Opinião

Há um problema no sistema de precedentes do CPC de 2015

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24 de julho de 2024, 7h02

Com a edição do novo Código de Processo Civil (CPC), em 2015, inaugurou-se no ordenamento jurídico brasileiro um sistema de precedentes jurisprudenciais que atribuiu caráter vinculante obrigatório a determinadas categorias de decisões do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça.

Marcello Casal Jr./Agência Brasil

O objetivo era pacificar e uniformizar entendimentos jurisprudenciais, equalizar as relações jurídicas e reduzir os conflitos levados ao Poder Judiciário. Contudo, esse sistema, em seus moldes atuais, tem suscitado problemas cujos efeitos são justamente contrários à pretensão do legislador, pois permite gerar decisões, inclusive com trânsito em julgado, contrárias aos precedentes formados.

Nos termos dos artigos 1.036, 1.037 e 1.040, III, do CPC, uma vez escolhidos determinados recursos extraordinários e especiais como representativos de controvérsia, todos os demais que versem a mesma matéria, ainda em tramitação perante os tribunais, devem ser sobrestados até que sobrevenha a publicação do acórdão de mérito do leading case. O problema reside na circunstância de que, publicado o acórdão, é lícita a oposição de embargos de declaração, os quais têm sido utilizados — e providos — principalmente para suscitarem a necessidade de modulação dos efeitos do novo precedente.

Coisas julgadas inconstitucionais ou ilegais

Até o julgamento dos embargos de declaração — ou de eventual decisão do ministro relator com a determinação de suspensão nacional de todos os processos correlatos —, não raras vezes as ações que voltaram a tramitar acabam ensejando o trânsito em julgado das respectivas sentenças. Isso principalmente quando não há a necessidade de retorno dos autos à Turma julgadora para juízo de retratação.

Acontece que tais sentenças acabam por se tornarem inconstitucionais ou ilegais tão logo o STF ou o STJ acate o requerimento de modulação. Assim, o sistema processual de precedentes, ao invés de uniformizar as decisões judiciais e reduzir as demandas propostas, tem permitido a formação de coisas julgadas inconstitucionais ou ilegais e promovido novos debates e judicializações.

Tal ocorreu, por exemplo, recentemente, com o Tema 985 de repercussão geral. Em 28/8/2020 o STF finalizou o julgamento do RE nº 1.072.485 e decidiu pela legitimidade da incidência das contribuições previdenciárias sobre o terço de constitucional de férias pago ou creditado pela empresa.

A ata de julgamento foi publicada em 15/9/2020, enquanto o acórdão, em 2/10/2020, permitindo a aplicação do artigo 1.040, III, do CPC. Em 26/6/2023, o ministro André Mendonça proferiu decisão em que decretou a suspensão, em caráter nacional, de todos os feitos judiciais e administrativos pendentes que versem a matéria.

Finalmente, os embargos de declaração foram julgados em 12/6/2024, restando modulados os efeitos da decisão para atribuir efeitos ex nunc ao acórdão de mérito, a contar da publicação da sua ata de julgamento, resguardando-se o direito à repetição de indébito apenas para os contribuintes que a pleitearam judicial ou administrativamente até a mesma data. Vale dizer, as sentenças que transitaram em julgado entre 2/10/2020 e 26/6/2023 se tornaram inconstitucionais, ainda que parcialmente, em 12/6/2024.

Certamente que as coisas julgadas inconstitucionais ou ilegais, principalmente por causas supervenientes, são contrárias ao sistema de precedentes e merecem reflexões sobre a possibilidade de serem revertidas. Nessa linha, recentemente, no julgamento dos Temas 881 e 885 de repercussão geral, o STF decidiu que, nas relações tributárias de trato continuado, os efeitos temporais da coisa julgada que reconhece a inconstitucionalidade de tributo cessam diante da superveniência de precedente vinculante em sentido contrário.

De forma análoga, os artigos 525 e 535 do CPC preveem que o título executivo judicial é considerado inexigível caso seja contrário à precedente vinculante do STF, salvo na hipótese de inconstitucionalidade superveniente. Esta deve ser suscitada por meio de ação rescisória a ser proposta no prazo de 2 anos contados do trânsito em julgado do novo precedente. Tais previsões, contudo, não resolvem o problema da sentença que deixa de reconhecer o direito à repetição de indébito (efeito condenatório ou mandamental) em razão da inexistência de modulação dos efeitos do procedente à época em que proferidas e que ocorreu o trânsito em julgado.

Spacca

Em um sistema de precedentes que privilegia a autoridade das decisões vinculantes dos tribunais superiores, parece fora de dúvidas que o efeito condenatório ou mandamental da sentença transitada em julgado deve se amoldar ao precedente superveniente da mesma forma que ocorre com o efeito declaratório, acima apontado. Contudo, como o efeito condenatório se refere, via de regra, a um período pretérito, com relações jurídicas consolidadas no tempo – ou seja, não há efeitos contínuos e presentes a serem cessados –, é de se indagar quanto à necessidade e o cabimento de ação rescisória para esses casos.

Ação rescisória

O artigo 966, V, do CPC autoriza a propositura de ação rescisória na hipótese de a sentença transitada em julgado violar manifestamente norma jurídica. O advento de precedente vinculante contrário à coisa julgada implica que a decisão anterior contraria a norma jurídica na qual fundamentada. Porém, tanto o STF quanto o STJ possuem entendimento pacificado no sentido de que alteração jurisprudencial não enseja ação rescisória caso a sentença transitada em julgado seja fundamentada no entendimento jurisprudencial vigente à época.

Inobstante, não se pode perder de vista que, no tema ora proposto, não se está diante de simples mudança de entendimento jurisprudencial, mas sim do advento de precedentes obrigatórios, cuja natureza e finalidade é, justamente, se sobrepor sobre decisões individuais com o fim de tornar o sistema uniforme, sem discrepâncias.

Nessa linha, não há alternativa que não aplicar o Tema 733 de repercussão geral, no qual o STF fixou a tese de que a declaração de constitucionalidade ou inconstitucionalidade de preceito normativo não produz a automática reforma ou rescisão das decisões anteriores que tenham adotado entendimento diferente, sendo necessário, para tanto, a propositura de ação rescisória.

Alteração

Em síntese, para maior conformidade do atual sistema processual de precedentes, o artigo 1.040, III, do CPC deveria ser alterado para permitir o prosseguimento dos recursos sobrestados tão-somente após o trânsito em julgado do acórdão proferido no leading case. Isso coibiria a formação de coisas julgadas que venham a se tornar inconstitucionais em razão de possíveis alterações decorrentes da oposição de embargos de declaração, tal como ocorreu em inúmeros casos envolvendo a tributação, pelas contribuições previdenciárias, do terço constitucional de férias.

Por outro lado, sob a modelagem atual, deve ser resguardado o direito do interessado em manejar ação rescisória para adequar a sua decisão individual ao precedente vinculante consolidado e, com isso, privilegiar a isonomia e a autoridade das decisões dos tribunais superiores.

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