O novo § 5º do artigo 63 do CPC e suas incertezas
24 de julho de 2024, 6h03
Recente alteração legislativa inseriu, no artigo 63 do CPC, um § 5º, segundo o qual “[o] ajuizamento de ação em juízo aleatório, entendido como aquele sem vinculação com o domicílio ou a residência das partes ou com o negócio jurídico discutido na demanda, constitui prática abusiva que justifica a declinação de competência de ofício”. O objetivo deste breve ensaio é examinar esse parágrafo, sem tecer quaisquer considerações acerca de outras alterações, como a promovida no § 1º do mesmo artigo. [1]

As regras de competência, como sabido, são estabelecidas inicialmente, pela Constituição da República Federativa do Brasil, mais especificamente pelos artigos 101 e seguintes, iniciando pela competência do Supremo Tribunal Federal; do Superior Tribunal de Justiça; dos Tribunais Regionais Federais e seus juízes federais; do Tribunal Superior do Trabalho, dos Tribunais Regionais do Trabalho e seus juízes do trabalho, passando pela Justiça Eleitoral e Justiça Militar chegando, por fim, na competência dos Tribunais e juízes dos Estados, os quais têm competência residual.
Observadas as regras estabelecidas pela Constituição, é necessário que se observem também as regras de competência que resultam do Código de Processo Civil, sendo estas estabelecidas para delimitar a atuação jurisdicional, de forma que as causas serão processadas e julgadas pelo juízo de acordo com os limites de sua competência, nos termos do artigo 42 do CPC.
Diversas são as regras de competência que resultam no CPC; todas muito bem desenhadas e elaboradas de forma a não comprometer a sua aplicação, não sobrando tanto espaço para discussão no dia a dia forense.
A competência é classificada em absoluta, que é aquela que tutela o interesse público ou privado especialmente relevante e, por isso, caso não seja observada e, sendo considerado o juízo absolutamente incompetente, poderá ser verificada de ofício pelo juiz ou alegada pelas partes, em qualquer tempo e grau de jurisdição (competência objetiva em razão da matéria; da pessoa; e pelo critério funcional), ou relativa, que é aquela que tutela o interesse privado, não podendo ser conhecida de ofício, e que depende, para reconhecimento da incompetência, de alegação da parte na primeira oportunidade que tiver de se manifestar. Não havendo qualquer manifestação, prorroga-se a competência, tornando competente um juízo que era, inicialmente, incompetente.
Importante relembrar que a competência territorial é relativa como regra, mas comporta, no sistema do CPC, duas exceções, sendo estas: a competência territorial prevista no artigo 47, §§ 1º e 2º (competência para as ações fundadas em direito real sobre imóveis) e artigo 53, inciso III, alínea “e”, CPC (residência do idoso nos casos que decorrem de violação dos direitos previstos no Estatuto do Idoso).
Eleição do foro
Ultrapassada essa brevíssima introdução, adentra-se então no que nos interessa neste escrito: as alterações feitas no artigo 63 do CPC, pela Lei 14.879/2024; alterações estas que trouxeram um mar de incertezas quando o assunto é, agora, eleição de foro, especialmente no que diz respeito ao novo § 5º desse dispositivo legal.
Para começar o assunto, ressalta-se que a eleição de foro somente pode modificar os critérios relativos de fixação de competência, já que não há espaço para alterações quando se trata de critérios de fixação de competência absoluta.
O caput do artigo 63 diz que “[a]s partes podem modificar a competência em razão do valor e do território, elegendo foro onde será proposta ação oriunda de direitos e obrigações.” Sua leitura não deixa qualquer dúvida quanto ao fato de que a norma trata especificamente dos casos em que a competência é relativa, motivo pelo qual pode ser modificada por vontade das partes.
Embora pareça repetitivo, essa redundância se faz extremamente necessária para que se possa tentar combater determinadas decisões que têm sido proferidas, e que estão manifestamente equivocadas. Citaremos uma como exemplo mais adiante.
A Lei 14.879/2024 alterou o § 1º que passou a vigorar com a seguinte redação: “[a] eleição de foro somente produz efeito quando constar de instrumento escrito, aludir expressamente a determinado negócio jurídico e guardar pertinência com o domicílio ou a residência de uma das partes ou com o local da obrigação, ressalvada a pactuação consumerista, quando favorável ao consumidor.”
Os §§ 2º, 3º e 4º não sofreram qualquer alteração, mantendo-se seu texto originário e, portanto, sobre eles nada há que tenha sido modificado.

A referida lei inseriu no artigo 63, porém, um §5º, com a seguinte redação: “[o] ajuizamento de ação em juízo aleatório, entendido como aquele sem vinculação com o domicílio ou a residência das partes ou com o negócio jurídico discutido na demanda, constitui prática abusiva que justifica a declinação de competência de ofício.”
A possibilidade de o juiz reconhecer uma cláusula de eleição de foro como abusiva já estava prevista no § 3º, de forma que, antes da citação, reputando-a como ineficaz, determinará a remessa dos autos ao juízo do foro do domicílio do réu.
