Decreto 6.3541/24 da Prefeitura de São Paulo e regulamentação do MROSC
28 de julho de 2024, 8h00
Lei Federal nº 13.019, de 31 de julho de 2014, completa dez anos de promulgação. Embora a alteração substancial de seu conteúdo pela Lei Federal nº 13.204, de 14 de dezembro de 2015, reconhecer a existência decenal é um passo importante para a busca da aderência normativa, em especial no âmbito dos entes federativos estaduais e municipais.

Originalmente destinada ao regime jurídico das parcerias voluntárias com o propósito de instituição de uma “Lei de Fomento e Colaboração” para a transparência na aplicação de recursos públicos, a lei ganhou notoriedade e expansão como o Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil (MROSC), muito em virtude da agenda construída para a edição da norma, que contou com plataforma específica para este fim (1).
Em análise destas duas denominações da Lei Federal nº 13019/14 (Lei de Fomento e Colaboração versus MROSC), é possível constatar as duas principais vertentes normativas. De um lado, a previsão jurídica de regras para o fortalecimento das organizações da sociedade civil, por exemplo, com a definição de quais pessoas jurídicas se enquadram neste conjunto, de regras de governança estatutária, de sustentabilidade institucional, de aperfeiçoamento das certificações e de benefícios fiscais.
De outro lado, de regras de contratualização mediante parcerias entre o Poder Público e as organizações da sociedade civil, instituindo os instrumentos jurídicos: termo de colaboração, termo de fomento e acordo de cooperação, bem como prevendo o regime jurídico lhes aplicável desde o planejamento, a seleção, a execução e o controle da parceria.
A questão que se coloca é conciliar estas duas vertentes, pois as duas precisam andar juntas para que as finalidades de promover a regulação das organizações da sociedade civil e de conferir segurança jurídica para a celebração de parcerias sejam concretamente implementadas e enraizadas.
O que depende do uso do poder regulamentar pela Administração Pública, pois a Lei Federal nº 13019/14, apesar de prever normas gerais, exige o detalhamento para sua fiel execução, sobretudo ao expressamente prever dispositivos que dependem de regulamentação, como o procedimento simplificado para prestação de contas (artigo 63, §3°) (2).
Neste ponto, é importante abrir parênteses para a crítica existente sobre o caráter universal e nacional do MROSC. A crítica pondera características que podem esclarecer a dificuldade de assimilação completa e integral da norma pelas organizações da sociedade civil e pelo próprio Poder Público, tanto agente estatal regulador, executor quanto controlador.
A começar pelo âmbito de aplicação, para Rafael Carvalho Rezende Oliveira seguindo as lições de Diogo Figueiredo Moreira Neto, o artigo 22 da Constituição prevê a competência da União para legislar sobre contratos e não sobre convênios e instrumentos congêneres, sustentando a autonomia federativa de cada ente para a previsão normativa da matéria regulada pela Lei nº 13019/14, que exige, na visão do jurista, interpretação em conformidade constitucional para ser considerada norma geral (3).
Já para Thiago Marrara, o MROSC possui aplicabilidade geral aos entes federativos e tem relevância na criação, segundo o jurista, de novo ente de colaboração por intermédio das organizações da sociedade civil (OSC), ao lado das qualificações de Organizações Sociais (OS) e de Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (Oscip) (4).
Em paralelo, Natasha Schmitt Caccia Salinas desenvolveu uma pesquisa sobre o espaço regulatório do Terceiro Setor em que discorreu sobre a era do MROSC (5). A pesquisadora aponta que a lei teve a pretensão de ter um alcance nacional e abrangente, com o destaque para o conceito de organização da sociedade civil, compreendendo as organizações religiosas e as cooperativas, que prestem serviços na área social, bem como o destaque nos incentivos fiscais de doações por pessoas jurídicas, o que extinguiu o título de Utilidade Pública em nível federal.
Mas a professora e pesquisadora expõe que o MROSC perdeu parte de seu alcance amplo e universal por ter excluído do seu âmbito de aplicação os contratos de gestão com as OS, os termos de parceria com as Oscip, os convênios para os serviços de saúde e os termos de compromisso cultural.
A divergência no âmbito de aplicabilidade da norma indica mais uma vez a necessidade do uso do poder regulamentar pela Administração Pública para que o MROSC ganhe efetividade com a perpetuação de suas diretrizes e bases principiológicas. Mas a regulamentação ainda é tímida, especialmente em municípios.
Uma pesquisa sobre as diferentes regulamentações subnacionais por decretos estaduais e por decretos municipais de capitais constatou que aproximadamente 70% dos Estados-membros regulamentaram a matéria, enquanto menos de 50% de capitais editaram decretos (6).
A pesquisa ainda indicou que o regulamento editado em nível federal pelo Decreto nº 8726, de 27 de abril de 2016, estabelece parâmetros estruturais, pré-contratuais, contratuais e pós-contratuais para as parcerias. No entanto, quanto às regulamentações subnacionais, estruturalmente, observou-se a aderência aos programas de capacitação, porém, a atribuição de monitoramento e aperfeiçoamento está regulada de forma difusa e fragmentada e não houve previsão de envio de informações à plataforma gerenciada pelo Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) sobre o Mapa das OSC.
