Ambiente Jurídico

Direito ambiental não deve ser ecocentrista

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  • é secretária de Estado de Meio Ambiente de Goiás procuradora federal junto à Advocacia Geral da União (AGU) advogada mestre em Direito Sócio Econômico pela PUC-PR professora de Direito Ambiental pós-graduada em Direito Sistêmico pela Hellinger Schulle e autora do livro Instrumentos de Promoção Ambiental e o Dever de Indenizar Atribuído ao Estado.

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27 de julho de 2024, 11h39

O direito ambiental é uma área do direito que definitivamente não se constitui em si mesma. Não há uma disciplina jurídica ambiental que tenha seus princípios e hermenêutica fechada ou que se constitua sem uma profunda e correta interrelação com outras áreas da ciência e do conhecimento humano. O direito ambiental é multidisciplinar por essência.

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De fato, falar em direito voltado a proteção da fauna silvestre sem entender a dinâmica de ocupação territorial das espécies e de sua reprodução ou falar de um direito as águas sem entender a hidrografia e o clima ou ainda de áreas de preservação permanente sem compreender a geologia é como falar de doenças sem entender de fisiologia humana.

Atuar com direito ambiental, portanto, exige uma compreensão muito maior da dinâmica ambiental como um todo que envolve fauna, flora, clima, geologia, geografia, cartografia, clima, pluviosidade, temperaturas, estações, dinâmicas físicas, químicas e biológicas.

Claro que não se pode esperar que um advogado ou juiz que militam no direito ambiental compreendam profundamente todas essas disciplinas, mas se pode e deve esperar que um profissional do direito compreenda que não existe um direito ambiental unívoco ou fechado em si mesmo como é o caso de outros ramos do direito.

Um operador do direito penal, com raras exceções, não precisa conjugar outras disciplinas para sua atuação. Talvez um pouco de medicina forense, ainda assim, isso não será determinante para o exercício da sua profissão.

Da mesma forma um militante no direito processual civil não precisa conhecer nada sobre matemática, biologia, física ou química.

Já, no direito ambiental, alguém que atue com licenciamento ambiental e sua legislação, caso desconheça a disciplina dos impactos ambientais e suas interrelações com o ambiente, certamente estará fadado ao insucesso e ao cometimento de equívocos e erros contundentes. Em outras palavras, a legislação ambiental e sua exegese, implicam numa ampliação do olhar sobre disciplinas técnicas e de caráter científico.

Até aqui nenhuma novidade já que isso parece muito óbvio e de fácil concordância.

Ocorre que a construção de uma disciplina jurídica ambiental que pretende alcançar um meio ambiente ecologicamente equilibrado, para todos (artigo 225 CF), vai muito além da aplicação de uma disciplina jurídico normativa interrelacionada com elementos técnicos e científicos que poderiam ser traduzidos, neste ensaio, pela expressão “ecocentrista”, aquele que privilegia o ambiente natural ou a natureza.

‘Ecocentrismo’

Por ecocentrismo estaríamos nominando uma corrente de pensamento focada no meio ambiente com o propósito dirigido a proteção de espécies, elementos, processos e dinâmicas biológicas, físicas e químicas que conferem as condições ideais para a vida silvestre ou seja, a vida própria da natureza, como referência aos fenômenos do mundo natural.

Não obstante o argumento para a defesa desse “ecocentrismo” seja o equilíbrio de todas as formas de vida, inclusive a humana, o fato é que o foco central não é o ser humano nem a sociedade, mas a vida natural. Não se está a falar aqui de um paradigma biocêntrico que coloca a vida, em todas as suas formas, como objeto do direito, mas de um paradigma ecocentrista que exclui o ser humano, entendendo-o como o causador do problema, algo como o “vírus do sistema”.

Repare que essa narrativa ecocentrista ganha contornos ideológicos e tem, cada vez mais, preenchido de forma mais ou menos explícita boa parte de julgados, manifestações de ministérios públicos, reivindicações ambientalistas e decisões governamentais.

O que se questiona aqui é que esse ecocentrismo não tem respaldo na Constituição e via de consequência no ordenamento jurídico nacional que, diga-se, sustenta que  as variáveis políticas, econômicas, sociais e dados de realidade se inserem e estão contidas no direito ambiental.

Aqui, vale trazer exemplo da realidade nacional. E nesse sentido, o licenciamento ambiental é um campo de múltiplos casos em que essa dúvida se estabelece: adota-se o direito ambiental restritivo, voltado a proteção do meio ambiente natural ou se adota o conceito de um direito ambiental ampliado?

