Opinião

Reforma e mercado de geração de energia: entre alta tributação e impactos ao consumidor

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27 de julho de 2024, 17h17

Transformações profundas no sistema tributário podem redefinir os rumos de um país, especialmente nos que tange os investimentos externos, o mercado nacional e o consumidor final. No Brasil, as mudanças propostas no Projeto de Lei Complementar 68/2024, ainda em tramitação, que define os termos da reforma tributária, visam simplificar e modernizar o complexo sistema de tributação, impactando diretamente diversos setores da economia, incluindo o crucial setor de geração de energia.

Marcello Casal Jr/Agência Brasil

As novas disposições tributárias tratam da implementação do IBS (Imposto sobre Bens e Serviços) e do CBS (Contribuição sobre Bens e Serviços), além do Imposto Seletivo, prometendo alterar significativamente a dinâmica financeira e operacional das empresas de energia, refletindo-se tanto na estrutura de custos quanto na competitividade do setor.

Com uma transição de modelo datada para até 2035, o IBS tem natureza estadual e municipal, com alíquota provisionada em 17,7%; enquanto o CBS tem natureza federal, com alíquota estimada em 8,8%. Em que pese a estruturação do modelo ser fundada em ideais de justiça, isonomia e simplificação do atual sistema tributário, indaga-se se efetivamente trará benefícios ao mercado e ao consumidor, especialmente no mercado de geração de energia.

Possibilidade de ônus tributário, equidade e cashback

Sendo considerado um dos fatos geradores dos referidos impostos, conforme previsto no artigo 10, inciso III, alínea “a” do PLP 68/2024, a energia elétrica é de suma importância e essencialidade à vida em sociedade, fato que já ensejou no seu reconhecimento pela LC 194/22. Em outras palavras, dada sua relevância social, seu uso e potenciais alterações de alíquotas poderiam ensejar em prejuízos ao contribuinte que, indiretamente, passaria a arcar com o ônus tributário de eventuais majorações.

Fato é que a redação do PLP 68/2024, em seus artigos 100 a 113, vai em conformidade com a equidade almejada no projeto, especialmente no que tange à devolução de parcela ou totalidade dos tributos às pessoas físicas, destinada às famílias que possuem renda per capita de até meio salário-mínimo, integrantes do Cadastro Único, tendo como base o seu consumo. Importante mencionar que a lei prevê um valor mínimo a ser devolvido, sendo viável os entes federativos fixarem valores acima dos patamares previstos, via lei específica. O nomeado cashback traz a possibilidade de devolução nos seguintes moldes:

a. 100% para CBS e 20%, no caso do gás de cozinha;

b. 100% para a CBS e 20% para o IBS, no caso de energia elétrica, água e esgoto; e

c. 20% para a CBS e para o IBS, nos demais casos.

O cálculo para tanto deve ser realizado mediante o consumo das famílias, por meio de documentos fiscais, trazendo cidadania fiscal, havendo a possibilidade, inclusive, de cálculo simplificado para populações que residem em locais com dificuldades operacionais dessa via de devolução. De igual modo, a previsão de imunidade quanto ao Imposto Seletivo sobre operações com energia elétrica, conforme o artigo 398, trazem mais benefícios ao consumidor final.

Ocorre que o mercado de energia encontra complexidade em sua execução, e facetas múltiplas que culminam em variáveis importantes. Exemplo disso é a ampla gama de tipos de consumidores, podendo ser desde o mercado livre até o mercado regulado, com especificidades únicas. E a própria execução do cashback depende da edição de lei complementar para uma efetiva aplicação, para que de fato produza efeitos benéficos tal como propõe à população de baixa renda.

Spacca

Vale lembrar que hoje, no Brasil, tem-se uma política semelhante, de forma que a implementação do cashback neste caso não pode significar malefícios aos descontos já aplicados outrora às famílias. A Tarifa Social de Energia Elétrica (TSEE) se destina aos consumidores que possuem como renda até meio salário-mínimo por pessoa e são inscritos no CadÚnico; e se estende até três salários-mínimos para famílias com pessoas com deficiência (física, motora, auditiva, visual, intelectual ou múltipla), dependente de aparelhos que consumam energia elétrica.

