Consultor Jurídico

Tragédia no RS: alteração dos contratos de engenharia acima dos limites da Lei 14.133

27 de julho de 2024, 12h20

Por Murillo Preve Cardoso de Oliveira

imprimir

O poder Executivo promulgou, em 17 de maio de 2024, a Medida Provisória (MP) nº 1221/24. O objetivo é simplificar os procedimentos de licitações públicas e a celebração de contratos administrativos, buscando acelerar esses processos e proporcionar segurança jurídica aos administradores durante crises públicas. Essa medida provisória faz parte de um conjunto de medidas destinadas a auxiliar na reconstrução do Rio Grande do Sul após as enchentes recentes.

Concresul

De forma geral, a medida provisória estabeleceu requisitos menos rigorosos que os previstos na Lei de Licitações e Contratos no que tange ao processo de compra e contratações públicas. Os contratos realizados sob as diretrizes desta MP terão um prazo inicial de um ano, com a possibilidade de serem prorrogados por período semelhante.

Neste artigo, analisa-se mais especificadamente a previsão do seu artigo 16, qual traz a possibilidade de alteração dos contratos já firmados como uma forma de atender à situação de calamidade pública enfrentada pelo Rio Grande do Sul, inclusive permitindo que essas alterações ultrapassassem os limites habituais (previstos na Lei de Licitações e Contratos Administrativos nacional). É da íntegra da referida previsão:

Art. 16. Os contratos em execução na data de publicação do ato autorizativo específico de que trata o inciso II do § 1º do art. 1º desta Medida Provisória poderão ser alterados para enfrentamento das situações de calamidade de que trata o art. 1º:

I – mediante justificativa;

II – desde que haja a concordância do contratado;

III – em percentual superior aos limites previstos no § 1º do art. 65 da Lei nº 8.666, de 1993, e no art. 125 da Lei nº 14.133, de 2021 [1], limitado o acréscimo a cem por cento do valor inicialmente pactuado; e

IV – desde que não transfigure o objeto da contratação.

Por sua vez, o Parecer Jurídico Referencial nº 20.680/24, emitido pela Procuradoria Geral do Rio Grande do Sul, e que detalhou as nuances interpretativas da referida medida provisória, trouxe o seguinte quanto à previsão acima:

PARECER JURÍDICO REFERENCIAL. MEDIDA PROVISÓRIA No 1.221/2024. REGIME JURÍDICO EXCEPCIONAL PARA A AQUISIÇÃO DE BENS E A CONTRATAÇÃO DE OBRAS E DE SERVIÇOS, INCLUSIVE DE ENGENHARIA. ENFRENTAMENTO DE IMPACTOS DECORRENTES DE ESTADO DE CALAMIDADE PÚBLICA. […] 8. A prorrogação adicional dos contratos por um ano aplica-se aos contratos administrativos cuja vigência se encerre no período de calamidade, independentemente da relação direta de seu objeto com as necessidades decorrentes do estado de calamidade pública, permitindo: (i) que a Administração Pública concentre seus esforços nas contratações voltadas ao enfrentamento das situações urgentes decorrentes da calamidade pública; e (ii) caso tenha relação com as necessidades decorrentes da calamidade, a manutenção de contratos administrativos celebrados em contextos de normalidade, presumindo-se que em sua formação houve maior possibilidade de cumprimento dos requisitos regulares, inclusive com a realização de licitação. [….] Embora o referido Decreto Legislativo tenha sido publicado em 07 de maio de 2024, não há restrição para que os contratos com fundamento na Medida Provisória no 1.221/2024 alcancem fatos que lhe sejam anteriores, desde que inseridos no contexto de calamidade pública de que trata o citado art. 19 da norma. Este dispositivo, ao fazer referência à aplicação imediata do texto normativo ao evento de calamidade pública reconhecido pelo Decreto Legislativo no 36/2024, aliado ao contexto histórico e à finalidade da criação da norma especial, não deixa dúvidas a respeito da possibilidade de que os contratos administrativos firmados sob a égide do regime excepcional abarquem o atendimento de toda e qualquer necessidade urgente verificada desde o início dos eventos climáticos. […] Ainda, a Medida Provisória permite a alteração dos contratos vigentes, durante o período da calamidade pública e desde que a justificativa esteja relacionada ao enfrentamento de suas consequências, até o limite de 100% (cem por cento) de seu valor inicial atualizado, sendo, nestes casos, necessária a concordância do contratado, além de vedada a transfiguração do objeto contratual […] Desse modo, os contratos firmados anteriormente à declaração da calamidade poderão sofrer alterações quantitativas e qualitativas a fim de adequar o objeto contratual (já em execução) ao cenário alterado em consequência dos eventos que deram origem ao estado de calamidade pública, desde que devidamente justificadas e mediante anuência do contratado, em percentual superior ao ordinariamente previsto pela Lei Federal no 14.133/2021.