Para ilustrar vamos utilizar o emblemático caso da hidrelétrica de Belo Monte no estado do Pará, licenciado pelo Ibama (Licença Prévia nº 342/2010) com a seguinte cláusula:

Condicionante 2.1 – O Hidrograma de Consenso deverá ser testado após a conclusão da instalação da plena capacidade de geração da casa de força principal. Os testes deverão ocorrer durante seis anos, associados a um robusto plano de monitoramento, sendo que a identificação de importantes impactos na qualidade de água, ictiofauna, vegetação aluvial, quelônios, pesca, navegação e modos de vida da população da Volta Grande, poderão suscitar alterações nas vazões estabelecidas e consequente retificação na licença de operação. Entre o início da operação e a geração com plena capacidade deverá ser mantido o TVR, minimamente, o Hidrograma B proposto no EIA. Para o período de testes devem ser propostos programas de mitigação e compensação.

Na hipótese evidencia-se que o órgão licenciador não tinha a certeza científica sobre o resultado ambiental da operação da hidrelétrica. No entanto, optou por conceder a licença prévia, que declara a viabilidade ambiental do empreendimento, porém, afastando a aplicação do princípio da precaução ou adotando-o de forma restrita, por meio do estabelecimento de controles, monitoramentos ambientais e sociais e períodos de testes que poderiam gerar, a depender dos resultados, em modificações futuras no regime licenciado.

De se observar que o empreendimento da hidrelétrica de Belo Monte foi judicializado em dezenas de ações submetidas ao Poder Judiciário onde o princípio da precaução foi suscitado sob o argumento de que não havia segurança técnico-científica que apontassem uma certeza para a viabilidade ambiental do empreendimento.

Contudo, o licenciamento ambiental foi mantido, tanto é que o empreendimento foi concluído e está em operação. Numa leitura preliminar e rápida — caso o direito ambiental fosse uma disciplina ecocentrista — vincularia uma solução fácil: adotar-se-ia o princípio da precaução de forma ampla de modo que, não havendo certeza sobre os resultados, não se licenciaria o empreendimento. Não foi o que aconteceu.

No caso emblemático de Belo Monte, pesaram na decisão final muitos elementos: a necessidade de produção de energia para a sustentação da economia nacional e das cidades, a geração de empregos e renda para a população, o desenvolvimento social e econômico e, não se pode esquecer, a vontade política contundente do governo federal à época [1].

Aqui está o cerne da discussão: o direito ambiental é ou deve ser ecocentrista e restrito ou deve incluir em sua disciplina conteúdos além das questões técnicas e científicas e, portanto, se constituir por um direito ambiental ampliado, envolvendo e incluindo as temáticas sociais, econômicas e políticas e até geopolíticas, como é o caso da Amazônia, tão disputada entre proteção (ambientalismo) e desenvolvimento?

Há na base da operacionalização do direito ambiental, exclusivamente o caráter técnico e científico, referenciado no arcabouço normativo e sua hermenêutica ou se somam a esses elementos os demais da realidade nacional consubstanciada pelo anseio social, necessidades econômicas e vontade política manifestada pelos poderes públicos constituídos democraticamente?

A saber se há legitimidade que esses elementos se insiram na matriz de decisão quando o tema é o meio ambiente e portanto, estão contidos no direito ambiental ou deveríamos, como sociedade, dirigir as tomadas de decisão para o âmbito meramente técnico e jurídico puros ou ambientalistas.

Nesse ponto, convêm mostrar ao leitor como está composta a sociedade brasileira, conforme os dados do IBGE/2023, para fins ilustrativos e de argumentação, sem pretensões científicas:  216 milhões de habitantes (100%), divididos em 12 milhões de servidores públicos (5,5%); 39 milhões de aposentados, pensionistas e auxílios (18,05%); 53 milhões de crianças e adolescentes (24,53%); 56 milhões de beneficiários de programas sociais (25,92%); presumindo-se que o restante da população, ou seja, os outros 56 milhões (25,92%)  sejam os empresários, funcionários e profissionais que geram os impostos que sustentam, financeiramente, as demais faixas da população brasileira [2].

Em termos gerais, portanto, a economia do país está sustentada em quase 26% da população brasileira onde também se encontra a faixa de pessoas que promovem o uso dos recursos naturais e todo o contexto de controle ambiental e para quem o direito ambiental é predominantemente dirigido, afora as concentrações de população em cidades que se somam a regulação referente a saneamento básico e qualidade ambiental urbana.

É dizer, portanto, que o direito ambiental ao impor seus preceitos, incide direta e majoritariamente sobre uma faixa da população brasileira, representada por ¼ da população que sustenta, do ponto de vista financeiro, os outros 3/4 e que constituem ou influenciam de forma importante o processo de tomada de decisão política, sobretudo nos poderes executivo e legislativo.