Criada em 2002 pela Lei n° 10.438, prevê benefícios que podem chegar a 100% de desconto a depender de um consumo mensal até 220 kilowatts/hora [1]. Assim, a inclusão de um novo sistema de creditamento via cashback não pode ser objeto de alterações nos benefícios outrora concedidos ao consumidor final.

Outro fator importante que deve ser versado na lei complementar é a própria execução do cashback, que não pode tornar-se um ônus ao consumidor de baixa renda, cabendo o cálculo e crédito de forma direta na conta de luz. Ao contrário disso, em uma aplicação de estorno futuro, pode imbuir em prejuízos ao consumidor, conforme bem aponta Ferreira [2].

O projeto, que em seus objetivos elenca a facilitação do sistema tributário nacional deve observar uma redação de fácil entendimento, e um procedimento simplificado para que a população de fato entenda a política tributária. Assim, uma política de cashback efetiva, de forma a fomentar a cidadania fiscal e o benefício coletivo deve vir acompanhada de uma redação clara, coesa e de fácil entendimento, para ir de encontro com o que propõe: a simplificação do sistema tributário para o contribuinte.

Outrossim, a implementação do cashback no contexto econômico nacional destaca a necessidade de uma lei complementar que aborde suas especificidades, garantindo clareza, equidade e permanência de benefícios nas contribuições. No entanto, essa preocupação com a regulamentação do cashback é apenas uma faceta de um panorama mais amplo e complexo: a reforma tributária e seus impactos no setor de energia.

Assim, ao discutir a reforma tributária, é imprescindível abordar questões como a tributação sobre a geração e distribuição de energia, bem como a necessidade de incentivos para fontes renováveis, garantindo um sistema fiscal mais justo e sustentável.

Imposto Seletivo, IBS e CBS

Nesta seara, em que pese a emenda constitucional ter excluído de forma expressa a incidência do Imposto Seletivo em relação às transações de energia elétrica, não tratou da exclusão em relação ao petróleo e gás, o que pode culminar em impactos tributários às termelétricas que se utilizam desses insumos, o que na cadeia de consumo pode significar impactos ao consumidor final.

De igual modo, o projeto que em sua redação elenca benefícios para fontes sem impacto ambiental e onera produtos prejudiciais, mas deixou de abordar a tributação do carbono, matéria que seria de relevante interesse nacional e sustentável.

Ademais, o problema da bitributação também se encontra presente, em relação à possível incidência do IBS e da CBS sobre encargos setoriais, sobre a Tarifa de Uso do Sistema de Distribuição e sobre a Tarifa de Uso do Sistema de Transmissão, como bem aponta Morais e Fonseca:

“Isso porque o PLP 68/24 estabelece que quaisquer valores pagos a título de tributos e preços públicos serão incluídos na base de cálculo do imposto e da contribuição. Ou seja, a menos que haja alguma disposição em contrário no texto aprovado, os encargos setoriais e as tarifas pelo uso do sistema elétrico irão integrar a base de cálculo dos novos tributos, seguindo a mesma linha de raciocínio da recente decisão do STJ no julgamento do Tema 986.

Nesse ponto, cabe destacar que a incidência do IBS e da CBS sobre a TUSD e a TUST pode implicar em bitributação.

Isso ocorre porque as transmissoras e distribuidoras de energia elétrica já tributam integralmente suas receitas, incluindo os valores recebidos dos consumidores finais referentes à TUSD e à TUST. Assim, aplicar o IBS e a CBS diretamente sobre essas tarifas resultaria em um duplo pagamento de impostos sobre a mesma base de receita” [3].

