JUDICIÁRIO METAFÍSICO

11 tribunais brasileiros incentivam prática de constelação familiar para resolver conflitos

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30 de julho de 2024, 8h51

Onze tribunais brasileiros incentivam a prática da constelação familiar nas resoluções de conflitos. A maior parte dos casos versa sobre questões de família, sucessões e matérias relacionadas, como violência doméstica e contra menores. Esses dados estão no relatório “Constelação Familiar como Política Pública?”, elaborado pelo Instituto Questão de Ciência (IQC).

A constelação familiar é chamada por seus adeptos de terapia — mesmo sem aval dos conselhos de Psicologia — e usa subjetividades espirituais e metafísicas para supostamente encontrar a razão e a solução dos conflitos. Seu uso não é regulamentado pelo Conselho Nacional de Justiça e os aplicadores são, normalmente, juízes entusiastas da prática espiritual. Seus apoiadores se sustentam em resoluções do CNJ que incentivam alternativas para mediação de conflitos, mas não citam questões religiosas ou espirituais.

Uso da constelação familiar no Poder Judiciário brasileiro está em expansão

A maior parte dos casos em que se encontra o uso da constelação tem relação mesmo com o Direito de Família. Há situações de violência doméstica em que o acusado é intimado a participar da prática e, quando a recusa, a negativa é citada em sentença para negar a apelação; argumentações metafísicas em casos de divórcio litigioso, ações de alimentos ou de guarda; “perícias” que têm como base a constelação familiar em casos de aposentadoria por invalidez; entre outros.

Segundo o documento do IQC, o Tribunal de Justiça de São Paulo, maior do país e um dos maiores do mundo, incentiva a prática. Além dele, os tribunais de Acre, Amapá, Distrito Federal, Maranhão, Pará, Paraíba, Piauí, Rio de Janeiro e Rondônia também dizem regulamentá-la. Em âmbito federal, o Tribunal Regional Federal da 3ª Região afirmou que utiliza a constelação. E esse número pode estar subdimensionado porque nove cortes não responderam às consultas.

Há casos ainda como o do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, que afirmou que não incentiva a prática e não a regulamentou. O relatório constatou, no entanto, o uso do método em varas do estado, como em Camboriú, Blumenau e Florianópolis. Em janeiro deste ano, o TJ-SC divulgou resolução desaconselhando a prática em casos de violência doméstica.

“Em geral, a aplicação da constelação familiar no Poder Judiciário brasileiro ocorre por iniciativa dos magistrados responsáveis pela gestão de suas unidades, mediante alto grau de autonomia e discricionariedade, não necessariamente por orientações dos tribunais — embora não sejam tampouco desestimulados quanto à aplicação”, diz o relatório.

“Esses magistrados baseiam-se no incentivo à disponibilização de métodos alternativos de resolução de conflitos, suscitando argumentos como a existência da Resolução n. 125/2010 do CNJ e o suposto êxito do método, com suposta redução de novas demandas e suposta satisfação dos envolvidos, embora tais afirmações não tragam consigo o amparo em evidências científicas.”

Precursor não respondeu

O Tribunal de Justiça da Bahia, considerado o precursor no uso da constelação familiar no Judiciário brasileiro, está no bloco dos que não responderam aos questionamentos do IQC. A “vanguarda” do tribunal se deve ao juiz Sami Storch, um dos primeiros, se não o primeiro, magistrados do país a incentivar a prática — ele diz que começou a utilizar a constelação em 2006. Storch é juiz titular da 2ª Vara de Família da Comarca de Itabuna (BA).

Como mostrou a revista eletrônica Consultor Jurídico em outubro passado, o juiz registrou a patente do termo “Direito Sistêmico”, que é utilizado pelos apoiadores da constelação familiar como a “vertente” do Direito que trata desse tipo de mediação, ainda que esse não seja efetivamente um campo de estudos jurídicos e trate única e exclusivamente da constelação familiar. Storch registrou a patente no Instituto Nacional de Propriedade Intelectual (INPI) em 2017 e detém a marca até 2027.

O relatório faz ainda menção à Ordem dos Advogados do Brasil, que se tornou fiadora da prática quando passou a criar comissões de “Direito Sistêmico” em suas subseções. O documento revela que a prática também está sendo usada pelas Defensorias Públicas. Os pesquisadores sustentam que Defensorias de ao menos seis estados oferecem a possibilidade da constelação aos seus assistidos.

“A Ordem dos Advogados do Brasil tem desempenhado um papel significativo na adesão dos profissionais do Direito à prática. Seja através da criação de comissões de Direito Sistêmico, como nas seccionais do RJ e de SC, e de grupos de trabalho, como na seccional do RS; seja por meio da promoção de cursos, palestras, cartilhas e disponibilização de espaços para a divulgação da prática, como ocorre nas seccionais dos estados de AL, do AM, do ES, de MG, do MS, da PB, do PI, do PR, de RO, do SE e de RO, percebem-se setores da advocacia apoiando a expansão do que consideram uma nova área (ou mercado) de atuação chamada de advocacia sistêmica”, dizem os pesquisadores no documento.

“Outro exemplo é a abertura de espaços de escolas da magistratura, como ocorreu em palestras proferidas sobre o tema em 2018, uma por iniciativa da Escola Superior da Magistratura do Amazonas (Esmam), no auditório do Centro Administrativo Desembargador José Jesus Ferreira Lopes, prédio anexo à sede do TJ-AM, e outra por iniciativa da Escola Superior da Magistratura Tocantinense (Esmat), em evento com incentivo à aplicação da constelação por magistrados.”

CNJ deve restringir prática

O relatório cita propostas legislativas que tramitam para tentar regulamentar a prática. No caso do Judiciário, corre no Conselho Nacional de Justiça um pedido de providências, feito pela Associação Brasileira das Constelações Sistêmicas em março de 2019, para legalizar definitivamente o uso da constelação familiar nos tribunais. O pedido, no entanto, deve resultar em sua proibição, tendo em vista o teor dos debates no julgamento, que está parado desde o final do ano passado.

Na análise do pedido, o relator da matéria, juiz federal Marcio Luiz Freitas, hoje ex-conselheiro, não só entendeu que não há espaço para a regulamentação como votou para que a prática seja proibida em casos de violência doméstica de gênero ou contra crianças. Segundo ele, o uso desse método pode causar consequências graves, como a revitimização de mulheres.

À época, a ConJur apurou que cinco conselheiros acompanharam integralmente o voto do relator e uma conselheira o acompanhou parcialmente. O teor dos votos não é público porque, como o julgamento ainda não acabou, os julgadores podem alterar suas posições.

Freitas, em seu voto, disse que a prática é questionável do ponto de vista científico e que suas balizas são incompatíveis com o Judiciário brasileiro. Isso seria ainda mais grave com o respaldo do Estado, tendo em vista que a prática seria fomentada como política pública e financiada pelo contribuinte caso fosse regulamentada pelo CNJ.

“Isso é especialmente grave quando a gente pensa no encaminhamento de pessoas vítimas de crimes, especialmente mulheres vítimas de crime de gênero ou crianças”, argumentou Freitas. Segundo o conselheiro, o que ele busca com o voto é “dar um passo à frente” e evitar que as pessoas que tiveram seus direitos violados em crimes sejam novamente vitimizadas nos processos judiciais, como efeito comum da constelação familiar.

Clique aqui para ler o relatório

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