Opinião

Usuário x traficante: consequências do autocultivo da cannabis para fins medicinais

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29 de julho de 2024, 11h22

Na recente decisão plenária, o Supremo Tribunal Federal (STF) julgou procedente o Recurso Extraordinário (RE) nº 635.659 (Tema 506), buscando o reconhecimento da inconstitucionalidade do artigo 28 da Lei 11.343/2006, quanto ao porte de cannabis sativa para consumo próprio, se pode ou não ser considerado crime, e qual a quantidade da droga que diferenciará o usuário do traficante.

Ricardo Tolomelli/Divulgação

No caso concreto, durante uma revista, o acusado foi encontrado em posse de certa quantidade cannabis sativa, sendo-lhe imputada a prática do crime de porte de maconha para consumo pessoal, condenado, então, à pena de prestação de dois meses de serviços à comunidade.

Porém, diante das circunstâncias fáticas e de suas condições subjetivas, argumentou judicialmente que a pequena quantidade de cannabis sativa encontrada para consumo próprio não pode ser considerada crime, punível com prisão, não se aplicando também a pena de prestação de dois meses de serviços à comunidade.

Ainda no referido caso, de acordo com a Lei de Drogas, enquadrar-se como crime o porte de 3 gramas de cannabis sativa, por aplicação do artigo 28 da Lei, com a pena de prestação de serviços à comunidade, acabou por violar direitos fundamentais assegurados na Constituição, como a dignidade da pessoa humana, o princípio da intimidade e vida privada, a liberdade de dispor de seu próprio corpo e a saúde pública. Acresça o direito à igualdade à proporcionalidade, à razoabilidade e à equidade dos tratamentos policial e judicial nas questões relacionadas ao usuário de cannabis sativa, além do princípio da segurança jurídica.

Ocorre que após anos sem um posicionamento efetivo do Poder Legislativo, cuja ausência contribuiu para a falta de distinção prática entre usuário e traficante pelo Poder Judiciário, frequentemente levando usuários a serem considerados traficantes e a serem apenados com privação de liberdade, colaborando assim com o encarceramento em massa, o fortalecimento do crime organizado e o estado de coisas inconstitucional, o julgamento do caso paradigmático veio em boa hora, fixando um novo entendimento.

Qual seja, foi declarada a inconstitucionalidade, sem redução de texto, do artigo 28 da Lei 11.343/2006, de modo a afastar todo e qualquer efeito de natureza penal, ficando mantidas, no que couber, até o advento de legislação específica, as medidas ali previstas (incisos I e III).

Assim, o porte ou a posse individual de cannabis sativa, dentro daquele critério objetivo estabelecido, e sem outros fatores subjetivos, não é mais punível criminalmente pelo Estado brasileiro, tampouco já era considerado como maus antecedentes por reflexo em outras ações penais, conforme já sedimentado por entendimento jurisprudencial sobre o artigo 28 da Lei de Drogas (RHC — nº 178512 do STF).

Para fins pragmáticos, a tese de repercussão geral em análise fixou que:

i) não comete infração penal quem praticar algum dos verbos do tipo com o fim de consumo pessoal da cannabis sativa, sem prejuízo da ilicitude extrapenal, com a apreensão da droga e aplicação de sanções de advertência e medida educativa (artigo 28, I e III), a serem aplicadas pelo juízo em procedimento de natureza não penal;

ii) a autoridade policial apreenderá a cannabis sativa e notificará o autor para comparecer em juízo, não havendo lavratura de auto de prisão em flagrante ou de termo circunstanciado;

iii) nesses casos, haverá a presunção relativa de usuário para consumo pessoal para quem estiver objetivamente com até 40 gramas de cannabis sativa ou seis plantas fêmeas;

iv) embora poderá haver caracterização de tráfico de drogas, mesmo para quantidades inferiores a 40 gramas de cannabis sativa ou seis plantas fêmeas, desde que presentes outros elementos indicativos de mercancia, devendo, se assim, a autoridade policial justificar o afastamento desta presunção para consumo pessoal, proibido, ainda, a referência a critérios subjetivos arbitrários;

v) de todo modo, o juízo deverá avaliar as razões invocadas para o afastamento da presunção para consumo próprio quando receber o auto de prisão em flagrante;

vi) por outro lado, a apreensão de quantidades superiores aos limites fixados não impedirá o juízo de reconhecer a atipicidade, desde que haja prova da condição fim de usuário;

vii) alfim, apesar de todos os avanços mencionados no julgamento do STF, ainda prevalecerá nos casos concretos o viés policial determinante na caracterização de quem é ou não considerado traficante de drogas, com todos os preconceitos arraigados e críticas que não cabe nesse articulado explanar, de uma sociedade desigual e racista, à qual se submeterá o averiguado à persecução criminal.