Em parâmetros pré-contratuais, a regulamentação do PMI (Procedimento de Manifestação de Interesse) e da atuação em rede está prevista na maioria dos regulamentos, mas não houve a investigação se há efetiva utilização. Por fim, em aspectos contratuais e pré-contratuais, um número expressivo de regulamentos incompatíveis com o MROSC foi identificado, com sobrecarga de deveres às organizações da sociedade civil e dificuldade de absorção da prestação de contas de resultados (6).
Percebe-se que o MROSC ainda não alcançou, em tese, uma instância integrativa de regulação e um dos motivos pode ser a necessidade do manuseio regulamentar, principalmente por parte dos Municípios, conforme evidenciado nos anos que sucederam à promulgação da norma.
É preciso ressaltar também que os governos federais de Michel Temer e de Jair Bolsonaro atravancaram o processo regulatório. Sobre o governo Michel Temer, Gustavo Justino de Oliveira e Carolina Filipini Ferreira teceram críticas sobre a ausência do Terceiro Setor na agenda de políticas e de reformas do respectivo governo (7).
Em relação ao processo histórico, perpassando pelo governo Jair Bolsonaro, Paula Raccanello Storto, Laís de Figueirêdo Lopes e Daniel Chierighini Barbosa conceituam e evidenciam a criminalização burocrática das organizações da sociedade civil, com a identificação da intensificação de intimidação de movimentos sociais, de defensores de direitos humanos e das organizações da sociedade civil (8).
Porém, ao que parece e até mesmo acompanhando a mudança de governo federal, verifica-se a retomada regulatória do MROSC com o funcionamento do Conselho Nacional de Fomento e Colaboração (Confoco). Ainda, recentemente, o regulamento federal sofreu alterações inovadoras pelo Decreto Federal nº 11.948, de 12 de março de 2024, com destaque para maior clareza e linguagem simples nos conceitos de termo de colaboração e de termo de fomento, a previsão de critérios qualitativos de julgamento (inovação, criatividade, territorialidade, sustentabilidade), aumento de vigência de parcerias para dez anos, o que demonstra o alinhamento com a efetivação de políticas públicas.
Destaca-se também a ênfase do consensualismo com a previsão de detalhamento do relatório técnico de monitoramento e avaliação com oportunidade de saneamento de irregularidade e de consideração de justificativas pela organização da sociedade civil, bem como com a previsão da celebração de termo de ajustamento de conduta com organização da sociedade civil, que tenha executado a parceria em desacordo com o plano de trabalho.
Nesse sentido, verifica-se que o MROSC ganha uma retomada regulatória, inclusive, no contexto de reforma administrativa federal. Cita-se a nota técnica elaborada pelo Ipea em que apresenta subsídios para uma reforma administrativa voltada à cidadania com a especificação de proposta para as parcerias com o setor não estatal mediante a retomada da implementação da Lei nº 13019/14 (9).
Regulamento do MROSC pela Prefeitura de SP
Uma das capitais que editou regulamento do MROSC foi o município de São Paulo por meio do Decreto nº 57.575, de 29 de dezembro de 2016. Naquela ocasião, a norma municipal seguiu os parâmetros substanciais do regulamento federal com a previsão de governança pública para o planejamento, o monitoramento e a divulgação das parcerias, além do estabelecimento do processo de seleção por meio de chamamento público, do PMI e da atuação em rede.
O regulamento municipal também seguiu a previsão das regras de execução de despesas e a prestação de contas voltada aos resultados, contudo, mantendo-se a mesma ênfase para a análise da execução de despesa com o objeto da parceria.
Em tempos atuais, quanto à alteração do regulamento municipal em comparação à modificação do regulamento federal, verifica-se que não houve uma adesão suficientemente espelhada, de modo que não acompanhou às inovações, tampouco a tendência regulatória do consensualismo.
Seguindo a retomada regulatória federal do MROSC, o regulamento municipal sofreu modificações pelo Decreto nº 63.541, de 27 de junho de 2024. Uma alteração importante foi a atribuição à Secretaria Municipal de Gestão para o desenvolvimento do sistema de cadastramento e de divulgação, bem como para o aperfeiçoamento e a ampliação da capacitação, alterando-se o artigo 5º do regulamento.
Outro destaque é quanto ao reforço na utilização do acordo de cooperação, conforme a inclusão do parágrafo único ao artigo 14 do decreto municipal, bem como o estabelecimento de orientações para as parcerias, que manuseiam emendas parlamentares, nos termos do artigo 30-A. Além disso, houve a determinação de que a Secretaria Municipal da Fazenda estabelecerá diretrizes para os recursos recebidos pelas organizações da sociedade civil.
O Decreto municipal nº 63.541/2024 prevê alterações ainda nos prazos das parcerias e na aplicação de penalidades.