Esse ¼ da população é alvo do Código Florestal, do licenciamento ambiental, da política de qualidade ambiental, da fiscalização ambiental, do controle de uso de recursos hídricos, do controle de substâncias tóxicas, do comércio de espécies, controle da produção e assim por diante.

Daí, pode-se concluir que esta parcela da sociedade brasileira que é objeto central ou majoritário do direito ambiental é também sujeito de sua constituição e assim se espera uma atuação ativa e formuladora do direito que insere, de forma legítima, as questões econômicas e políticas na gênese do direito.

Assim também deve acontecer quando quem é alvo da análise do direito são parcelas minoritárias da sociedade, como populações tradicionais, em que o viés social prevalece ou ainda, quando a degradação ambiental pode afetar parcelas importante da sociedade em geral quando o viés ambiental-naturalista deve ser privilegiado.

Daí porque não se pode afastar ou excluir dos limites do direito ambiental essas variáveis. É dizer: a natureza e a realidade da sociedade brasileira, por si, fazem com que o direito ambiental se torne um direito que deve incluir, sempre, todos os elementos que compõe a sociedade, o que afasta um viés exclusivamente naturalista ou ecocentrista na sua constituição originária.

Logo, uma questão ambiental litigiosa levada ao Judiciário ou uma decisão a ser tomada pelo Executivo ou uma legislação a ser editada pelo Legislativo deve, por princípio, partir de uma visão ampliada que equilibre, na balança, todos esses elementos: ambientais, sociais e econômicos. Não há, portanto, um direito ambiental prioristicamente naturalista.

Belo Monte/Divulgação

E nesse aspecto há que se considerar que a Política é o amálgama que relaciona em rede todos os elementos sociais e que os intercepta e preenche de significado e sentido e orienta a tomada de decisão. Portanto, decisões políticas, tomadas à luz da democracia, podem e devem ser validadas pelo direito ambiental, como foi o caso de Belo Monte, ainda que sob sacrifício de um ou outro elemento do tripé do desenvolvimento sustentável que, no correr do processo, deve sempre ser equilibrado e reequilibrado, por meio de freios e contrapesos, compensações e mitigações.

O direito ambiental não pode, desta forma, ser visto, desenvolvido e referenciado em caráter strito sensu, programado por uma ideologia ambientalista-naturalista que exclui variáveis da realidade nacional, se convertendo num direito que contradiz a sua gênese, um direito não pertencente a si mesmo, porque dogmático e que responde exclusivamente a uma parcela da sociedade que tem seus valores baseados na natureza e que retira o ser humano e a sociedade da equação.

Ouso dizer que um operador do direito ambiental deve-se fazer sempre essas perguntas, mais ou menos nessa ordem: (i) o que a ciência e a melhor técnica disponível dizem a respeito do assunto sob o ponto de vista ecológico? (ii) qual conteúdo social e quais interesses estão envolvidos na questão? (iii) quais reflexos e impactos econômicos estão em debate? (iv) quais os ângulos e interesses da questão se apresentam em contradição ou conflito?

Somente ao final, sopesados todos esses aspectos é que o direito ambiental pode se inserir aplicando-se a interpretação do arcabouço jurídico que melhor equilibre todas essas partes.

Sempre, a pior decisão, será aquela que se situar no senso comum sobre o meio ambiente, achando que restringir, proibir ou dificultar algo protegerá melhor o meio ambiente ou aquela decisão que não ponderar todos os aspectos envolvidos e buscar equilibrar a relação entre elas.

__________

[1] A autora desse artigo, à época da LP de Belo Monte estava no exercício do cargo de Procuradora Chefe Nacional, da Procuradoria Federal junto ao Ibama e acompanhou os bastidores do processo desse licenciamento ambiental, pessoalmente.

[2] Obs.: a autora reconhece que pode haver sobreposição de pessoas entre as faixas, ampliando o número de pessoas geradoras de impostos, empregos e renda e que promovem a economia brasileira mas a reflexão aqui, como dito, é ilustrativa e para fins meramente argumentativos.

 

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  • é secretária de Estado de Meio Ambiente de Goiás, procuradora federal junto à Advocacia Geral da União (AGU), advogada, mestre em Direito Sócio Econômico pela PUC-PR, professora de Direito Ambiental, pós-graduada em Direito Sistêmico pela Hellinger Schulle e autora do livro Instrumentos de Promoção Ambiental e o Dever de Indenizar Atribuído ao Estado.

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