Possibilidade de exclusão de licitantes no curso do diálogo competitivo
26 de julho de 2024, 21h21
Orientação Normativa 82/2024 e problema endereçado
Em 17/5/2024, foi publicada a Orientação Normativa 82/2024 da Advocacia-Geral da União, nos seguintes termos: “no processo licitatório na modalidade do diálogo competitivo é possível estabelecer no edital de pré-seleção critérios de exclusão a serem observados pelos licitantes para participação e durante o desenvolvimento dos diálogos, sob pena de exclusão da fase competitiva” [1].
A ON 82/2024 trata de questão prática relevante: como incentivar a participação eficiente e efetivamente agregadora dos licitantes na fase do diálogo? Como estimulá-los a apresentar soluções e abrir informações ao ente público contratante? Ou: como combater a inação dos licitantes?
A resposta dada na ON 82/2024 constitui medida de natureza repressiva, consistente na retirada do licitante que não cumprir determinados requisitos. É uma solução adotada na legislação de outros países – como, aliás, ilustrado no parecer 00023/2023/CNLCA/CGU/AGU, que embasou a edição da referida ON [2].
Mas em que medida essa solução é compatível com a Lei 14.133/2021? E, sendo, ela é conveniente do ponto de vista prático?
Questão da compatibilidade com a Lei 14.133/21
Do ponto de vista estritamente jurídico, a possibilidade de estipulação de critérios de exclusão dos licitantes é uma questão delicada. Isso porque o artigo 32, § 1º, inciso VIII, da Lei 14.133/2021 prevê que a fase competitiva para seleção da proposta mais vantajosa deve comportar abertura de prazo para “todos os licitantes pré-selecionados na forma do inciso II deste parágrafo apresentarem suas propostas […]” (destaque nosso).
O legislador tinha duas grandes alternativas: a primeira era estabelecer incentivo mais claro à participação ativa e mais intensa na fase de diálogo, o que poderia ocorrer, por exemplo, mediante previsão de eventual sanção de exclusão da fase competitiva, em caso de participação insatisfatória no diálogo.
Outra alternativa, mais cautelosa, consistia em privilegiar a ampla competitividade na fase final da licitação, estabelecendo que todos os licitantes pré-selecionados permanecerão aptos a disputar a contratação. A opção legislativa foi esta última, o que implica admitir que mesmo um licitante com menos destaque na fase do diálogo, ou que apresente solução não reconhecida como promissora pelo ente contratante, tem a sua participação na fase de apresentação de propostas assegurada pela lei.
Possibilidade de exclusão de licitantes com base na disciplina legal
Isso não significa propriamente questionar a lógica subjacente à ON 82/2024, pois a previsão do artigo 32, § 1º, inciso VIII, não impede a adoção de providências pela comissão em situações drásticas, como ocorreria em hipótese de completa inação do licitante. Aliás, deve-se observar que, embora a redação da ON 82/2024 seja aberta e abrangente, parece ter sido para essas situações drásticas, exemplificadas no parecer 00023/2023/CNLCA/CGU/AGU, que ela foi pensada [3].

Suponha-se o exemplo de licitante que tenha sido selecionado e decida nada fazer durante o diálogo, não apresentando nem mesmo uma solução inicial, ou opte por apresentá-la fora do prazo ou de forma manifestamente incompatível ou insuficiente em vista dos requisitos previstos. Conquanto a Lei 14.133/2021 não preveja a possibilidade de exclusão desse licitante, esse resultado poderá ser alcançado a partir do regime legal. Nem sequer será necessária a intermediação regulamentar ou editalícia, embora tais regras possam ser úteis.
Assim, por exemplo, o edital poderá disciplinar em termos concretos a infração prevista no artigo 155, inciso IV, da Lei 14.133/2021: na medida em que é da essência do diálogo competitivo que os licitantes tomem a iniciativa de apresentar soluções à administração na fase do diálogo, a inação caracterizaria, em tese, a infração administrativa de “deixar de entregar a documentação exigida para o certame”.
Nesse caso, a exclusão do licitante deverá observar os pressupostos materiais e próprios atinentes à eventual aplicação da sanção de impedimento de licitar e contratar e será uma derivação da aplicação dessa penalidade, tal como prevista no inciso III e no § 4º do artigo 156 da Lei 14.133/2021.
Logo, a previsão de que todos os licitantes pré-selecionados terão direito a participar da fase de propostas não implica conferir salvo-conduto para que eles sejam mantidos no certame a despeito de infrações que venham a praticar no decorrer do processo licitatório. Em qualquer caso, não se entende possível que a exclusão do licitante seja automática. Como já se sustentou em obra específica, tal providência pressuporá o desenvolvimento de processo administrativo regular, na forma prevista no artigo 158 da Lei 14.133/2021 e demais regras aplicáveis [4].
Definição de critérios de exclusão seria conveniente?
Em se admitindo a viabilidade da solução exposta da ON 82/2024, há pelo menos quatro pontos de cautela a serem levados em consideração.
Em primeiro lugar, a estipulação de critérios de exclusão pode ampliar a complexidade da licitação e abrirá um novo front de potencial litigiosidade. Disputas sobre o cabimento ou não da exclusão de um dado licitante podem resultar em atrasos e na própria paralisação do certame.
Em segundo lugar, a eficiência depende do desenho adequado dos critérios de exclusão. Como esses critérios não foram definidos na legislação, não é possível definir a priori se a sua aplicação será vantajosa ou não. O resultado dependerá da construção de boas soluções em concreto.
Em terceiro lugar, como derivação do ponto anterior, a depender de como os critérios sejam definidos, pode ocorrer que o estímulo que eles produzam seja inócuo (neutro) ou produza efeito indesejado, de tornar os licitantes cautelosos e mais ciosos de si do que do diálogo.