Indústria petrolífera e de gás natural

Noutra toada, importante falar que os impactos gerados à indústria petrolífera e de gás natural podem afetar em muito o consumidor final, onerando ainda mais esses insumos. Isso porque o PLP prevê uma taxação extra para bens minerais extraídos no Brasil ou importados. Com a incidência do Imposto Seletivo, pode-se ocasionar uma redução de empresas no setor e, consequentemente, afetar a concorrência internacional.

A redação anterior do projeto previa apenas a tributação sobre os bens minerais extraídos no Brasil, mas com a recente alteração a menção ao termo “extraídos” foi suprimida. Em termos práticos, isso significa que haverá incidência tributária sobre produtos importados, como o petróleo cru, usualmente comprado no exterior para as refinarias em sede nacional.

Os impactos da referida tributação ao consumidor final implicam em uma exação dos valores dos produtos. Ao aumentar a tributação sobre extração e importação do petróleo in natura, aumenta-se os valores de combustíveis, seja para carros, aviões ou navios, culminando em custos logísticos mais altos.

Já em relação ao setor petrolífero, fato é que o ônus tributário pode ocasionar um desincentivo à atividade, pois taxando-se a exportação, algo incomum em outros países que extraem o petróleo, há a perda da competitividade internacional. Paralelo a isso, a contratação de serviços, aluguel de máquinas e equipamentos, afretamento de navios e plataformas, dentre outros investimentos inerentes ao setor seriam ainda mais onerados pelo sistema do IVA Dual; ao passo que inexiste previsão sobre como os créditos tributários poderiam ser compensados ou restituídos derivados dos investimentos dessas empresas.

Preocupados com tal cenários, a Câmara dos Deputados optou por manter regimes específicos desse setor até certa data, com o IBS e a CBS sendo suspensas para importação ou aquisição de produtos finais, incluindo exploração, transporte ou armazenamento até 31 de dezembro de 2040.

Efeito positivo e próximos desdobramentos

Em que pese as críticas acima apontadas, reitera-se que as políticas propostas ao setor de energia também têm parcela de benefícios. Fato é que trará isonomia quanto ao ICMS, que passará a ser único, com alíquota padrão, além de haver a busca pela não cumulatividade plena.

No entanto, a efetivação das previsões do PLP depende dos próximos desdobramentos da reforma tributária, incluindo a edição de uma lei complementar. Espera-se que essa lei considere os descontos já concedidos aos consumidores de baixa renda e as particularidades do setor elétrico. Além disso, observa-se que o projeto poderia ter versado sobre a tributação do carbono, alinhando-se aos objetivos de sustentabilidade e transição energética do projeto. Por fim, aguarda-se os novos desdobramentos e previsões acerca do petróleo, com a certeza de que exações expressivas no setor afetarão em suma a economia nacional.

 


[1] GOV.BR. Tarifa social: saiba como funciona e quem pode pedir desconto. 2023. Disponível em: https://www.gov.br/mme/pt-br/assuntos/noticias/tarifa-social-saiba-como-funciona-e-quem-pode-pedir-desconto#:~:text=Voc%C3%AA%20sabe%20como%20funciona%20a,concedido%20apenas%20para%20consumidores%20residenciais.> Acesso em: 19/7/2024.

[2] FERREIRA, Luiz Eduardo Barata. A essencialidade da energia elétrica e a reforma tributária que buscamos para o Brasil. CNN Brasil, 2024. Disponível em: < https://www.cnnbrasil.com.br/forum-opiniao/a-essencialidade-da-energia-eletrica-e-a-reforma-tributaria-que-buscamos-para-o-brasil/>. Acesso em: 17/7/2024.

[3] FONSECA, Aline Ferreira; MORAIS, Bárbara Machado Rodrigues. A reforma tributária e os desafios do setor elétrico brasileiro. Migalhas, 2024. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/410415/a-reforma-tributaria-e-os-desafios-do-setor-eletrico-brasileiro. Acesso em: 17/7/2024.

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