consequência, dos brasileiros. Não importa o regime estabelecido e que os indivíduos se submeteram, atraindo direitos e obrigações, nem mesmo se a vontade parlamentar se concretizou em lei – em qualquer caso, o Governo, e mais especificamente o Ministério da Fazenda, irá avaliar se a decisão está condizente com a eficiência e o padrão que entende como adequado para validar o processo democrático.
No entanto, o constituinte não estabeleceu que haveria um superego [4] capaz de avaliar as decisões políticas estabelecidas pelo Parlamento, pelo contrário, a Constituição adotou que apenas em situações específicas (relevância e urgência) poderia ser adiado, mas nunca desconsiderado, o pressuposto democrático para criação de normas legais. Nesse sentido, a inequívoca excepcionalidade da adoção da medida provisória resguarda o processo legislativo e, em última análise, a soberania do Parlamento na atividade legiferante. Isso porque medida provisória não é diálogo e muito menos projeto de lei para suscitar o debate parlamentar, trata-se de edição de norma com efeitos imediatos para todos os sujeitos envolvidos no plano de aplicação da norma.
A par do exposto, a justificar a postura do ministério e a reflexão acadêmica de Haddad, poder-se-ia suscitar que ambas são condizentes entre si, pois o ministério estaria ditando regras em face de uma classe burguesa que objetifica o indivíduo e reduz a sua subjetividade pelo processo de mais-valia, em que o trabalhador não se apropria daquilo que produz. Contudo, a referida ideia está maculada por erro de princípio, afinal adota postura que está em contradição com suas próprias premissas [5].
Ao utilizar medidas provisórias para desconsiderar a vontade reproduzida pelo Parlamento, o ministério cria contexto de alienação da sociedade brasileira às principais decisões tributárias do país – que são, queira ou não, as principais decisões econômicas do país, pois vivemos em uma sociedade capitalista em que a principal forma de custeio dos serviços públicos são as receitas tributárias. Isso porque pressupõe que os cidadãos são incapazes de debater e influenciar os representantes sobre as principais questões econômicas, devendo apenas se submeter aos ajustes priorizados pela pasta e na forma como ela determina. Assim como o materialismo histórico nos aponta a inevitabilidade das crises do sistema capitalista, também são os conflitos em uma administração que desconsidera os administrados.
Em síntese, a atuação do governo, especialmente promovida pelo Ministério da Fazenda, deve reconhecer que medidas provisórias não configuram um expediente legislativo, mas figura singular que deve ser adotada apenas em situações muito específicas. A apresentação de projeto de lei é salutar para todos, acreditar que um sujeito pode atingir a verdade unilateralmente configura posição contrária inclusive às bases filosóficas do marxismo. Cerrar para o debate na construção de escolhas políticas, além de ineficiente, abala o avanço da democracia e, portanto, da sociedade. Antes de desconsiderar as possibilidades democráticas do Parlamento brasileiro, deveria o ministério suscitar o amplo debate na esfera pública, chamando todos para influenciar o processo deliberativo.
[1] MARX, Karl. Teses sobre Feuerbach. In: MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. Tradução: Luis Claudio de Castro e Costa. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
[2] No primeiro semestre do segundo ano de mandato do governo do Chefe do Executivo anterior, houve a edição de 71 medidas provisórias. Uma das explicações, e aqui não se aduz que configura correta ou incorreta, poderia ser a ocorrência da pandemia decorrente da Covid-19.
[3] MATTHEWS, Robert. Storks Deliver Babies (p= 0.008). In: Teaching Statistics, v. 22, n. 2, p. 36-38, 2000.
[4] Sobre o conceito psicanalítico e a sua utilização na ciência política, conferir: MAUS, Ingeborg. O Judiciário como superego da sociedade: o papel da atividade jurisprudencial na “sociedade órfã”. In: Revista Novos Estudos Cebrap, nº 58, p. 183-202, nov. 2000.
[5] Haveria um segundo ponto, notadamente desconsidera que o empresário/administrador também desenvolve sua subjetividade no processo produtivo, organizando as forças e estruturando a atividade, de modo que há variáveis desconsideradas na função da produção de valor, notadamente não apenas o trabalhador diretamente envolvido na produção. Contudo, focar-se-á apenas na primeira questão, pois a segunda não envolve diretamente um erro lógico, mas depende de explorar fundamentos teóricos da teoria marxista, o que, inevitavelmente demandará artigo específico e extenso sobre o tema em que o autor submeterá a comunidade para as devidas críticas – que já antecipa acreditar que tendem a não ser poucas, pois envolve proposição em que o detentor no capital integra a produção de valor por meio do trabalho.
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