Opinião

Importância do juiz das garantias diante de um modelo de acusatório profundo

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  • é mestre e doutor em Ciências Jurídico-Criminais pela Universidade de Coimbra (Portugal) membro do Ministério Público brasileiro (MP-PB) colaborador permanente da Revista Portuguesa de Ciência Criminal professor de Criminologia Política Criminal e Direito Processual Penal autor de artigos de doutrina e dos livros Programa de Política Criminal Orientado para a Vítima de Crime e O Direito Penal do Ambiente e a Tutela das Gerações Futuras e Juiz das Garantias: Fundamentos – Horizontes.

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29 de julho de 2024, 13h23

Como se sabe, embora a estruturação e o aprimoramento do sistema acusatório muito se devam à gênese do Ministério Público [1] como instituição autônoma, ela não constitui, isoladamente, garantia de que a formação do convencimento do julgador realizar-se-á de forma livre de vieses, enfim, imparcial.

Tomás de Torquemada, frade dominicano espanhol do século 15 e grande inquisidor

Com efeito, o comparecimento no mosaico processual de um órgão oficial de acusação prende-se à exigência de imparcialidade, uma vez que a outorga ao juiz de poderes próprios de parte, tais como poderes de investigação e de gestão probatória, comprometem o seu dever de equidistância. No entanto, ainda que se tenha uma instituição autônoma e independente, investida na função acusatória, o modelo acusatório de processo penal poderá se corromper e deteriorar, e a própria imparcialidade surpreender-se estiolada.

Assevere-se que quanto mais poderes se concentrarem nas mãos do juiz penal, tanto mais o pêndulo processual se deslocará para o flanco inquisitório, portanto em prejuízo do ideal ético, histórico e cultural de imparcialidade — rigorosamente fundante da Justiça enquanto valor inegociável em uma sociedade aberta e democrática.

Aduza-se que culturas jurídicas de matriz inquisitiva como a nossa são extremamente hábeis em encontrar mal traçadas trilhas hermenêuticas para, a despeito de formal divisão de funções, conceder ao juiz penal atribuições voltadas a prospectar arqueologicamente a verdade, amiúde conferindo, com essa finalidade, demasiados poderes ex officio ao julgador, adulterando desse feitio a própria natureza acusatória do processo penal.

Demais disso veja-se, à guisa de exemplo, que diversos dispositivos processuais, tais como os artigos 13, II, 156, I, 241, 242 e 385, do CPP, revelam-se, ictu oculi, frontalmente antagônicos ao cânone acusatório. O derradeiro deles, como se sabe, vai ao ponto de autorizar o juiz a condenar o réu “ainda que o Ministério Público tenha opinado pela absolvição, bem como reconhecer agravantes, embora nenhuma tenha sido alegada”. Ou seja, trata-se de uma enormidade inquisitorial, que se apresenta de todo inconciliável com o novel artigo 3º-A, do CPP.

Verdade seja dita, o impressionante artigo 385 autoriza o julgador a nada menos que condenar o réu ainda que o dominus lites, é dizer o titular da ação penal pública, tenha apresentado fundamentada manifestação favorável à absolvição do defendente. Isso não é tudo. É preciso ter clareza que o juiz que condena após o Ministério Público haver postulado, fundamentadamente, a absolvição do réu, assumindo, dessarte, o patrocínio de tese abandonada pelo próprio órgão da acusação, passa a envergar as vestes talares do Parquet, despindo-se da toga de magistrado, indumentária e missão que tacitamente abdica ao afastar-se do dever de imparcialidade. [2]

Juiz inquisidor

Cabe agora perquirir: quem acusa quando o parquet repele a própria proposição acusatória? A defesa? Uma mônada quântica? Decerto que não. A única resposta coerente com tal esdrúxula situação é: o juiz inquisidor. Diga-se, com muita ênfase que essa compreensão das coisas, isto é, da absoluta inadequação do artigo 385, CPP ao contemporâneo paradigma de processo penal, não deriva somente da orgânica estrutura acusatória de nosso sistema processual (artigo 3º–A, CPP). Ela também assenta, com igual intensidade, na própria ideia de imparcialidade e na sua vigorosa defesa — sem relativizações nem exceções —, posto que não se pode conceber juiz meio imparcial ou juiz parcialmente isento.

Spacca

Colocado em termos mais claros, a imparcialidade do juiz também reclama que o julgador não se converta, de inopino, em “acusador de plantão”, tal como se aguardasse, instalado em oculto banco de reservas, por um recuo do titular da ação penal.

Dito isso, não se concebe que em um sistema acusatório — que conta com implícita, ainda assim inequívoca chancela constitucional, e que agora se apresenta deveras reforçado com a codificação do instituto em estudo (juiz das garantias) —, possa o julgador, forte em vista da própria teleologia normativa, voltada, como se sabe, a uma tutela mais robusta da imparcialidade, envergar as vestes talares do Parquet, usurpando-lhe, de ofício, a pretensão acusatória, vindo, não sem a todos surpreender, a condenar o réu quando o próprio representante do Ministério Público, encerrada a instrução criminal, pugnara pela improcedência da peça acusatória.

Para mais, com isso tem-se prova irrefutável e fumegante (smoking gun), que separação formal de funções não garante, nem de perto nem de longe, a preservação do modelo acusatório, uma vez que, de modo muito astucioso (artigo 385, CPP), o juiz poderá resgatar, em plena instrução processual, a clava inquisitória.