De tal modo, mesmo com o avanço técnico no julgamento, ainda não há um filtro constitucional de garantias fundamentais para distinguir, de maneira epistêmica, se são usuários para consumo próprio ou traficantes na realidade prática. Portanto, por falta de amparo em um filtro constitucional, continuarão vigendo os vieses, preconceitos e racismo, que, carregamos como sociedade brasileira, especialmente no Judiciário, ratificando-se os estereótipos dos policiais em juízo (muitas vezes) sem condição de produção de prova negativa.

Produção do remédio caseiro

Para outras preocupações, têm-se o autocultivo da planta por pessoa física, para consumo próprio para tratamento de saúde, mediante prescrição médica, desde que esgotadas as vias ordinárias para o fornecimento do medicamento ou produto derivado de cannabis. Ainda será necessária a impetração de HC na modalidade preventiva, objetivando tutelar os direitos fundamentais para a produção do remédio caseiro.

Dessa forma, para evitar suspeita por parte dos agentes do Estado de que está sendo praticado um crime de tráfico, será autorizado ao impetrante o exercício de seu direito por decisão judicial fundamentada, impedindo-se futura investigação policial, invasão de domicílio ou a imputação direta da conduta de tráfico, desde que tenha sido estabelecida a relação custo-benefício entre acesso ao tratamento para fins terapêuticos por meio de auto cultivo do remédio caseiro derivado da planta cannabis sativa e a menor onerosidade com o tratamento, quer seja para o paciente, quer seja para o Estado, embasados em prova robusta.

Spacca

Afinal, de acordo com o artigo 66, da Lei de Drogas, “até que seja atualizada a terminologia da lista mencionada no preceito, denominam-se drogas substâncias entorpecentes, psicotrópicas, precursoras e outras sob controle especial, da Portaria SVS/MS nº 344, de 12 de maio de 1998″.

A Portaria, incluiu na lista ‘E’, lista de plantas que podem originar substâncias entorpecentes e/ou psicotrópicas, item 1, a “cannabis sativa L.”; na lista ‘F2′, substâncias psicotrópicas, item 28, o THC; na lista ‘C1′, lista das outras substâncias sujeitas a controle, item 22, o CBD (canabidiol).

Sob o enfoque sanitário, para fins de tratamento médico, a Resolução da Diretoria Colegiada, RDC nº 192, de 11/12/2017, da Agência de Vigilância Sanitária (Anvisa), incluiu na lista ‘A3’, medicamentos registrados que possuam em sua formulação derivados de cannabis sativa, em concentração de no máximo 30 mg de tetrahidrocannabinol (THC) por mililitro e 30 mg de canabidiol por mililitro; e, na lista ‘E’, adendo, item 7, que “fica permitida, excepcionalmente, a importação de produtos que possuam as substâncias canabidiol e/ou tetrahidrocannabinol (THC), quando realizada por pessoa física, para uso próprio, para tratamento de saúde, mediante prescrição médica, aplicando-se os mesmos requisitos estabelecidos pela Resolução da Diretoria Colegiada — RDC nº 17, de 6 de maio de 2015″.

Já a RDC nº 327, de 9/12/2019, da Anvisa, “dispõe sobre os procedimentos para a concessão da Autorização Sanitária para a fabricação e a importação, bem como estabelece requisitos para a comercialização, prescrição, a dispensação, o monitoramento e a fiscalização de produtos de cannabis para fins medicinais, e dá outras providências”.

Por sua vez, a RDC 654, de 24/03/2022, da Anvisa, em seu artigo 6.º, XXI, XXIII, XLIII, LI e LII, define: derivado vegetal; droga vegetal; matéria-prima vegetal; planta medicinal; e planta medicinal fresca.