Não sendo reconhecida como abusiva pelo juiz, e sendo o réu citado, incumbe a este alegar a referida abusividade em sede de contestação (§ 4º) e, se assim não o fizer, a competência estará prorrogada em razão da preclusão na forma do que dispõe o artigo 65, CPC.
Então, diante desse cenário, percebe-se que de alguma maneira o § 5º, ao limitar a escolha do juízo através da eleição do foro, repete regras que já existiam, sendo inovador tão somente quando vincula a escolha ao domicílio ou residência das partes ou ao negócio jurídico que se discute na demanda.
Considerando que em nenhum ponto das alterações realizadas se fez menção quanto à não aplicação das regras dos §§ 3º e 4º, quando da análise pelo juiz da abusividade e, mais uma vez, como somente é permitida a eleição de foro nos casos em que esteja presente o critério de fixação relativa de competência, não resta dúvidas quanto ao critério relativo que provém do artigo 63 também incidir sobre as novas regras.
Assim, o magistrado deverá analisar o caso concreto olhando para o § 5º em conjunto com os §§ 3º e 4º. Caso não reconheça eventual prática abusiva na escolha do foro pelas partes antes da determinação da citação, não poderá fazê-lo posteriormente, passando então para a parte interessada a ter o ônus de alegar a ineficácia da eleição de foro em preliminar de contestação, aplicando-se o § 5º c/c o §4º. Se assim não for feito, a competência, que é relativa, será prorrogada por força da preclusão que se opera diante da ausência de alegação pelo réu no momento oportuno.
Não há outra interpretação plausível para esta questão. Nem se pense em sustentar que essa competência é absoluta. Afinal, se assim se fizesse, seria preciso admitir eleição de foro para modificação de competências absolutas, o que seria um absurdo total.
Visto isso, cabe agora citar o exemplo de decisão manifestamente equivocada sobre o tema. Um juiz do Tribunal de Justiça de São Paulo, ao receber uma ação monitória, determinou a redistribuição da demanda para um dos juízos do domicílio do devedor, sob o fundamento das alterações aqui tratadas, afirmando que: “as regras que alteram a competência absoluta possuem aplicação imediata (artigo 43, do CPC)”. [2]
Inadmissível tratar as disposições sobre foro de eleição como regras de modificação de competência absoluta, como já explicitado nas linhas que antecederam esta conclusão.
Nem se cogite a ideia de que este § 5º não trata de eleição de foro, veiculando uma disposição “independente do caput”. Ou que se aplica tanto aos casos em que haja eleição de foro como àqueles em que essa convenção processual não tenha sido celebrada. [3] Afinal, está-se aqui diante de um parágrafo.
E é regra elementar de interpretação que o parágrafo deve ser interpretado em consonância com o caput do artigo de lei em que se insere. Pois então é preciso compreender que esse § 5º só se aplica aos casos em que o ajuizamento da ação se dê em juízo aleatório, assim entendido aquele em que tenha sido eleito foro que não atenda ao disposto no § 1º do mesmo artigo de lei. Haveria, aí, então, uma “prática abusiva” de ambas as partes. E isso justificaria a decisão, tomada de ofício, de declinar da competência.
Isso, a rigor, torna esse dispositivo praticamente inútil, pois o que daí consta já estaria no § 3º do mesmo artigo, segundo o qual “[a]ntes da citação, a cláusula de eleição de foro, se abusiva, pode ser reputada ineficaz de ofício pelo juiz, que determinará a remessa dos autos ao juízo do foro de domicílio do réu”. Pois o § 5º do artigo 63 serve, apenas, para esclarecer em que casos a eleição de foro, por ser abusiva, seria ineficaz, autorizando o juiz a reconhecer o vício de ofício (§ 3º), desde que antes da citação (§ 4º).
Em síntese: o novo § 5º do artigo 63 do CPC em quase nada inova no sistema. A grande inovação é, mesmo, a do § 1º (que limita a eleição de foro), mas essa deve ser objeto de outro texto, ainda a ser elaborado.
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[1] Fica aqui, desde logo, porém, o registro de que, para os autores deste ensaio, a nova redação do § 1º do art. 63 é inconstitucional. Isso, porém, não será aprofundado aqui. O primeiro autor deste texto tratou do tema em palestra ministrada na EMERJ, e que pode ser vista em https://www.youtube.com/watch?v=KBW7OruqG-Y.
[2] Trata-se de decisão proferida pelo Juízo de Direito da 26ª Vara Cível da Comarca de São Paulo no processo n. 0021483-43.2024.8.26.0100.
[3] Como entendeu AVELINO, Murilo Teixeira. Modificações no art. 63 do CPC via Lei 14.879/24: 6 pontos de preocupação. In: https://www.conjur.com.br/2024-jun-11/modificacoes-no-art-63-do-cpc-via-lei-14-879-24-6-pontos-de-preocupacao/, acesso em 22/07/2024.
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