Zen e a arte de manutenção de julgamentos do júri
30 de julho de 2024, 16h16
Nos anos 80 (vejam como sou antigo) eu cursava mestrado em Filosofia do Direito. Warat era meu orientador. E certo dia mandou ler o livro Zen – A Arte de Manutenção de Motocicletas, de Robert Pirsig. O subtítulo do livro é Uma Investigação sobre Valores.
A passagem que discutimos na aula dizia respeito a uma igreja rural em um estado do oeste do Estados Unidos da América, que fora vendida para instalar uma casa noturna, tendo, em vez da antiga cruz, um luminoso de marca de cerveja.
A malta protestou. Afinal, tinha sido uma Igreja. Pirsig analisa esse episódio no contexto dos valores, do fetichismo e da coisificação. Ou da reificação.
“Pensavam que tijolos, tábuas e vidro constituíam uma igreja? Ou o formato do telhado? Aquilo era um exemplo do mesmo materialismo desprezado pela Igreja, disfarçado em piedade. O prédio em questão não era mais um lugar santo. Perdera o caráter sagrado, e pronto. O anúncio de cerveja estava à porta de um bar, não de uma igreja”.
Um dos personagens, Fedro, declarou então que existia o mesmo tipo de confusão com relação à universidade. E por isso era difícil compreender a perda do reconhecimento. A verdadeira universidade não é um objeto material. Não é um conjunto de edifícios que pode ser defendido pela polícia. Quando uma faculdade perdia o reconhecimento, não vinha ninguém fechar a escola.

Conto isso para falar de uma polêmica que se instalou no estado do Ceará. A comarca de Juazeiro do Norte (estive lá no ano passado) não tem prédio para júri (está em reforma). Agora, advogados (incluída a defensoria) não querem fazer júri em um salão do prédio do Ministério Público. Perderia a neutralidade ou algo assim. Ou influenciaria o corpo de jurados. Ou o juiz, talvez. Ou, ainda, talvez porque o MP estaria jogando em sua casa. As razões parecem que são muitas.
A questão assumiu ares mais dramáticos, tendo o Tribunal de Justiça do estado oficiado ao juiz titular da 1ª Vara Criminal da Comarca, proibindo o uso das instalações do Ministério Público da cidade para as sessões do Tribunal do Júri.
Veja-se que a polêmica já se tornou um hard case. Pode esse motivo obstaculizar os julgamentos?
O episódio do livro de Roberto Pirsig tem algo a nos ajudar a entender essa coisificação ou fetichização. Veja-se que na Utopia, de Thomas Morus, o ouro nada valia e os escravos eram acorrentados com ouro. Marx também fala do caráter fetichista da mercadoria.
Em que medida o prédio do MP influenciaria jurados a ponto de prejudicar o trabalho da defesa? Em que medida a justiça ou injustiça estaria vinculada a um prédio?
Do mesmo modo, em que medida uma antiga igreja, agora transformada em boate, conspurcaria a fé da comunidade? São questões interessantes para refletir, pois não?
Por vezes coisificamos. Embora saibamos que sempre fazemos rituais – quando amamos, casamos, contratamos, julgamos, defendemos, acusamos, matamos ou morremos – estes (símbolos e rituais) são limitados por outros fatores de caráter objetivo e subjetivo.
Isto é, nem tudo é essencialmente simbólico. Sempre há o simbólico; mas nem tudo se resume (reduz) ao simbólico. Como diz Castoriadis, o gesto do carrasco, ao decepar a cabeça do condenado, é real por excelência e, também, fortemente simbólico. Porém, acrescento, ainda assim, para alcançar o objetivo, esse ritual, essa simbologia do corte da cabeça necessita de outros fatores, como, por exemplo, ser efetuado em praça pública. Só então se completa o “processo”.
Portanto, é evidente que o júri ser realizado no prédio do MP tem um componente simbólico. Mas, penso, não ao ponto de reificar o próprio julgamento. Isso seria fazer pouco caso dos próprios atores do júri, mormente os advogados – sempre grandes protagonistas, não só dos julgamentos populares, como do cotidiano das práticas judiciárias.
O personagem Fedro, do livro de Pirsig, pode ter razão.
A ver!
Encontrou um erro? Avise nossa equipe!