Não obstante isso, a RDC nº 660, de 30/03/2022, da Anvisa, define autorização; intermediação da importação; e produto derivado de cannabis.

Anote-se que os medicamentos exigem registro (RDC 24/2011 ou RDC 26/2014), enquanto os produtos de cannabis exigem autorização sanitária, procedimentos administrativos próprios perante a Anvisa, para serem importados, produzidos ou comercializados em nosso país.

Por exemplo, quando o tratamento for o mais adequado à realidade do paciente, é viabilizado o fornecimento gratuito de medicamentos formulados de derivado vegetal à base de canabidiol, em associação com outras substâncias canabinoides, incluindo o tetrahidrocanabidiol, em caráter excepcional pelo Poder Executivo nas unidades de saúde pública conveniada ao Sistema Único de Saúde (SUS).

Rol da ANS não é taxativo

Vale destacar que o rol de doenças da Agência Nacional de Saúde não é taxativo. Porém, salvo nas hipóteses estabelecidas na lei, no contrato ou em norma regulamentar, o plano de saúde não é obrigado a custear medicamentos de uso domiciliar (Lei 9.656/1998, alterada pela Lei 14.454/2022), razão pela qual a requisição de medicamentos deve ser feita ao SUS.

Para tanto, será preciso: prescrição médica (receituário e relatório médicos), com menção expressa à CID (Classificação Internacional de Doenças), laudo médico atestando a melhora na qualidade de vida ocorrida com o uso do remédio caseiro; termo de consentimento assinado pelo paciente; autorização de importação da Anvisa; orçamento do custo do tratamento; auto declaração de estudo e experiência sobre as técnicas de cultivo e extração artesanal; negativa do Estado no fornecimento do tratamento adequado; comprovação idônea de renda do paciente.

Nada obstante, caso haja negativa do Estado no fornecimento destes medicamentos pela via administrativa e pela via judicial, é possível o tratamento domiciliar, a partir do auto cultivo do remédio caseiro; sendo recomendada, além dos documentos mencionados, a obtenção de laudo agronômico ou farmacológico, para fins de prova técnica.

Após o esgotamento das vias ordinárias, com a negativa do Estado ao fornecimento do tratamento adequado, munido da documentação, é possibilitada a impetração de HC preventivo, justificando-se a necessidade e a adequação da medida, para que não se cogite em eventual imputação de tráfico de drogas ou ilícito extrapenal o plantio de certa quantidade de plantas fêmeas, conforme quantidades e usos prescritos pelo médico especialista, e complementados por prova técnica.

É medida salutar para que o paciente tenha acesso ao tratamento médico eficiente e efetivo, desburocratizando o plantio de cannabis sativa para fins terapêuticos, por meio do auto cultivo, sem finalidade comercial, reduzindo-se, enfim, custos ao erário e aos cidadãos.

Importante ressaltar que a decisão do STF, que julgou procedente o RE 635.659 (Tema 506), reconheceu exclusivamente a inconstitucionalidade do artigo 28 da Lei de Drogas quanto ao porte de maconha ou a posse de seis plantas fêmeas para consumo próprio, determinando qual a quantidade da droga diferenciará o usuário do traficante. A posse de derivado vegetal, medicamento ou produto de cannabis, não gera infração ou crime, desde que registrado ou autorizado na Anvisa, e com a devida prescrição médica, na forma da RDC.

Sem o interesse de esgotar os temas, em julgamento do AREsp nº 1.624.564, a 3ª Seção do STJ, que sedimentou o entendimento das duas turmas que julgam os casos criminais, considerou que a importação de pequena quantidade de sementes de maconha não é suficiente para caracterização dos crimes previstos na Lei de Drogas, especialmente porque tais sementes não contêm o princípio ativo da droga, determinando o trancamento da ação penal; o que está em consonância com o Tema 506.

De modo que os medicamentos ou produtos derivados de cannabis podem ser fornecidos aos pacientes, por prescrição médica; aliado ao fato da possibilidade de se produzir seu próprio remédio caseiro, desde que, demonstrado, no caso concreto, que o tratamento eleito é o mais eficaz; exigem-se, portanto, a atuação de profissional da advocacia de confiança e especializado para proferir parecer técnico que resguarde seus interesses para que a produção particular domiciliar para tratamento terapêutico não seja coibida ou criminalizada pelo Estado.

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