Tragédia possibilitou alterações

Como se verifica, em razão do estado de calamidade pública enfrentada pelo Rio Grande do Sul, alargou-se as possibilidades de alterações contratuais.

Todavia, afora a necessidade de correlação do contrato com o enfrentamento da calamidade posta, e da necessidade de justificativa e concordância do contratado, a MP prevê como uma limitação adicional à alteração contratual excepcional, a de que não haja, nas linhas do seu inciso IV, a transfiguração do objeto.

Spacca

A transfiguração de um contrato administrativo ocorre quando as modificações realizadas nas alterações contratuais transformam o objeto inicial do contrato. Em outras palavras, trata-se de alterar o contrato a tal ponto que seu objeto original se converte em algo distinto, ou seja, em um novo objeto.

Nos contratos de engenharia e no contexto aqui analisado, eventual configuração da transfiguração do objeto pode-se dar quando, em virtude da situação de calamidade pública e dos serviços que precisarão ser prestados, ocorre uma severa mudança técnica na execução do contrato.

Para essa análise, utiliza-se como referência o acórdão originado do Relatório de Auditoria nº 15762022011.481/2015-3 [2], julgado pelo TCU. Na ocasião, o TCU analisava questões relativas a obras de canalização e drenagem de um rio, especificamente as alterações efetuadas no contrato durante sua execução. A administração contratante decidiu modificar o contrato, em vez de promover uma nova licitação ou contratação, com os seguintes argumentos resumidos:

  • a) impossível prever e mensurar as alterações necessárias que se mostraram necessárias na fase preparatória da licitação;
  • b) “o surgimento de novos elementos (…) somente ficaram evidenciados com o efetivo início e transcorrer dos trabalhos, submetidos à permanente avaliação técnica e operacional, demandando alterações nos serviços anteriormente orçados”;
  • c) para a “aprovação da alteração da metodologia, foram levados em consideração, dentre outros aspectos, a vantajosidade da modificação; a maior segurança dos operários; a otimização do cronograma; a redução da quantidade de trabalhadores dentro da calha do rio; a manutenção das condições de qualificação exigidas inicialmente no edital de licitação”.
  • d) a avaliação submetida ao Consórcio Ecobrape (empresa supervisora da obra) e aprovada dos gestores do Inea concluiu-se que “o valor de uma nova licitação para a execução das obras que seriam objeto da proposta de rerratificação apresentados pelo Consórcio seria mais oneroso para esta instituição [Inea] do que a viabilização da continuidade do empreendimento”; […]

Transfiguração do objeto do contrato

Como se pode verificar, as justificativas apresentadas pelo contratante para promover as alterações contratuais, em vez de iniciar um novo processo de contratação, baseavam-se em argumentos relacionados à vantajosidade econômica e à economia de tempo. No entanto, o TCU concluiu que as alterações contratuais resultaram em uma transfiguração do objeto do contrato. Do acórdão, extraímos os seguintes pontos:

As exigências de habilitação técnica do certame não se encontram presentes nos autos, mas é muito provável que os atestados exigidos para qualificação técnica dos licitantes se refiram também a serviços que não foram executados na obra, o que seria mais um fato a demonstrar a modificação do objeto licitado. […] Voto:

[…]  Verificou-se que o Contrato 9/2013-Inea passou por diversas alterações quantitativas e qualitativas em relação ao escopo dos serviços que serviram de base para a Concorrência Nacional 18/2012. Entendeu a SeinfraUrbana e o Ministro Relator do processo que as alterações nas metodologias de execução das obras desvirtuaram os termos e condições pactuados inicialmente. Conforme já brevemente historiado, o Contrato 09/2013-Inea passou por significativas alterações de serviços e valores em relação aos originalmente previstos. As trocas se referem principalmente à solução de engenharia adotada para execução das estruturas de contenção utilizadas para canalização do mencionado rio. O método construtivo constante do projeto básico que subsidiou a licitação previa a realização de cortinas atirantadas executadas em concreto armado moldado in loco. Posteriormente, porém, a metodologia adotada para confecção dessas cortinas foi substituída para estruturas pré-moldadas realizadas em local diverso, para então serem transportadas ao local de sua aplicação. Essa alteração na solução de engenharia – aqui brevemente apresentada, mas extensamente detalhada nos autos (peça 60, p. 12-14; e peça 162, p. 4-7) – implicou na modificação de diversos serviços originalmente contidos na planilha orçamentária contratual (peça 60). […]

A causa das alterações parece haver sido o fato de o projeto básico não estar aderente à realidade da obra no momento de sua execução. Digo dessa forma, pois as manifestações da SeinfraUrbana e do Relator a quo são no sentido de que não está cabalmente caracterizada a necessidade e a extensão das modificações levadas a cabo. Então, segundo a equipe de auditoria, não se pode afirmar que todas as alterações decorreram de falhas no projeto básico, tampouco que a manutenção do contrato seria a única solução possível.

