Programa 'Confia' da Receita: boa-fé e confiança na tributação
29 de julho de 2024, 15h24
Há uma “figurinha”, um “meme” que circula nos grupos de internet, na qual uma criança se joga de uma escada, esperando que um adulto a segure, mas ele inesperadamente se afasta e a criança cai no chão. No alto da imagem consta a palavra “confia”. Essa “figurinha”/”meme” ironiza o programa de conformidade cooperativa da Receita Federal, chamado, justamente, “Confia” e é utilizada quando o contribuinte se sente traído em sua confiança.

É uma crítica ácida à postura do poder público, com a mensagem implícita, mas clara, de que, ao mesmo tempo em que o poder público convida o contribuinte a confiar, ele não age de acordo com o que se espera em uma postura de boa-fé e trai a confiança do contribuinte que acabara de solicitar. Não é dirigida somente à Receita Federal, mas também ao Legislativo e ao Judiciário.
Infelizmente, são muitos os exemplos no sentido de os contribuintes terem razões para desconfiar do poder público.
Um deles é a conversão da Medida Provisória nº 1.202/2024 na Lei nº 14.873/2024. Ela limita a compensação tributária dos créditos decorrentes de decisões judiciais transitadas em julgado. Na exposição de motivos apresentada junto com a medida provisória, foi alegado forte incremento na compensação a partir do ano de 2019, especialmente em razão de créditos oriundos de ações judiciais quanto à exclusão do ICMS da base de cálculo do PIS/Cofins.
Todavia, já transcorreram vários anos desde a decisão do Supremo Tribunal Federal no sentido dessa exclusão. Logo, ainda que persistam valores pendentes de compensação, há que se convir que a maior parte do impacto na arrecadação já passou. Não só. Se o objetivo era suavizar os efeitos dessa decisão na arrecadação, o limite à compensação deveria ter sido restrito aos indébitos decorrentes da exclusão do ICMS da base de cálculo do PIS/Cofins. Não se justifica que o limite se aplique a qualquer compensação.
Bem se vê que há uma incoerência entre a medida tributária e sua justificativa. A incoerência corrói a confiança, afinal, não se confia naquele cujas ações não estão harmônicas com o discurso. Bem ao inverso, a incoerência indica a falta de postura consentânea com a boa-fé objetiva.

Outro exemplo é a recente adoção da Medida Provisória nº 1.227. De um momento para o outro foi vedada a utilização de saldos credores de PIS/Cofins para pagar débitos tributários federais em geral. Muitas empresas precisariam assumir empréstimos custosos inesperados, já outras sacrificariam os recursos disponíveis em caixa que seriam utilizados em projetos para pagar seus débitos tributários que antes seriam adimplidos com os saldos credores de PIS/Cofins.
Muito grave também é o fato de esse tratamento vir em sentido diametralmente oposto ao proposto, poucos dias antes, pelo mesmo Executivo federal no projeto de lei complementar para concretizar a reforma constitucional. Mais uma vez, a incoerência, sinalizando a falta de boa-fé objetiva e causando insegurança jurídica.
Após dias de intenso debate, o presidente do Congresso encaminhou mensagem à Presidência da República no sentido de ter sido sumariamente rejeitada parte da mencionada medida provisória.
Ficou, porém, a angústia de que, a qualquer momento, podem ser emitidas regras que afetam imediata e profundamente a dinâmica dos negócios jurídicos e a economia dos contribuintes, forçando-os à radical alteração de suas expectativas.
Eis dois exemplos da desconfiança com atos do Executivo e do Legislativo. No entanto, como observado, o mal-estar do contribuinte tem múltiplas origens, inclusive no Poder Judiciário. As decisões pela modulação de efeitos têm contribuído com esse triste cenário.
Estímulo à judicialização
Nos termos das normas vigentes, a modulação de efeitos deve se fundamentar no interesse social e na segurança jurídica. Curiosamente, as decisões que empregam a modulação têm sido causa de insegurança entre os contribuintes e estimulam a judicialização.
Com efeito, o Supremo e, mais recentemente, o STJ têm privilegiado os contribuintes que optaram por entrar em litígio com o poder público o quanto antes. O mesmo nível de proteção não é garantido àqueles que preferiram recolher os tributos conforme as normas vigentes e aguardaram para ter a posição final do Judiciário. Esses ficam desprotegidos frente à modulação e têm menores valores de indébito a restituir.
Daí a mensagem subliminar: os contribuintes não devem confiar no Judiciário para tratar igualmente aqueles que se submetem ao mesmo encargo tributário ilegal. É preferível sobrecarregarem os tribunais com ações, pois aguardar a manifestação definitiva do Judiciário poderá ter o gosto amargo de estar em situação desvantajosa frente a seu concorrente que, desconfiado, se apressou a iniciar um processo.
Os exemplos prosseguem e atestam o prejuízo ao próprio poder público.
Os programas de regularização tributária voltaram a ser frequentes. Oferecem vantagens aos contribuintes, como maior número de parcelas, descontos de multas e juros e, até, redução do principal. Contudo, é comum vermos ceticismo e resistência nos contribuintes para ingressarem nesses programas. Impera o receio em desistir de processos para obter as prometidas vantagens e depois ser excluído do programa pela administração fiscal com base em uma alegação sibilina ou por uma falha de reduzidíssima relevância.
Nesses casos, a postura da administração fiscal destoa da boa-fé objetiva. Em lugar de colaborar/cooperar com o contribuinte (ou seja, laborar junto, operar junto) [1], é quase tangível a intuição de que os contribuintes podem estar entrando em uma espécie de armadilha, em que a promessa de benefício é somente um falso atrativo, seguida de arrependimento.
O resultado é um autoboicote pela administração fiscal aos programas de regularização: desconfiados, temerosos com uma atuação desconforme com a boa-fé objetiva por parte do poder público, os contribuintes muitas vezes evitam esses programas. As perspectivas de arrecadação são frustradas e novos programas precisam oferecer descontos cada vez maiores para atrair os recalcitrantes.
Não há nada, em absoluto, diretamente em contrário ao programa Confia da Receita. Torcemos para seu sucesso e que seja um marco na aproximação entre o Poder Público e os contribuintes. Todavia, é imperioso ter presente que o relacionamento próximo e proveitoso não nasce de campanhas de marketing bem-feitas, mas da efetiva e constante atuação conforme com os parâmetros da boa-fé objetiva, de modo a despertar a confiança. Infelizmente, não é a percepção dos contribuintes.
[1] Essas ideias foram desenvolvidas em DONIAK JR., Jimir. A boa-fé objetiva nas relações jurídico-tributárias: os deveres do Poder Público. São Paulo: Quartier Latin, 2024.
Encontrou um erro? Avise nossa equipe!