Em relação aos prazos, a modificação acompanha a alteração federal de que as parcerias precisam ter prazo determinado, com permissão de prorrogação até 10 (dez) anos, em consonância com os planos plurianuais de governo, que pela reeleição podem se prolongar. Mas o decreto municipal fez uma previsão específica para permitir uma prorrogação excepcional e sucessiva da parceria para o limite máximo de 20 (vinte) anos, o que chama a atenção, pois pode impedir a regra geral do chamamento público para igualdade de oportunidades para demais organizações da sociedade civil e engessar planos de governo.
Derradeiramente, o regulamento municipal foi alterado para a inserção de parâmetros decisórios para a aplicação de penalidades de declaração de inidoneidade, de suspensão do direito de participar de chamamento público e de impedimento para celebrar parcerias com o município, nos termos do §3º do artigo 64 e para a determinação das autoridades competentes para a aplicação das sanções, nos termos do inciso VI, do artigo 4º.
O estabelecimento de parâmetros aperfeiçoa o processo decisório. Ocorre que as inovações do regulamento federal neste tópico avançaram na governança pública com o ampliamento do consensualismo nas parcerias, o que não foi absorvido pelo decreto municipal, apesar de ser uma tendência regulatória.
Essas foram as principais alterações promovidas pelo Decreto nº 63.541/2024 no regulamento do MROSC no Município de São Paulo, percebendo-se a baixa adesão às regras previstas na alteração que foi realizada no regulamento federal e, ainda, sem atender as demandas já exigidas pela sociedade civil, como a revogação da declaração de utilidade pública municipal (10). Por mais que esta revogação dependa de lei ao invés de decreto, é possível observar que o espírito do MROSC precisa ganhar maior absorção municipal.
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(1) LOPES, Laís de Figueirêdo; SANTOS, Bianca dos; ROLNIK, Iara (orgs.). Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil: a construção da agenda no Governo Federal – 2011 a 2014. Brasília: Presidência da República, 2014. 240pp.
(2) Os outros dispositivos que dependem de regulamento são: Divulgação de campanhas publicitárias e programações desenvolvidos por organizações da sociedade civil na execução de parcerias (art. 14); criação do Conselho de Fomento e Colaboração (art. 15, caput e §1º); Prazos e regras para o Procedimento de Manifestação de Interesse Social (art. 20, parágrafo único); Verificação da regularidade jurídica e fiscal de organização executante de termo de atuação em rede (art. 35-A, parágrafo único, I); Procedimento simplificado de prestação de contas (art. 63, §3°); Registro em plataforma eletrônica de rejeições de prestação de contas com as impropriedades (art. 69, §6º); Sigilo das informações de programa de proteção a pessoas ameaçadas ou em situação que possa comprometer a sua segurança (art. 87).
(3) OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Curso de direito administrativo. 10ª ed., rev., atual. e reform. Rio de Janeiro: Método, 2022, p. 224/225.
(4) MARRARA, Thiago. Manual do direito administrativo: fundamentos, fontes, princípios, organização e agentes – Volume 1. 3 ed. Indaiatuba, SP: Editora Foco, 2022, p. 199.
(5) SALINAS, Natasha Schmitt Caccia. Parcerias entre Estado e organizações da sociedade civil: análise do seu espaço regulatório. Rev. Fac. Direito UFMG, Belo Horizonte, n. 75, pp. 395-417, jul./dez. 2019. Disponível em < https://revista.direito.ufmg.br/index.php/revista/article/view/2045> Acesso em 24 jul. 2024.
(6) Marco regulatório das organizações da sociedade civil: avanços e desafios / Alexandre Ribeiro Leichsenring… [et al.]; coordenação Aline Gonçalves de Souza, Aline Viotto, Thiago Donnini. 1 ed. São Paulo: GIFE: FGV Direito SP, 2020. Disponível em < https://plataformaosc.org.br/ebook-marco-regulatorio-das-organizac%cc%a7o%cc%83es-da-sociedade-civil-avanc%cc%a7os-e-desafios/> Acesso em 24 jul. 2024.
(7) OLIVEIRA, Gustavo Henrique; FERREIRA, Carolina Filipini. Terceiro Setor e o Governo Temer: quais os rumos do Terceiro Setor em um cenário de instabilidade política e de combate à corrupção? In: OLIVEIRA, Gustavo Justino. Direito Administrativo pragmático. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2020, p. 79/84.
(8) STORTO, Paula Raccanello; LOPES, Laís de Figueirêdo; BARBOSA, Daniel Chierighini. Criminalização burocrática das organizações da sociedade civil. Brasília, DF: Cáritas Brasileira, 2023. Disponível em < https://plataformaosc.org.br/criminaliza-burocratica-das-organizacoes-da-sociedade-civil/> Acesso em 24 jul. 2024.
(9) GOMIDE, Alexandre; PECI, Alketa; LOPEZ, Felix; GAETANI, Francisco; LOTTA, Gabriela; JR. CARDOSO, José Celso. Subsídios para uma reforma administrativa voltada à cidadania. 1ª edição. Brasília: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, 2022.
(10) Ver em <https://jornaldaadvocacia.oabsp.org.br/noticias/comissao-do-terceiro-setor-divulga-nota-tecnica-de-revogacao-da-declaracao-de-utilidade-publica/>
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