A modificação ocorrida na obra executada – em seu projeto e em sua planilha orçamentária – é de tal monta que configura transfiguração do objeto licitado. É fato que a obra executada continuou a ser a canalização do Rio Bengalas, mas com solução de engenharia completamente diferente daquela submetida ao crivo concorrencial da licitação. A alteração de projetos básicos é assunto já bastante debatido nesta Corte, sendo inclusive objeto de súmula:

Súmula TCU nº 261: Em licitações de obras e serviços de engenharia, é necessária a elaboração de projeto básico adequado e atualizado, assim considerado aquele aprovado com todos os elementos descritos no art. 6º, inciso IX, da Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993, constituindo prática ilegal a revisão de projeto básico ou a elaboração de projeto executivo que transfigurem o objeto originalmente contratado em outro de natureza e propósito diversos. (Grifei).

Friso que o conceito de objeto contratual não está somente atrelado à descrição do empreendimento, mas ao conjunto de serviços e aos requisitos exigidos dos licitantes para participar do certame. […] Mesmo por hipótese, considerando uma real necessidade de alteração do projeto básico licitado, tal premissa não se mostra como condição sine qua non para a manutenção do contrato firmado em detrimento da realização de nova licitação, ainda mais quando se verifica a transfiguração do objeto empreendida pelas alterações.

Como se verifica no acórdão mencionado, as principais alterações ocorreram na metodologia de execução das obras. Inicialmente, o projeto básico previa a construção de cortinas atirantadas em concreto armado moldado in loco. Posteriormente, essa metodologia foi alterada para a utilização de estruturas pré-moldadas, confeccionadas em local diverso e transportadas para o local da obra.

Na visão do TCU, essa situação levou à transfiguração do objeto licitado, pois essas mudanças no modelo de execução foram extremamente significativas. O acórdão deixa claro que, apesar de a obra continuada ser a mesma, a solução de engenharia foi completamente diferente da prevista inicialmente.

Este exemplo destaca um dos principais cuidados que tanto a administração quanto os particulares devem observar ao aditar e modificar contratos de engenharia diante da calamidade pública no Rio Grande do Sul. É crucial verificar se as condições causadas pelo desastre natural, resultante das intensas chuvas que atingiram o estado, não requerem serviços que demandem métodos substancialmente diferentes dos previstos nos contratos estabelecidos sob circunstâncias normais, ao ponto de alterar completamente o objeto contratual.

Em resumo, tanto a administração quanto os particulares devem garantir que as soluções de engenharia e os métodos empregados na execução de serviços durante a calamidade pública não se desviem significativamente daqueles utilizados em condições normais. É importante notar que o Tribunal de Contas da União tem outros precedentes em julgamentos que reforçam essa orientação.

Considerando que o objeto do contrato distingue-se em natureza e dimensão, tem-se a natureza sempre intangível, tanto nas alterações quantitativas quanto nas qualitativas. Não se pode transformar a aquisição de bicicletas em compra de aviões, ou a prestação de serviços de marcenaria em serralheria. […] As alterações qualitativas, por sua vez, decorrem de modificações necessárias ou convenientes nas quantidades de obras ou serviços sem, entretanto, implicarem mudanças no objeto contratual, seja em natureza ou dimensão. [3]

Portanto, em conclusão, é indiscutível que a Medida Provisória nº 1221/24 estabeleceu, acertadamente, condições mais flexíveis para alterações contratuais. No entanto, é crucial que, para evitar o uso inadequado da MP, as modificações nos contratos sejam feitas sem que o objeto original seja transfigurado. Em situações onde tais mudanças sejam necessárias e devidamente justificadas, a administração deve optar pela celebração de novos contratos que se ajustem corretamente ao novo contexto, em vez de simplesmente alterar os existentes.


[1] Art. 125. Nas alterações unilaterais a que se refere o inciso I do caput do art. 124 desta Lei, o contratado será obrigado a aceitar, nas mesmas condições contratuais, acréscimos ou supressões de até 25% (vinte e cinco por cento) do valor inicial atualizado do contrato que se fizerem nas obras, nos serviços ou nas compras, e, no caso de reforma de edifício ou de equipamento, o limite para os acréscimos será de 50% (cinquenta por cento).

[2] TCU – RA: 15762022 011.481/2015-3, Relator: JORGE OLIVEIRA, Data de Julgamento: 06/07/2022.

[3] TCU, acórdão nº Acórdão AC-2052-31/16-P.