Há justiça imparcial quando o julgador manifesta desprezo pelas mulheres?
24 de julho de 2024, 9h27
Na última quarta-feira, dia 17 de julho, o CNJ (Conselho Nacional de Justiça) acolheu pedido formulado pela OAB do Paraná e decidiu afastar do cargo o desembargador Luís Cesar de Paula Espíndola, do Tribunal de Justiça do Paraná, por reiteradas manifestações misóginas proferidas em sessões de julgamento com competência para decidir casos relacionados, entre outras matérias, ao Estatuto de Criança e Adolescente (exceto matéria infracional) e ao Direito de Família.

Na sessão de julgamento mais recente — e que ganhou repercussão nacional — a discussão dirigia-se à manutenção de medida protetiva de distanciamento proposta pelo Ministério Público em favor de uma aluna de 12 anos, que em escuta especializada realizada conforme prevista na Lei nº 13.431/2017, relatou ter sido assediada, diversas vezes, pelo seu professor. Acuada com a insistência, passou a se esconder no banheiro da escola para evitar as suas aulas. Outras colegas também teriam se constrangido com o excesso de aproximação do professor em atividades coletivas na sala de aula.
A decisão, por maioria, manteve a medida protetiva. Ficou vencido o referido relator por fundamentos que não estavam amparados em dispositivos legais pertinentes à matéria.
Em sua fala, referido desembargador minimizou expressivamente a gravidade dos fatos reportados [1], culpabilizou a vítima pelo assédio sofrido e, em tom jocoso, desmereceu a luta pela erradicação da violência de gênero. “Ego de adolescente, precisava de atenção (…) O mundo agora está muito cheio de dedos”, afirmou.
Suas manifestações não se encerraram no julgamento do caso. Em resposta à manifestação da desembargadora Ivanise Tratz Martins (que não compunha o quórum, mas que ao seu término advertiu sobre o necessário cumprimento do Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero), o desembargador continuou:
“Eu não poderia deixar de responder o que Vossa Excelência falou, que não tem nada a ver com o processo, um discurso feminista, desatualizado, porque se Vossa Excelência sair na rua hoje em dia, quem está assediando, quem está correndo atrás de homens são as mulheres. Essa é a realidade. As mulheres estão loucas atrás dos homens, porque são muito poucos. É só sair à noite! Eu não saio muito à noite, mas eu conheço… tenho funcionárias; tenho, sabe, contato com o mundo. Nossa, a mulherada está louca atrás de homem e louca para levar um elogio, uma piscada, uma cantada educada, porque elas é que estão cantando, elas que estão assediando, porque não tem homem. Hoje em dia os cachorrinhos estão sendo os companheiros das mulheres. Vai no parque e só tem mulher com cachorrinho, louca para encontrar um companheiro, para conversar e eventualmente para namorar. (…) lascívia, não sei o que significa isso, agora, homem e mulher normalmente, hoje em dia existem várias tribos (risos). A conduta, a atração, a mulher ser bonita e o homem também, né. É coisa dos sexos. Agora, a coisa chegou a um ponto hoje em dia que as mulheres é que estão assediando. Não sei se Vossa Excelência sabe, professores de faculdade são assediados. É ou não é? Quando saem da faculdade deixam, um monte de ‘viúvas’. As mulheres… Ah, das mulheres ninguém está correndo atrás, porque mulher está sobrando.” [2]
Sem dúvidas, o longo discurso — estereotipado e discriminatório — proferido pelo julgador afronta as diretrizes estabelecidas pela Resolução 492, aprovada pelo CNJ em 17 de março de 2023 (Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero), que devem ser rigorosamente observadas por todo o sistema de justiça.
Manifestação viola tratados internacionais sobre Direitos Humanos
A obrigação de julgar a partir de uma perspectiva de gênero não é tema novo. Está presente na Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher — Cedaw (1984), na Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (1996), entre outros diversos documentos internacionais que versam sobre direitos humanos. Tais textos reconhecem que as desigualdades, a discriminação e a violência de gênero são transversais a todas as instituições públicas e que no reconhecimento dessas desigualdades é que direitos são reconhecidos.

O Brasil já foi responsabilizado pela Corte IDH por discriminação no acesso à Justiça, por não investigar e julgar a partir da perspectiva de gênero e pela utilização de estereótipos negativos em relação à vítima, no Caso Márcia Barbosa de Souza e Outros vs. Brasil. Nos §§ 138-150, a sentença referiu a Recomendação Geral nº 33 sobre o acesso das mulheres à justiça da Cedaw para advertir que “a presença de estereótipos de gênero no sistema judicial impacta de forma grave o pleno desfrute dos direitos humanos das mulheres, uma vez que podem impedir o acesso à justiça em todas as esferas da lei e podem afetar particularmente as mulheres vítimas e sobreviventes de violência”.