Rigorosamente, aceitar-se que essa tramada teia de artigos, de induvidosa inspiração antiacusatorial e antidemocrática, alguns dos quais urdidos há quase um século, ainda se mantenha de pé diante da inteligência e da meridiana clareza do novel artigo 3º-A, CPP, é já reconhecimento, senão já, confissão de incondicional adesão à cultura inquisitorial que aqui ainda viceja como em nenhum outro lugar, e cujas profundas raízes precisam ser arrancadas sem hesitação ou condescendência.

Temos, portanto, como líquido que, malgrado ainda disseminados no leito normativo do CPP, eles já não vigoram. E, embora a Lei nº 13.964/19 inadvertidamente tenha olvidado de sepultá-los de modo expresso, já não devem funcionar qual “cadáveres adiados que ainda procriam” (Fernando Pessoa), dado que sua persistência em nosso ordenamento jurídico, mormente por concederem excessivos poderes de instrução probatória ao juiz penal, representa — não nos esquecendo da resiliente cultura inquisitorial que campeia nestas plagas — uma burla, melhor, uma falsificação do modelo acusatório, afinal perfilhado quer pela CF, quer pelo CPP, quer ainda pela própria arquitetônica do instituto do Juiz de garantias.

Relevância de um juiz das garantias

Faz-se, portanto, imprescindível depurar o sistema acusatório de destroços inquisitórios nitidamente incompatíveis com o imperativo de imparcialidade, assim como inconciliáveis com o arquétipo processual estabelecido tanto na Constituição, quanto no artigo 3º-A do CPP, e que, precisamente em vista de incompossibilidades sistêmicas e estruturantes, devem se perspectivar como tacitamente revogados (de modo integral ou parcial).

Indisputável, de novo, que separação meramente formal de poderes não se revela bastante a assegurar a higidez do paradigma acusatório, tampouco elimina os riscos de ressurgências inquisitórias sistemicamente deformantes. Daí a relevância da instituição da figura do juiz das garantias, assim como da previsão legal de impedimento do magistrado que atuou na etapa pré-processual para instruir e julgar o feito.

Igualmente relevantíssimo revela-se o disposto artigo 3º-C, § 3º, do CPP, precisamente para o efeito de abrandar o risco de contaminação cognitiva do juiz da instrução e julgamento, decorrente do conhecimento e contato com peças de natureza meramente informativa.

Meridiano que pretendeu o legislador que a fase de vertente inquisitorial não se refratasse sobre a sofisticada textura da etapa processual subsecutiva, contaminando assim a autenticidade e a originalidade acusatórias.

Sem embargo, pensamos que, ao julgar as ADIs 6.298, 6.299, 6.300 e 6.305-DF, o STF, quiçá ainda ideologicamente arraigado a um modelo acusatorial débil (separação meramente formal de funções), conservou a tradicional incorporação do inquérito à ação penal, ressuscitando, ou se se quiser, repristinando o modelo que ficou conhecido entre nós, eufemisticamente, como “misto”.

Bem, as poucas luzes do meu entendimento chegam-me para que eu possa concluir que a integral trasladação do corpus inquisitivo para o ventre processual, contamina-o sem remédio, logo não prestigia o paradigma acusatório forte (que não é sinônimo de puro) esculpido pelo legislador, antes o metamorfoseia em algo disfuncional, aviltando o imperativo de imparcialidade, que, aliás, a Lei 13.964/19 esforçara-se, aparentemente debalde, em prestigiar.

Encaminhando-nos para a conclusão, cumpre-nos constatar — algo resignadamente, mas sem perder a esperança na capacidade persuasora do diálogo diuturnamente tecido pela doutrina (científica), — que em culturas jurídicas de raiz fortemente autoritária como a nossa, a presença da penetrante sonda inquisitória na delicada textura acusatória, nomeadamente na etapa propriamente processual, revela-se duradoura, resiliente e assaz obstinada.

 


[1] Destacando que a gênese do Ministério Público representou uma categórica mudança “do princípio acusatório privado para uma concepção pública estatal deste princípio”, AMBOS, Kai; LIMA, Marcellus Polastri. O processo acusatório e a Vedação probatória perante as realidades alemã e brasileira, Porto Alegre: Livraria do Advogado ed., 2009, p. 33.

[2] Defendendo que “condenar sem pedido é abuso de autoridade”, LOPES Jr. Aury; DA ROSA, Alexandre Morais. “A ‘estrutura acusatória’ atacada pelo MSI – Movimento Sabotagem Inquisitória (CPP, art. 3º. – A, Lei n. 13.964/19) e a resistência acusatória”, in: Pacote Anticrime – Reformas Processuais, Florianópolis: EMais, 2020, pp. 45-60, p.48.

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  • é mestre e doutor em Ciências Jurídico-Criminais pela Universidade de Coimbra (Portugal), membro do Ministério Público brasileiro (MP-PB), colaborador permanente da Revista Portuguesa de Ciência Criminal, professor de Criminologia, Política Criminal e Direito Processual Penal, autor de artigos de doutrina e dos livros Programa de Política Criminal Orientado para a Vítima de Crime e O Direito Penal do Ambiente e a Tutela das Gerações Futuras e Juiz das Garantias: Fundamentos – Horizontes.

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