Licitantes na defensiva produzirão material abundante e atuarão junto ao ente público não necessariamente com o fim de potencializar o resultado do diálogo, mas para assegurar que não serão excluídos. Em última análise, a ameaça da exclusão pode resultar na ampliação do trabalho do ente público em lidar com contribuições mais amplas, mas não necessariamente mais úteis.
Em quarto lugar, há a questão da competitividade. A ampliação do nível de participação e engajamento na fase do diálogo a partir da possibilidade de exclusão dos licitantes tem o seu custo, que é o de limitar a disputa pelo contrato na fase final e decisiva do certame. A dosagem dos incentivos é um ponto crucial — e o remédio pode virar veneno.
Do porrete à cenoura: outras formas de incentivar participação na fase do diálogo
Enquanto a ON 82/2024 aponta a admissibilidade de solução repressiva, há a possibilidade de estratégia oposta, de natureza positiva ou premial. O direito comparado revela regramentos que admitem que o licitante que tem a sua solução aproveitada pelo ente público seja remunerado por tanto.
Como o autor já teve oportunidade de aprofundar em obra específica, entende-se que essa solução é viável à luz da Lei 14.133/21, apesar da ausência de regra expressa autorizativa [5]. Até o momento, tem-se notícia de que vão nessa direção os Decretos 10.086/2022 do estado do Paraná [6] e 60/2024 do município de Caxias do Sul [7].
Para certames que tenham por objeto contratos de concessão, pode-se admitir o mesmo resultado com base no artigo 21 da Lei 8.987/1995, aplicável também às parcerias público-privadas, conforme o artigo 3º da Lei 11.079/2004 [8].
Nota final
Parece recomendável — tanto mais no estágio ainda inicial de aplicação da Lei 14.133/2021 – cautela na regulação da conduta dos licitantes na fase do diálogo. É necessário observar não só os limites do regime legal e do necessário tratamento isonômico, mas o interesse do ente público em promover e obter o maior nível de competição possível na fase final do certame.
O que não pode ocorrer é a distorção da lógica legal. Assim e por exemplo, a existência de simples dúvidas ou a insatisfação sobre o efetivo comprometimento do licitante em relação ao diálogo, ou sobre a qualidade ou conveniência de sua solução, podem justificar a interrupção do diálogo com ele, mas não permitirão, de forma isolada, o afastamento do licitante, muito menos o seu sancionamento. Não é essa a lógica da modalidade licitatória — nem parece ser esse o sentido da própria ON 82/2024.
[1] Em sentido similar, o art. 13, § 3o, do Decreto no 60/2024 do município de Caxias do Sul prevê a possibilidade de “desqualificação” de licitantes na fase de diálogo e o impedimento à disputa do contrato na fase competitiva. Verifica-se na doutrina posição favorável à instituição de regras infralegais que resultem na exclusão do licitante na fase do diálogo. Sobre o tema: JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratações Administrativas: Lei 14.133/2021. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021, p. 466, e OLIVEIRA, Rafael Sérgio Lima de. O diálogo competitivo brasileiro. Belo Horizonte: Fórum, 2021, p. 48.
[2] O autor obteve acesso ao parecer com base na Lei de Acesso à Informação.
[3] Nos termos do parecer: “27. Nessa linha, sob a ótica do ordenamento jurídico brasileiro, entende-se não ser possível uma restrição de forma genérica, com o único intuito de limitar o quantitativo de participantes da fase competitiva, a exemplo de regra regulamentar ou editalícia que estipulasse número máximo de participantes na fase competitiva. Regra dessa natureza ultrapassaria o caráter inovador possível a atos infralegais. 28. Questão diversa, contudo, é a fixação em regulamento ou até no edital que inaugura a fase de pré-seleção de critérios de exclusão (faltar reuniões sem justificativa, descumprir prazos, não apresentar solução minimamente viável etc.), a serem observados pelos participantes na fase de diálogo, justamente com o intuito de incentivar a sua participação e evitar a existência de meros espectadores aguardando apenas o momento de formulação de propostas”.
[4] REISDORFER, Guilherme F. Dias. Diálogo competitivo: o regime da Lei 14.133/21 e sua aplicação às licitações de contratos de concessão e parcerias público-privadas. 2. ed. rev. ampl. e atual. Belo Horizonte: Fórum, 2024, p. 175-176.
[5] REISDORFER, Guilherme F. Dias. Diálogo competitivo: o regime da Lei 14.133/21 e sua aplicação às licitações de contratos de concessão e parcerias público-privadas. 2. ed. rev. ampl. e atual. Belo Horizonte: Fórum, 2024, p. 140 e ss.
[6] Cujo art. 140, § 5º, dispõe que “o edital poderá prever a concessão de prêmio ou remuneração ao licitante que tiver sua solução escolhida e adotada pelo licitante vencedor”. O edital deverá predeterminar um valor fixo, que, assim como a forma de pagamento, deverá constar no edital (art. 140, § 6º), podendo tal valor ser dividido caso a solução contratual definida ao término do diálogo constitua uma mescla de soluções apresentadas por mais de um licitante (art. 140, § 7º).
[7] Tal regulamento prevê que o edital deverá definir “as condições de realização e a remuneração a ser concedida àquele ou àqueles que apresentarem a melhor ou melhores soluções” (art. 5º, inc. III).
[8] Nos termos do referido art. 21, “os estudos, investigações, levantamentos, projetos, obras e despesas ou investimentos já efetuados, vinculados à concessão, de utilidade para a licitação, realizados pelo poder concedente ou com a sua autorização, estarão à disposição dos interessados, devendo o vencedor da licitação ressarcir os dispêndios correspondentes, especificados no edital”.
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