Preconceitos pessoais e estereótipos de gênero, para a Corte IDH, “afetam a objetividade dos funcionários estatais encarregados de apurar as denúncias que lhes são apresentadas, influenciando sua percepção quando determinam se ocorreu ou não um ato de violência, em sua avaliação da credibilidade das testemunhas e da própria vítima”.
Para além de destacar a violação de compromissos internacionais ratificados pelo Brasil e de normas de direito interno com força vinculante, os reiterados episódios que envolvem tanto a vida particular quanto profissional do desembargador (indicados na decisão proferida pelo CNJ na Reclamação Disciplinar 0003915-47.2024.2.00.0000) e que evidenciam pré-julgamentos e desprezo pelas mulheres invocam outra discussão: há julgamento imparcial quando o julgador manifesta desprezo contra mulheres?
Imparcialidade nos processos sob perspectiva de gênero
A imparcialidade constitui fundamento primeiro para o exercício de uma jurisdição democrática. Não é ele um elemento uniforme, imanente a qualquer organização judicial, mas um predicado que precisa ser construído, para o qual operam os específicos valores constitucionais de cada país.
Na lição de Julio Maier, “não se compreende a palavra ‘juiz’, ao menos no sentido moderno, sem o qualificativo de imparcial”. Isto porque sua origem etimológica — in-partial — refere-se àquele que não é parte em um assunto que deve julgar e, no conceito semântico, “atribui-se a quem não detém ‘pré-juízos’ positivos ou negativos em relação à pessoa ou matéria sobre a qual deve decidir”. [3]
Em relação a esses “pré-juízos”, ao menos juridicamente, não há ferramentas para acessar o inconsciente e aferir valores morais ou aspectos culturais que possam influenciar uma decisão. Por isso, essa compreensão de imparcialidade deve estar relacionada com uma obrigação de que o julgador, que em sua vida particular (lamentavelmente) seja racista, homofóbico ou misógino, não ceda à tentação de decidir conforme a sua consciência. Ele deve se submeter à Constituição, porque é por meio dela que os destinatários da atividade jurisdicional estarão protegidos desses estímulos particulares — conscientes ou não.
A criação de mecanismos de monitoramento e avaliação de padrões de parcialidade nas decisões judiciais (até porque a crença na neutralidade judicial é ingênua), assim como a implementação de programas de capacitação contínua para magistrados, focados em igualdade de gênero e direitos humanos, podem colaborar para a redução do número de decisões enviesadas no Brasil.
Contudo, quando esse preconceito é explicitamente identificado, algo imediato deve ser feito.
O pré-julgamento ou posturas ideologicamente matizadas indicam evidente inclinação subjetiva sobre o conteúdo de futuras decisões e caracteriza parcialidade para julgar interesses ou direitos, no caso do machismo, de mulheres.
Pergunta-se: seria possível garantir confiabilidade ou democraticidade em decisões proferidas por um julgador cuja incontinência verbal e linguagem incendiária o coloca na posição de inimigo de mulheres? A resposta, decerto, que não.
O machismo tem um impacto significativo na imparcialidade dos magistrados. Por isso, quando a força vinculante do Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero não é suficiente a impor-lhe limites, essa parcialidade deve ser declarada pelas instâncias de controle e atacada com uma adequada resposta administrativa, para proteger as jurisdicionadas e a própria credibilidade no Poder Judiciário.
O exemplo trazido, que apenas ganhou destaque por não se tratar de caso que tramita em segredo de justiça, certamente não será o último. É necessário dar amplitude a situações como essa para que não se repitam (ou não com a mesma intensidade). A confiança no sistema jurisdicional depende da responsabilidade dos magistrados no cumprimento de seus deveres.
Se é machista, não é imparcial e não é justiça.
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[1] Não se pretende interferir na forma independente como deve o magistrado interpretar o conjunto probatório, mas rechaçar a indevida naturalização do assédio sexual, o que reforça um processo de revitimização de mulheres e meninas que sofrem violência de gênero. As autoras compreendem que há dois caminhos a serem trilhados pelas vítimas: aquele que visa a expansão do poder punitivo e aquele que busca expandir o poder de compreensão (ARGUELLO, Katie Silene Cáceres et at. Vitimologia e Gênero: considerações crítico-feministas a partir da sentença do Caso Mariana Ferrer. In: Captura críptica. Florianópolis, v.12, n.2, 2023, p. 259-292). O caminho proposto é aquele de mais direitos, garantias, engajado em uma política criminal da criminologia crítica orientada à maior participação da vítima no processo, menor intervenção punitiva e focada na justiça restaurativa.
[2] Sessão originalmente disponível no link: https://www.youtube.com/live/cQMtllvULBs. Após repercussão, o conteúdo foi removido pelo TJPR.
[3] MAIER, Julio B.J. Derecho Procesal Penal. Tomo I: Fundamentos. 2ª ed. 3ª reimp. Buenos Aires: Editores del Puerto, 2004, p. 739.
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